Transação tributária após acordo penal
Bruno Henrique dos Santos e Henrique Zigart Pereira
Por Bruno Henrique dos Santos e Henrique Zigart Pereira
O debate sobre a adesão à transação tributária após a assinatura de um acordo de não persecução penal (ANPP) pelo Ministério Público em casos de crimes contra a ordem tributária tem se tornado cada vez mais relevante. Esse fenômeno é impulsionado pela crescente utilização do Direito Penal para fins arrecadatórios e pela implementação de programas como o Acordo Paulista de 2024, que registrou 10 mil adesões, segundo o portal da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
Imaginemos que uma empresa esteja sendo investigada por crimes contra a ordem tributária, conforme os artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990. A empresa enfrenta dificuldades em quitar ou parcelar o débito tributário com o Fisco. Após a conclusão das diligências investigativas, o Ministério Público propõe um acordo de não persecução penal aos administradores da empresa, tendo em vista a presença dos requisitos do artigo 28-A do Código Penal. O acordo abrange o valor original do débito tributário, com ou sem acréscimo de juros de mora e multa, com a opção de pagamento parcelado.
Supondo que o pagamento das parcelas tenha sido iniciado e posteriormente surge a oportunidade de celebrar uma transação tributária com o Fisco – por exemplo, através de um programa como o Acordo Paulista, que oferece descontos em juros e multa e abrange outras certidões de dívida ativa não incluídas no inquérito policial nem no acordo de não persecução penal – surge a dúvida: a empresa pode aderir à transação tributária mesmo com o acordo de não persecução penal em vigor? Se for possível, o que acontece com o acordo de não persecução penal?
Para responder a essas questões é necessário considerar o arcabouço jurídico e a jurisprudência pertinente. A análise indica que a adesão à transação tributária é viável mesmo após a celebração do acordo de não persecução penal e que essa adesão pode desconstituir o acordo anterior.
Claro, pois a Lei nº 9.403/96, em sua redação conferida pela Lei nº 12.350/2010, estabelece que a pretensão punitiva do Estado é suspensa quando a pessoa física ou jurídica investigada pelos crimes tributários adere ao parcelamento do débito tributário, desde que seja antes do oferecimento da denúncia. Assim, a adesão ao parcelamento suspende a pretensão punitiva, o que afeta os pressupostos para o acordo de não persecução penal.
Nesse contexto, a suspensão da pretensão punitiva elimina o interesse do Ministério Público na persecução penal, o que resulta na perda do objeto do acordo de não persecução penal, visto que a reparação do dano e a prevenção do crime já estão sendo cumpridos por meio do pagamento dos débitos tributários.
O raciocínio proposto vai de encontro ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem reiteradamente afirmado que a arrecadação e o pagamento integral dos créditos tributários servem como mecanismos de reparação do dano causado ao erário e têm prioridade sobre a sanção penal em casos de crimes tributários. Essa política reflete um interesse público maior na arrecadação e na recuperação de créditos tributários, que são essenciais para o financiamento de serviços públicos e o fomento à economia (STF, HC 126.292, Rel. Min. Cármen Lúcia, 2014).
Para além disso, o Fisco é inequivocadamente a vítima da conduta delituosa referente a crimes contra a ordem tributária, com autonomia e discricionariedade para negociar as multas sancionatórias e juros de mora conforme convir melhor ao Executivo e à Fazenda. Nesse sentido, por opção do legislador, há primazia da política arrecadatória sobre a incidência do Direito Penal em crimes tributários, justificada pelo interesse público no recebimento de créditos tributários para efetivar gastos públicos em setores estratégicos e fomentar o crescimento econômico.
Justamente por isso, bem como observando-se os princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade do Direito Penal, a incidência da legislação tributária é suficiente para proteger o bem jurídico tutelado pela norma penal. Claro, pois “essas medidas afastam o excesso caracterizado pela restrição ao direito fundamental à liberdade, derivado da imposição da sanção penal, quando os débitos estiverem sendo regularmente pagos ou já tenham sido integralmente quitados”, leciona sobre o assunto o ministro Nunes Marques na ADI 4273.
No entanto, é necessário que haja a provocação do juízo para definir a desconstituição do acordo penal e o eventual restabelecimento dos direitos dos investigados para serem agraciados por eventual e futuro benefício processual penal, cujo parâmetro ainda não se encontra claro no Judiciário. Ainda, é sobretudo imprescindível o requerimento judicial, sob pena de coexistirem acordos com o mesmo objeto de reparação de dano e dupla arrecadação em favor do Fisco, o que seria vedado e de difícil recuperação posterior.
Assim, conforme a interpretação do Direito Penal e Tributário, em conformidade com a Constituição Federal e a jurisprudência do STF, é possível a uma empresa investigada por crime tributário aderir, posteriormente, a uma transação tributária, mesmo que seus representantes estejam cumprindo um acordo de não persecução penal. Essa adesão pode ser vantajosa tanto para os investigados quanto para o Fisco, podendo resultar na desconstituição do acordo anterior e na retirada da confissão extrajudicial dos investigados.
Bruno Henrique dos Santos e Henrique Zigart Pereira
são advogados especialistas da área penal empresarial do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados