Créditos do IBS e a cumulatividade à espreita
Tathiane Piscitelli
O início da próxima semana promete ser marcado pela entrega do relatório da Comissão Mista da Reforma Tributária, que deverá apresentar uma proposta de emenda constitucional com foco na tributação do consumo, com pontos de convergência entre os modelos apresentados nas PECs 45 e 110. Mesmo que o teor do relatório seja ainda desconhecido, há chances reais de ele contemplar a unificação de incidências, no modelo de um tributo sobre o valor agregado.
Esta semana, o Centro de Cidadania Fiscal, responsável pela redação que deu origem à PEC 45, divulgou a minuta da lei complementar que disciplinaria o IBS, imposto sobre bens e serviços proposto em substituição aos atuais ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins. Há diversos pontos controversos que merecem ser explorados, como os relacionados à Agência Tributária Nacional, autarquia especial responsável por “implementar o federalismo cooperativo e compartilhado entre as administrações tributárias da União, Estados, Distrito Federal e Municípios” e também competente para processar o contencioso administrativo do IBS, dentre outras funções.
Sem prejuízo da análise desses pontos em textos posteriores, neste artigo irei me concentrar em um elemento central na configuração do IBS: o princípio da não cumulatividade. Nos termos da redação da PEC, há a previsão de não cumulatividade ampla, baseada na incidência do imposto, calculado por fora, na operação anterior. Não se vê, na proposta, qualquer limitação ao direito a crédito – salvo a própria incidência na etapa anterior, à luz do que já ocorre hoje no ICMS e IPI.
Contudo, ao disciplinar tal princípio, a minuta de lei complementar prevê algo diverso: somente haverá direito a crédito se o IBS tiver sido recolhido na operação anterior. Ou seja, a mera incidência do imposto não é suficiente para assegurar o direito a crédito, que é condicionado não apenas à emissão de documento fiscal pelo vendedor, mas, também, à confirmação do negócio jurídico pelo adquirente/tomador, ao reconhecimento, por parte deste, de que se trata de negócio jurídico capaz de gerar crédito, e ao efetivo recolhimento do IBS pelo vendedor.
Na hipótese de inadimplemento, há a possibilidade, nos termos da exposição de motivos da minuta de lei complementar, de recolhimento do imposto pelo próprio adquirente e transferência a ele, adquirente, da contenda jurídica que poderá advir da tentativa de cobrança da parcela do imposto de seu fornecedor. Ou seja: o próximo na cadeia pagará, além do tributo que ele próprio deve, o tributo que deixou de ser pago pelo contribuinte anterior, e ficará com o ônus de tentar reaver aquilo que pagou pelo outro.
Os problemas que podem ser suscitados a partir dessa configuração peculiar do princípio da não cumulatividade são muitos. Além da irracionalidade econômica que o modelo representa, já que impõe ao adquirente o custo do inadimplemento do fornecedor, seja pelo pagamento do tributo em si, seja pela incorporação desse custo em sua contabilidade e eventual repasse no preço do bem, há questões jurídicas relevantes que merecem ser debatidas.
Em primeiro lugar, a lei complementar claramente limita o alcance da não cumulatividade tal qual prevista no texto da PEC. Como mencionado, o texto da PEC confere direito a crédito no caso de IBS incidente na operação anterior, enquanto a lei complementar restringe essa possibilidade ao IBS efetivamente recolhido. Isso, por si só, já seria capaz de resultar em questionamentos quanto à limitação indevida do texto constitucional, com atração de contencioso significativo em torno da questão.
Além disso, considerando que o IBS seria tributo não cumulativo, que se vale da técnica da tributação sobre o valor agregado, a limitação de créditos ao pagamento do imposto pelo vendedor resultaria em aumento do tributo devido pelo adquirente e afronta ao princípio da capacidade contributiva, já que a ele não é dado controlar as finanças da pessoa jurídica que o antecede na cadeia. Implicaria, também, evidente cumulatividade do IBS.
Some-se a isso tudo o fato de que a PEC 45, nos moldes em que proposta, aumenta demasiadamente a regressividade do sistema tributário nacional. O mecanismo proposto para mitigar esse efeito é a devolução do IBS incidente nas operações realizadas pela população de baixa renda – algo que, note-se, não veio contemplado na minuta da lei complementar. Em textos anteriores, apresentei as diversas razões pelas quais o mecanismo pode ser temerário para esse fim. De todo modo, caso aprovadas a PEC e a lei complementar proposta, como ficaria a restituição nos casos de inadimplemento do IBS pelo estabelecimento que promove a venda e prestação de bens e serviços? Esse direito seria, também, mitigado?
Por fim, ainda sobre a regressividade, a ausência de creditamento nos casos de inadimplemento do vendedor, além de ocasionar a cumulatividade do imposto em certo momento da cadeia, poderá resultar no repasse do imposto majorado (dada a ausência de crédito) no preço do bem, com ônus financeiro maior recaindo sobre o consumidor final. Haverá reflexo nos preços e, em consequência, na tributação.
Todos esses argumentos apenas reforçam um ponto sobre o qual eu tenho insistido: precisamos ampliar o debate sobre a reforma tributária, de modo a revelar todos os reveses que podem advir da busca de uma suposta simplificação via unificação de tributos. No caso do desenho da não cumulatividade do IBS, a inovação proposta abandona a máxima da apropriação ampla e sem burocracia de créditos. A judicialização baterá à porta.
Fonte: Valor Econômico.
Tathiane Piscitelli
Professora de direito tributário e finanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da FGV, é doutora e mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP