Fisco não pode fechar empresas com dívidas tributárias elevadas (parte 1)

Igor Mauler Santiago

A Constituição assegura às pessoas e empresas “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (artigo 170, parágrafo único).

A lei que proíba o exercício de determinada atividade ou a sujeite a autorização ou qualificação prévia há de ser em princípio federal, por deter a União competência privativa para dispor sobre Direito Civil e Comercial e sobre condições para o exercício das profissões (Constituição, artigo 22, incisos I e XVI).

Porém, se a proibição ou a restrição forem fundadas em algum dos princípios positivados no artigo 24 da Constituição (defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico ou da saúde, por exemplo), admite-se que seja imposta também por lei estadual, desde que esta não contrarie a lei federal de normas gerais acaso existente (parágrafos 1º a 4º do mesmo dispositivo).

Nessa linha o preciso voto do ministro Dias Toffoli na ADI 3.937/DF, julgada em 24/8/2017 e cujo acórdão ainda não foi publicado. No limite, atendidas as leis federais e estaduais sobre a matéria, a limitação pode decorrer até de lei municipal, dada a competência deste ente para “legislar sobre assuntos de interesse local” e “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (Constituição, artigo 30, incisos I e II).

Tais amarras à liberdade econômica justificam-se pelo impacto que a atividade possa ter sobre outros valores prestigiados pela Constituição: risco de câncer associado ao uso de amianto, risco de acidente ligado à venda de bebida alcoólica na beira de estradas etc. É certo que, no sempre lembrado caso American Virginia1, o STF admitiu que uma conduta desvinculada da atividade-fim da empresa motivasse a cassação da sua licença de funcionamento.

Tratou-se de aferir a validade do artigo 2º, inciso II, do Decreto-lei 1.593/77 (na redação da Lei 9.822/99), segundo o qual o registro especial para a fabricação de cigarros, outorgado pela Receita Federal, será cancelado em caso de “não cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal”.

Observe-se de saída que a corte fez uma leitura restritiva da regra, especificando que não é toda inadimplência que autoriza o afastamento das suas tradicionais súmulas contrárias às sanções políticas2, mas somente a resistência obstinada e infundada ao pagamento de tributos, e assim mesmo desde que se garanta ao particular o devido processo legal na impugnação das exigências e da própria cassação do registro.

Mais do que isso, analisando-se de perto os acórdãos da cautelar e do recurso extraordinário, nota-se que, embora desvinculado da atividade-fim da empresa (pois a inadimplência fiscal não agrava a nocividade dos cigarros que esta fabrica), o comportamento sancionado solapa o principal mecanismo de que dispõe o poder público para implementar o valor constitucional afetado por tal atividade (a proteção da saúde).

Com efeito, ao ver do STF, a produção e a venda de cigarros são atividades apenas toleradas pelo Estado, que “infelizmente” não dispõe de meios eficazes para o seu banimento. Donde as violentas intervenções que sofre: limites à propaganda e imposição de advertências ao consumidor (Constituição, artigo 220, parágrafo 4º), proibição de aditivos, mesmo inofensivos, que tornem o produto mais saboroso (Resolução Anvisa 14/2012, objeto da ADI 4.874/DF, cujo julgamento em 1ª/2/2018 restou inconclusivo) e, principalmente, tributação inibitória.

Nesse sentido, o acórdão regional submetido ao crivo do STF já consignava que o tributo “tem por objetivo desestimular o contribuinte de fato, em prol de sua própria saúde” e que a sua receita é “imprescindível para que [o Estado] possa arcar com os custos das doenças relacionadas ao consumo de cigarros”. A instrumentalidade do tributo para a consecução do valor em que se lastreia a restrição à indústria do tabaco (proteção à saúde) foi, como dito, fortemente ressaltada nos dois acórdãos proferidos pelo STF.

Na cautelar, o ministro Joaquim Barbosa ressaltou “as vicissitudes e idiossincrasias próprias do mercado da indústria do cigarro”, aptas “a justificar o tratamento fiscal mais oneroso”, inclusive “por questões de saúde pública (custeio dos serviços de profilaxia e tratamento das doenças causadas pelos produtos da indústria do tabaco)”.

O ministro Cezar Peluso chamou a atenção para o caráter de “tributo extrafiscal proibitivo” do IPI dos cigarros, concluindo com a afirmação enfática de repugnar-lhe ter de decidir sobre uma “briga para saber quem vende veneno mais barato”. E o ministro Carlos Britto destacou a alta nocividade do produto, cuja comercialização “muito dificilmente se concilia” com a função social da propriedade ou com a defesa da saúde, notando com agudeza que, “se, de um lado, a tributação elevada é um freio, a sonegação contumaz é um acelerador”.

No recurso extraordinário, o ministro Ricardo Lewandowski reiterou que a produção de cigarros é “atividade econômica meramente tolerada pelo Estado”, e o ministro Gilmar Mendes completou que a hipertributação se justifica pela “natureza altamente nociva à saúde humana dos produtos fumígeros, notadamente o cigarro”. Em suma, a cassação do registro de funcionamento não decorreu da inadimplência tributária em si mesma considerada, mas da inobservância de medida diretamente vinculada à proteção da saúde pública: por coincidência, dadas as já referidas particularidades do setor, a quitação dos tributos inibitórios, sem a qual o cigarro obterá difusão social indesejada pelo poder público.

É só assim que podem ser tomadas as afirmações do ministro Cezar Peluso de que a cassação do registro de funcionamento por dívida fiscal, “antes de ser sanção estrita, é prenúncio desta”, eis que, “cancelado o registro, cessa, para a empresa inadimplente, o caráter lícito da produção de cigarros”, que passa por isso mesmo a ser proibida.

A teor do artigo 3º do CTN, a licitude do ato (prius) é requisito para a incidência do tributo (posterius), o que repele a inversão lógica de qualificar-se o ato como lícito ou ilícito segundo este tenha ou não sido tributado. A menos — aí está o ponto — que o tributo se descole inteiramente de sua função fiscal e se transmude por completo (não se trata da extrafiscalidade ordinária, que não despreza o fim arrecadador) em mecanismo regulatório para a implementação de valor constitucional contraposto, em dado setor, à liberdade econômica.

Menos defensável, por incorrer em grave petição de princípio, é a tese de José Afonso da Silva, em parecer apresentado ao STF. Para o eminente mestre, o decreto-lei “não estabelece meio coercitivo para a cobrança de tributo, mas sim sanções por práticas de ilícitos contra a ordem tributária”. Ora, o ilícito punido com o fechamento da empresa não é outro senão a inadimplência, de modo que tal efeito só pode ser evitado por meio da quitação das dívidas.

E há mais: preocupada com a indevida generalização das teses expressas no julgamento da cautelar, a corte reforçou a extrema peculiaridade da situação ali tratada. O ministro Eros Grau descreveu o mercado do fumo como “quase um monopólio fiscal”, situação que não se repete em outros setores.

O ministro Carlos Britto acrescentou que a submissão do tabaco a severo regime especial de tributação “chega a ser da essência” dessa atividade econômica. E o ministro Gilmar Mendes foi categórico: a “carga normativo-sancionatória” aplicável aos fumígeros, “levada para outros âmbitos da atividade econômica, certamente não passaria ao teste da proporcionalidade, especialmente por afrontar a liberdade de iniciativa”.

É mesmo difícil pensar em outra atividade lícita que suscite repulsa semelhante à produção e à venda de cigarros, à qual restrições tão draconianas pudessem ser impostas com o beneplácito da opinião pública e do Judiciário. Existem outras atividades submetidas a autorização estatal prévia, caso da produção e da venda de combustíveis. Mas o Estado não tem interesse em erradicá-las. Muito pelo contrário: sem deixar de impor-lhes rigorosa disciplina, na verdade as protege e estimula, por lidarem com insumos básicos para toda a economia.

De modo que os tributos que as oneram, ainda que elevados e acaso revestidos de função extrafiscal (induzir o consumo de um combustível em lugar de outro), não visam limitar a sua abrangência — o que seria incompatível com os benefícios fiscais que o próprio poder público lhes concede, caso do Repetro.

Em suma, a autorização prévia aplicável ao setor de cigarros visa à proteção da saúde pública, objetivo perseguido principalmente por meio da tributação inibitória. Já a autorização prévia imposta ao setor de combustíveis tem em mira a segurança dos trabalhadores e usuários e a preservação do meio ambiente, finalidades garantidas pela fixação de regras diretamente ligadas à materialidade das atividades-fins que o integram.

Daí que o inadimplemento substancial e injustificado de tributos acarrete a cassação do registro especial no primeiro caso, mas não no segundo, onde essa medida extrema só será legítima se decorrer da inobservância das normas de segurança e ambientais julgadas relevantes pela agência reguladora, com respaldo em lei.

Isso o que o STF acabou de confirmar no ARE 1.060.488 AgR/SP (1ª Turma, relator ministro Roberto Barroso, DJe 15/2/2018), aliás de interesse de uma empresa de combustíveis. O voto do relator é irrespondível:

“O Estado de São Paulo diz que não é sanção política, porque a empresa é contumaz pela inadimplência. Portanto confirma exatamente que é uma sanção política. É verdade que houve uma exceção feita pelo Plenário do Supremo naquele caso específico de uma tabacaria [a menção é à American Virginia]. Mas foi uma exceção absoluta a essa regra da sanção política”.

Em conclusão, mesmo após o caso American Virginia, permanece válida a afirmação de que as restrições à atividade econômica — e especialmente aquelas conducentes à eliminação de determinado agente do mercado — só se justificam se forem voltadas a evitar ou mitigar os prejuízos que ela possa causar a outros valores constitucionais eminentes.

Sabe-se que o outro fundamento adotado pelo STF para convalidar o artigo 2º, inciso II, do Decreto-lei 1.593/77 foi a defesa da livre concorrência, que ficaria arranhada com a redução de preços e a conquista de mercados supostamente induzidas pela inadimplência tributária sistemática e injustificada. A análise desse ponto será objeto das próximas colunas.

1 STF, Pleno, AC 1.657/RJ, relator para o acórdão ministro Cezar Peluso, DJe 31/8/2007; STF, Pleno, RE 550.769/RJ, relator ministro Joaquim Barbosa, DJe 3/4/2014.
2 “Súmula 70 do STF. É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.”
“Súmula 323 do STF. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”
“Súmula 547 do STF. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”
Fonte: Conjur

Igor Mauler Santiago

Sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Gostou do artigo? Compartilhe em suas redes sociais

kuwin

iplwin

my 11 circle

betway

jeetbuzz

satta king 786

betvisa

winbuzz

dafabet

rummy nabob 777

rummy deity

yono rummy

shbet

kubet

winbuzz

daman games

winbuzz

betvisa

betvisa

betvisa

fun88

10cric

melbet

betvisa

iplwin

iplwin login

iplwin app

ipl win

1win login

indibet login

bc game download

10cric login

fun88 login

rummy joy app

rummy mate app

yono rummy app

rummy star app

rummy best app

iplwin login

iplwin login

dafabet app

https://rs7ludo.com/

dafabet

dafabet

crazy time A

crazy time A

betvisa casino

Rummy Satta

Rummy Joy

Rummy Mate

Rummy Modern

Rummy Ola

Rummy East

Holy Rummy

Rummy Deity

Rummy Tour

Rummy Wealth

yono rummy

dafabet

Jeetwin Result

Baji999 Login

Marvelbet affiliate

krikya App

betvisa login

91 club game

daman game download

link vào tk88

tk88 bet

thiên hạ bet

thiên hạ bet đăng nhập

six6s

babu88

elonbet

bhaggo

dbbet

nagad88

rummy glee

yono rummy

rummy perfect

rummy nabob

rummy modern

rummy wealth

jeetbuzz app

iplwin app

rummy yono

rummy deity 51

rummy all app

betvisa app

lotus365 download

betvisa

mostplay

4rabet

leonbet

pin up

mostbet

Teen Patti Master

Fastwin App

Khela88

Fancywin

Jita Ace

Betjili

Betvisa

Babu88

MCW

Jwin7

Glory Casino

Khela88

Depo 25 Bonus 25

Depo 25 Bonus 25