Multa isolada e compensação não homologada: a jurisprudência do Carf e o RE 796.939
Diego Diniz Ribeiro
Em abril de 2020 e após mais de seis anos da sua distribuição1 no Supremo Tribunal Federal, a Corte Constitucional deu início ao julgamento do RE n. 796.939, que tem por escopo analisar a (in)constitucionalidade do disposto no art. 74, §§15 e 17 da lei 9.430/96, dispositivos esses que redundam em um grande acervo de processos junto ao Carf2.
O ponto a se destacar do aludido voto3 que, se acolhido pelo Plenário do STF, pode implicar a manutenção de inúmeras discussões no âmbito do Carf, diz respeito ao pretenso prejuízo à discussão referente ao §15 do art. 74 da lei n. 9.430/964. Segundo o Relator do caso, ministro Edson Fachin, tal questão estaria prejudicada na medida em que o citado prescritivo foi revogado pela lei n. 13.137/15. Ao que parece, tal raciocínio parte de consagrada jurisprudência do Pretório Excelso no sentido de que o STF reconhece a inconstitucionalidade de normas vigentes e não de normas revogadas5.
Nesse sentido, prevalecendo este entendimento do ministro Edson Fachin, o Carf continuará carregando consigo um enorme espólio de processos pautados pela multa isolada na hipótese de pedidos de ressarcimento indeferidos ou indevidos, processos nos quais o Carf tem precedentes em diferentes sentidos.
Nesse diapasão, é possível encontrar decisões do Carf pela manutenção da multa6, apesar da sua revogação, ao fundamento que em que pese a revogação da multa quanto ao pedido de ressarcimento indeferido, foi mantida a legislação a exigência da multa de 50% (cinquenta por cento) sobre valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, prevista no art. 74, §17 do art. 74 da Lei n. 9.430/967.
Em sentido diametralmente oposto8, também é possível identificar precedentes do Carf pela aplicação retroativa do disposto na lei n. 13.137/2015, com fundamento no art. 106, inciso II, alínea “a” do CTN, haja vista a retroatividade benigna da legislação ordinária há pouco referida9.
Com a devida vênia, o entendimento alhures apontado no voto do ministro Edson Fachin faz sentido apenas em casos de controle concentrado de constitucionalidade, no qual o STF julga pedido de (in)constitucionalidade de norma em um chamado processo objetivo10. Porém, o caso sob relatoria do ministro Fachin é um recurso extraordinário11, ou seja, há uma relação processual subjetiva que suscita o controle difuso de constitucionalidade em caráter incidental. Neste tipo de situação a declaração de inconstitucionalidade não é objeto de julgamento12, mas sim razão de decidir do julgado. Logo, neste tipo de situação, o STF não só pode, como deve avaliar a questão, inclusive para atender o disposto no art. 489, do CPC13 e para, por conseguinte, resolver o problema subjetivamente posto à sua apreciação jurisdicional.
Outro ponto que pode suscitar uma eventual comunicação imediata entre o caso sob julgamento no STF e os processos administrativos no âmbito do Carf diz respeito à necessidade ou não da suspensão desses últimos até final julgamento do leading case na Corte Constitucional, questão essa bastante tormentosa na jurisprudência do Carf, como já destacado em coluna anteriormente publicada14-15.
O último capítulo dessa saga, portanto, ainda está para ser escrito pelo STF, o que se espera que seja feito de forma rápida16, exatamente para evitar as mazelas e a insegurança que o (não) julgamento do RE n. 574.706 (exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS e da COFINS) tem causado no ambiente tributário. Em outros termos, o que se espera é que o STF assuma o papel de fomentador de segurança e não de insegurança jurídica no âmbito da jurisdição constitucional.
Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise da Súmula 154 publicada no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
1 Ocorrida em 19 (dezenove) de fevereiro de 2014, segundo informações obtidas junto ao sítio eletrônico do STF e consultada em 26/05/2020: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4531713
2 O que, inclusive, é destacado pelo Relator do caso, Ministro Edson Fachin, já no início do seu voto, quando assim aduz:
Os dispositivos hostilizados são fontes de vasto contencioso judicial e administrativo tributário perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) que vê-se obstado de empreender análise quanto a constitucionalidade de tais normas ao que urge posicionamento definitivo do STF sobre a matéria…
3 Não se discutirá aqui o ponto principal do voto do Ministro Edson Fachin e que, em nossa opinião, acertadamente conforma sua ratio, i.e., de inexistir uma ilicitude a priori na inexistência de homologação de pedido de compensação apresentado pelo contribuinte.
4 Referido dispositivo assim previa:
Art. 74 (…).
15. Será aplicada multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do crédito objeto de pedido de ressarcimento indeferido ou indevido.
5 Nesse sentido: ADI 3.936, ADI 709, ADI 1442 e ADI 4.620-AgR. Excetuam-se dessa regra apenas aqueles casos em que a revogação legislativa implique fraude à jurisdição da Corte, i.e., para evitar a declaração de inconstitucionalidade da norma (v.g., ADI 3.306), ou ainda em casos que que a ação direta tenha por objeto leis de eficácia temporária e desde que tenha ocorrido (i) impugnação em tempo adequado, (ii) inclusão da demanda em pauta e (iii) início do seu julgamento antes do exaurimento da eficácia da norma (e.g., ADI 5.287e ADI 4.426).
6 Nesse sentido, v.g.:
ASSUNTO: NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO
Período de apuração: 30/06/1999 a 28/02/2006
PEDIDO DE RESSARCIMENTO. INDEFERIMENTO. MULTA ISOLADA.
Aplica-se a multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, nos termos do art. 74, § 17 da Lei nº 9.430/96.
(…).
Recurso Voluntário Negado.
(Acórdão CARF n. 3301-007.361; Julgado em: 18/12/2019; Relator Conselheiro Winderley Morais Pereira. Por maioria de voto).
7 Trecho do voto do Relator no Acórdão CARF n. 3301-007.361.
8 V.g., Acórdão CARF n. 3302-003.352, Rel. Conselheiro Walker Araújo, Data da sessão: 25/08/2016.
9 O sobredito voto restou assim ementado:
APLICAÇÃO RETROATIVA.
Carece de respaldo legal a manutenção da multa prevista no art. 74, § 15 da Lei nº 9.430/96, correspondente a 50 % (cinqüenta por cento) sobre o valor do crédito objeto de pedido de ressarcimento indeferido ou indevido, em razão da revogação do dispositivo inicialmente pelo art. 56, I da Medida Provisória nº 656/2014, posteriormente pelo art. 4º, I, da Medida Provisória 668/2015, e em definitivo pelo art. 27, II, da Lei 13.137/2015, aplicando-se ao caso os ditames do art. 106, II, “a” do Código Tributário Nacional.
Recurso de Ofício Negado.
Crédito Tributário Exonerado.
10 Nesse sentido:
A ação direta de inconstitucionalidade configura típico processo objetivo, destinado a elidir a insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a legitimidade da lei ou ato normativo federal. Os eventuais requerentes atuam no interesse de preservação da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio. Tem-se um processo sem partes, na qual se existe um requerente, mas inexiste requerido. Os requerentes são titulares da ação de inconstitucionalidade apenas para provocar, ou não, o Supremo Tribunal.
(STF, ADI-ED 2982/CE; Relator Ministro Gilmar Mendes) (grifos constantes no original).
11 A mesma questão foi objeto da ADI 4.905, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
12 Ainda que possa ter um efeito transubjetivo, nos termos do art. 927, inciso V do CPC.
13 Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
(…).
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(…).
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
(…).
14 https://www.conjur.com.br/2019-mai-15/direto-carf-exclusao-icms-base-calculo-pis-cofins
15 Aprofundando no tema de forma crítica: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária. In: Processo tributário analítico (vol. III). CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, 2016.
16 Importante registrar que a rapidez aqui indicada não é aquela pautada por uma racionalidade neoliberal e que vê nas técnicas de uniformização e de sintetização da jurisprudência (repetitividade, repercussão geral e súmulas, por exemplo) o caminho para o fim desta mazela. O que não se coaduna, entretanto, é que o STF demore décadas para solucionar certas demandas, em especial quando todos os demais casos análogos ficam sobrestados no tempo, aguardando a manifestação Pretoriana, o que só traz “benefícios” para os litigantes contumazes. Fonte Conjur
Diego Diniz Ribeiro
Advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.