O que a reforma do Imposto de Renda não pode ignorar?
Tathiane Piscitelli
Na última semana repercutiu nas redes sociais imagens de pessoas vasculhando um caminhão de lixo em busca de comida. A cena aconteceu na cidade de Fortaleza e é apenas mais uma, entre outras, que revelam venda de carcaça de galinha e ossos por diversas regiões do Brasil. Segundo dados do Ministério da Cidadania, até abril deste ano, 14,5 milhões de famílias viviam em situação de extrema pobreza – o que significa uma renda per capita de até R$ 89 mensais. Dentre essas pessoas, de acordo com o IBGE, 40% são mulheres pretas ou pardas.
Como já tratei em diversas ocasiões nesta coluna, minha posição é a de que um dos papeis da tributação é a realização de valores fundamentais, tanto pelo gasto público quanto pela configuração do sistema tributário. Não é novidade que a nossa carga tributária é excessivamente baseada no consumo e tem como consequência econômica a regressividade do sistema como um todo. O resultado é a ampliação e a perpetuação das desigualdades via tributação. Uma das saídas para mitigar o impacto deletério do ônus excessivo sobre os mais pobres é melhorar a distribuição dos tributos sobre a renda e, a partir deles, alcançar níveis mais adequados de justiça distributiva.
Sobre isso, adiante-se desde já: a despeito da previsão constitucional de progressividade da tributação da renda, no Brasil, esse imposto é regressivo quando se trata de pessoas físicas. Dados da Receita Federal de 2020 apontam que a alíquota média daqueles que recebem mais de 320 salários-mínimos mensais é de 2,1%, enquanto a fatia da população que tem rendimentos de três a cinco salários-mínimos é tributada à alíquota média de 1,6% e os que ganham de cinco a sete salários-mínimos contribuem mais do que os estratos mais ricos: 3,9% de alíquota média.
A reforma do Imposto de Renda está na direção certa? — Foto: Unsplash
A reforma do Imposto de Renda está na direção certa? — Foto: Unsplash
Uma boa hipótese para a distorção é a isenção da tributação de dividendos. Ainda segundo a Receita Federal, considerando apenas as declarações de recebedores de lucros e dividendos e titulares de microempresa, aqueles que declaram possuir mais de 320 salários-mínimos de rendimentos mensais representam 0,5% dos declarantes, com uma fatia de 34% de rendimentos isentos. Já aqueles que se situam na faixa de três a 15 salários-mínimos contemplam 51% dos declarantes, com apenas 12% dos rendimentos isentos.
Em junho deste ano, o governo federal encaminhou à Câmara dos Deputados o PL 2337/2021, exatamente para promover alterações no Imposto de Renda, com o argumento de que a reforma tornaria o imposto mais justo. Dentre as mudanças propostas, a previsão de tributação dos dividendos causou intensa controvérsia. Na redação original, previa-se a alíquota de 20%, com isenção assegurada para a distribuição realizada por pessoas jurídicas optantes do Simples, no valor de até R$ 20 mil. Na versão final aprovada pela Câmara, a distribuição dos dividendos seria tributada à alíquota de 15%, restando isentas as pessoas jurídicas optantes do Simples e aquelas tributadas pelo lucro presumido que tivessem receita bruta anual de até R$ 4,8 milhões.
Há consequências jurídicas resultantes de um nível tão elevado de isenção: o nanismo empresarial e o risco do uso de estruturas societárias que fragmentem a atividade da empresa, para que cada uma delas atenda o limite da isenção. Ao lado disso, devemos nos perguntar: o modelo proposto é capaz de enfrentar o verdadeiro problema da tributação da renda no Brasil; ou seja, presta-se a atacar a desigualdade que se impõe também nessa base?
Em recente nota técnica, o Centro de Pesquisa em Macroeconomia e Desigualdades (MADE) da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo avaliou os impactos distributivos do PL 2337/2021, na versão aprovada pela Câmara dos Deputados. Considerando apenas a tributação dos dividendos, há melhora considerável nos níveis de tributação dos estratos mais ricos e redução do índice Gini – essa mudança isolada possibilitaria que saíssemos de 0,61471 para 0,61255. Além disso, o impacto arrecadatório seria significativo: uma elevação de 11,7% das receitas totais do Imposto de Renda.
Ou seja: a tributação dos dividendos é medida adequada se desejamos adequar o Imposto de Renda à sua vocação distributiva.
Esta semana, o Senador Otto Alencar, presidente da Comissão de Assuntos Econômicos, manifestou-se quanto à necessidade de se ter calma na aprovação do PL 2337/2021, e integrantes do Ministério da Economia já reconhecem que há poucas chances de termos as alterações votadas antes do final de 2022. A notícia não é ruim. Teremos, assim, oportunidade de discutir as mudanças propostas com foco no que realmente importa, que é o combate das desigualdades e privilégios.
Ainda na nota técnica do MADE, os autores apontam caminhos para uma maior justiça tributária: retirada das isenções na distribuição de dividendos e ampliação das alíquotas da tabela progressiva do Imposto de Renda da pessoa física. Ambas as medidas teriam impacto distributivo ainda maior. Sobre esse último tópico, levantamento recente da KPMG mostra que o Brasil tributa os altos salários com alíquotas destoantes da média da OCDE (42%), da média mundial (31,5%) e da média da América Latina (31,9%). Possuem alíquotas mais altas que os nossos 27,5% o Peru (30%), a Argentina (35%) e a Colômbia (39%), apenas para citar alguns.
O tema da reforma tributária não sairá tão logo da pauta pública. No entanto, é preciso que ele seja recontextualizado para que as mudanças legislativas combatam privilégios e sejam instrumentos efetivos de redução das desigualdades.
Fonte Valor
Tathiane Piscitelli
Professora de direito tributário e finanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da FGV, é doutora e mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP