Complexo de Ferris Bueller e IPVA
Alaim Rodrigues Neto / Renato Miragaya Rebello
Nas últimas semanas foi noticiado nos meios de comunicação que um magistrado federal teria sido flagrado dirigindo um utilitário de luxo apreendido em uma ação criminal movida contra um famoso empresário carioca. Quem é fã do filme “Curtindo a Vida Adoidado” provavelmente fez uma associação imediata à cena de Ferris Bueller pegando “emprestada” a Ferrari 250 GT Califórnia 1961 da garagem do pai de Cameron Frye, seu melhor amigo, para dar uma voltinha por Chicago [1]. Ao som de “Oh, Yeah!”, da banda Yello, não se pode culpar quem por um milésimo de segundo teve empatia pelo douto fiel depositário voluntário.
Jocosidade à parte, atualmente a sociedade urge pela apuração séria e rápida dos reiterados relatos de desvios de conduta cometidos por funcionários públicos e demais pessoas que se relacionam com a Administração Pública, com prejuízos aos cofres públicos na casa dos bilhões de reais. A crise de representatividade do Poder Legislativo e a ineficiência na fiscalização e gestão de recursos públicos pelo Poder Executivo fazem com que a sociedade coloque imensa pressão sobre o Poder Judiciário, considerando-o a tábua de salvação nesse aparente naufrágio republicano. O incidente jurídico-automobilístico não poderia ter vindo em momento mais delicado, pois o desprestígio do Poder Judiciário poderá trazer a sensação de que casos como esse são sururus encenados entre rotos e maltrapilhos. Não se está fazendo o prejulgamento de nenhum dos envolvidos nessa celeuma específica; a presunção de inocência é dogma, tanto para quem o dedo é apontado, como para quem aponta o dedo.
Na verdade, do ponto de vista tributário, o que realmente chama a atenção nesse episódio é o valor dos veículos apreendidos na ação criminal e, por conseguinte, o correspondente valor do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (“IPVA”), que se estima em torno de R$ 70 mil ao ano [2]. Ora, caso tivesse sido efetivada a pena de perdimento e tivessem sido alienados os veículos no leilão, haveria efetiva remoção da propriedade do empresário, não havendo que se falar, portanto, no pagamento de IPVA dos anos seguintes.
Como até o momento não se tem ciência de tal fato, o seguinte questionamento emerge: estando os veículos sob a custódia do Poder Judiciário – não apenas bloqueados, mas apreendidos sem intenção ou previsão de devolução – ainda poderia se dizer que a propriedade dos mesmos permanece com o empresário? Em outras palavras, mesmo sem o uso, o gozo, a disposição ou a expectativa de reaver os bens em questão, deveria o empresário pagar o correspondente IPVA?
Inclina-se[3] a defender que imposto não é devido a partir da apreensão dos veículos e enquanto essa situação perdurar.
O IPVA é um imposto que incide sobre a propriedade de veículos automotores, de competência estadual. Por ser relativamente recente[4], o IPVA não está previsto expressamente no rol de espécies tributárias do Código Tributário Nacional, de 1966. E a Constituição de 1988 apenas determina que a competência para a instituição e a cobrança desse imposto sobre a propriedade de veículos automotores será dos Estados e do Distrito Federal, sem maiores detalhamentos. A competência desses entes é plena [5], eis que ainda não foi editada lei complementar que pudesse fixar as normas gerais a serem seguidas de forma uniforme ou mesmo resolver conflitos de competência entre esses entes. Diante da liberdade dos entes para legislar sobre a questão e a simplicidade dos termos, é preciso analisar o conceito de “propriedade” em sua acepção civil para responder a questão proposta.
Acontece que no Código Civil não há a definição do conceito de propriedade, sendo encontrado em seu texto, especificamente no artigo 1.228, a essência daquilo que vem a ser a propriedade, quando o legislador faculta ao proprietário “usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Arrisca-se dizer, pois, que a propriedade consiste no mais completo dos direitos subjetivos, na matriz dos direitos reais e no núcleo do direito das coisas [6].
Esse entendimento deve ser complementado com o conceito de posse objetiva previsto no artigo 1.196 do Código Civil, no sentido de ser possuidor “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não de algum dos poderes inerentes à propriedade” [7]. A propriedade de um bem, móvel ou imóvel, é exercida de forma plena quando se tem a posse, direta ou indireta.
No caso do empresário, não há como negar que a ordem judicial restringiu a propriedade de seus veículos de forma incisiva. A retirada de todos os poderes inerentes à propriedade – e, por conseguinte, da posse – descaracteriza, mesmo em âmbito cautelar, o fato gerador do IPVA, impossibilitando sua cobrança pelo Fisco. Não poderia ser diferente eis que o “direito de propriedade sem posse, uso, fruição e incapaz de gerar qualquer tipo de renda ao seu titular deixa de ser, na essência, direito de propriedade, pois não passa de uma casca vazia à procura de seu conteúdo e sentido, uma formalidade legal negada pela realidade dos fatos” [8].
Quando da análise do conceito de propriedade para fins de delimitação do fato gerador do Imposto Predial Territorial Urbano (“IPTU”), o Superior Tribunal de Justiça também utilizou essa linha de raciocínio, depurando o binômio propriedade-posse, à luz da teoria da posse objetiva (direta e indireta) e subjetiva (animus domini) [9]. Firmou-se entendimento no sentido de ser permitida a cobrança do IPTU tão-somente do proprietário em sentido estrito, assim entendido aquele que tem todos ou os principais direitos sobre o bem, excluindo figuras como o locatário ou arrendatário, por exemplo [10]. Esse entendimento pode ser perfeitamente transplantado para o IPVA e aplicado, em sentido contrário, ao caso em questão. Ora, se o empresário é privado de todos os direitos de propriedade relativos aos veículos pela decisão judicial, não pode o mesmo ser considerado proprietário para fins de pagamento do tributo – e o mero fato de seu nome ser mantido nos órgãos de registro de veículos não seria suficiente para alterar essa situação.
Nem se alegue que a decisão judicial no referido caso concreto teria natureza cautelar, reversível e sem representar uma penalidade concreta; afinal, o litígio sequer recai sobre direitos da propriedade dos veículos propriamente ditos. Os veículos na verdade estão sendo acautelados para garantir o cumprimento antecipado de decisão judicial final eventualmente desfavorável ao empresário. O Poder Judiciário poderia determinar a indisponibilidade dos veículos (com a expedição de ofício aos órgãos de registro competentes, formalizando a impossibilidade da venda), mas preferiu determinar a mais drástica das medidas, com possível intuito de incorporação definitiva dos bens (ou produto da venda) ao patrimônio público, quiçá com contornos de violação ao devido processo legal.
Todavia, não se chega ao descaramento de se defender que toda e qualquer perda da posse direta do veículo ensejará o não pagamento do IPVA. [11] Imagine que o empresário tenha estacionado o tal utilitário de luxo em local proibido e que este tenha sido rebocado até um depósito público. Nesse caso, a apreensão do veículo decorreu do poder de polícia da Administração Pública; a retenção desse bem não tem, desde o início, a intenção de aplicar a pena de perdimento e incorporação ao patrimônio público. Feito o pagamento das multas e das custas de reboque/depósito, o empresário terá prontamente seu veículo de volta. Por isso, o IPVA continuaria sim sendo devido integralmente. Repare-se então que, tanto na situação real como na fictícia do empresário, o contribuinte está sendo de certa forma penalizado, com reflexos diretos na propriedade do veículo, o que não significa necessariamente que o resultado final tenha que ser o mesmo. O que vai determinar a (im)possibilidade da cobrança do IPVA será justamente o grau de restrição da sua propriedade-posse.
Mas isso não é tudo. Outro aspecto que também ajuda a complementar o raciocínio exposto reside no fato de o IPVA ser um imposto de fato gerador contínuo (ou não pontual), que leva em consideração a existência da propriedade ao longo do ano, do primeiro ao último dia. Por isso, com base no principio da capacidade contributiva, não é raro legislações estaduais considerarem também o aspecto temporal para fins de quantificação do IPVA. Não é o fato de ter a propriedade do veículo em algum momento pontual do ano que dará ensejo à cobrança do IPVA de forma integral.
Tanto isso é verdade, que quando um contribuinte adquire e licencia um carro zero quilômetro no mês de novembro há a ocorrência do fato gerador do imposto, mas essa propriedade não se verificou no primeiro dia do ano. Geralmente o Estado não faz a cobrança do IPVA de forma integral desse contribuinte, mas sim proporcional, com base nos meses do ano em que houve a propriedade (2/12 – novembro e dezembro). Da mesma forma, um contribuinte que tem seu carro furtado ou roubado no mês de julho, o fato gerador do IPVA começa no início do ano, mas não se aperfeiçoa ao término do ano, pois a propriedade do veículo lhe foi retirada, de forma alheia à sua vontade. Comprovada a ocorrência desse evento por autoridade policial e atendidas certas condições, o Estado poderá cobrar o IPVA de forma proporcional (7/12 – janeiro a julho) e, caso já pago integralmente, permitir até mesmo que haja a repetição do indébito (devolução) (5/12 – agosto a dezembro). [12]
Em conclusão, como o direito de propriedade não é absoluto e permite mitigação, respeitados os pressupostos legais, não será toda e qualquer limitação desse direito pelo Poder Judiciário que irá afastar a cobrança do IPVA. Todavia, sempre que os direitos inerentes à propriedade forem retirados na sua totalidade ou atingidos no seu âmago por decisão judicial, ainda que nas hipóteses permitidas por lei, a cobrança do IPVA revelar-se-á indevida. Não se busca fazer uma análise extensiva de isenção para evitar o recolhimento do imposto [13] – até porque de isenção não se trata [14] – e sim analisar o conceito de propriedade de forma adequada ao direito privado [15], inclusive como forma de efetivação de justiça fiscal.
Voltando ao caso concreto, do ponto de vista tributário, recomenda-se que o empresário comunique formalmente o Fisco acerca da apreensão de seus carros por força de decisão judicial, de forma a dar ciência da perda da propriedade dos seus veículos e da impossibilidade de cobrança do IPVA, além de atentar para eventuais lançamentos futuros enquanto essa situação perdurar. Caso isso aconteça, deverá o empresário apresentar impugnação administrativa ou ajuizar medida judicial para suspender a exigibilidade do crédito tributário e impedir o prosseguimento da execução fiscal.
Já do ponto de vista institucional, se verídicas as notícias divulgadas nos meios de comunicação, o magistrado deveria ter seguido o conselho de Ferris Bueller e devolvido o utilitário de luxo ao depósito da Polícia Federal em marcha à ré, assim o odômetro não iria parecer alterado e ao final não haveria provas de que o veículo saíra do lugar [16].
Notas:
1- Curtindo a Vida Adoidado (“Ferris Bueller’s Day Off”) – 1986 – Paramount Pictures –https://www.youtube.com/watch?v=iSjS-iCPeW8 – todos os direitos reservados.
2- Cálculos rústicos, para fins ilustrativos, levando em consideração o valor atribuído pelo avaliador judicial apenas aos carros apreendidos designados para leilão (uma Lamborghini Aventador, um Smart Fortwo, e três Toyotas Hilux blindadas, conforme matéria publicada em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/02/defesa-de-eike-pede-adiamento-de-leilao-de-bens-do-empresario-no-rio.html.) e alíquota fixa de 4% para carros de passeio a gasolina.
3- Disclaimer: por mais que a atual situação financeira do empresário não seja tão promissora quanto outrora, não se está aqui a defendê-lo de forma dativa ou pro bono. O que se faz é propor, a partir de um caso concreto, um debate voltado inicialmente e não peremptoriamente para a defesa do contribuinte amorfo (sem etnia, gênero ou classe social) contra os excessos do afã arrecadatório do Fisco.
4- O IPVA foi criado em 1985 por meio da Emenda Constitucional nº 27, que alterou a Constituição de 1967 e foi ratificado no artigo 155, inciso III, da Constituição de 1988.
5- Constituição Federal de 1988: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; (…) § 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º – Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.”
6- Há quatro elementos básicos que revelam a essência da propriedade: o jus utendi, ou direito de usar, que consiste na faculdade de o dono servir-se da coisa e de utilizá-la da forma que entender mais conveniente, podendo excluir terceiros de igual uso; o jus fruendi, ou direito de gozar ou de usufruir, que consiste no direito de usufruir ou de gozar da coisa, compreendendo o poder de perceber os frutos naturais e civis da coisa e de aproveitar economicamente os seus produtos; o jus abutendi, ou direito de dispor da coisa, que trata do direito de transferir ou alienar a coisa a qualquer título, consumir o bem, dividi-lo ou gravá-lo; e, por fim, o rei vindicatio, que consiste no direito de reaver, de reivindicar a coisa das mãos de quem injustamente a possua ou detenha.
7- O Código Civil adota a teoria objetiva da posse, defendida por Rudolf von Ihering, que consiste na exteriorização da propriedade (a visibilidade ou aparência da propriedade), de forma que o corpus seria o agir, se comportar como proprietário. É o elemento objetivo da posse, qual seja, a conduta externa de quem a detém, não havendo necessidade de que o detentor da posse exerça eventual poder físico sobre a coisa. O elemento psíquico da posse, isto é, o animus, não consiste no intuito de ser dono (animus domini), mas tão somente na consciente vontade de proceder, de agir como o proprietário (affectio tenendi), ainda que não haja vontade de ser dono. Esta é a principal característica da teoria objetiva, a desnecessidade da intenção de ser o dono da coisa, bastando, para caracterizar-se a posse, independentemente da intenção, o procedimento externo.
8- STJ – REsp 963.499/PR – Rel. Min. Herman Benjamim – Segunda Turma – DJe 14/12/2009.
9- A teoria subjetiva da posse, defendida por Friedrich Karl von Savigny, consiste no poder de fisicamente dispor da coisa com o intuito de tê-la como sua e de resguardá-la eventuais de eventuais ataques de terceiros. Para Savigny, a posse possui dois elementos essenciais: corpus e animus domini, sendo o corpus o elemento objetivo, externo, que representa o poder físico da pessoa com relação à coisa, bem como o poder de defendê-la de violações externas. Já o animus domini consiste no elemento subjetivo, interno, psíquico, consubstanciado na intenção de ter a coisa como se proprietário fosse. A posse representa a soma desses dois elementos, que, individualizados, não gerariam posse, eis que, na ausência do animus domini, verifica-se mera detenção da coisa em nome de outrem, bem como na ausência do corpus, torna-se inexistente o contato material com a coisa, tornando igualmente inexistente a repercussão do fenômeno no mundo jurídico. Note-se que, para Savigny, diante da inexistência do animus domini, o comodatário, o depositário, o locatário e o mandatário, por exemplo, seriam são meros detentores – e não possuidores – o que vedaria a defesa de direitos oriundos de tais situações jurídicas por meio de ações possessórias.
10- Vide a esse respeito: “TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IPTU. SUJEITO PASSIVO. AUSÊNCIA DE ANIMUS DOMINI. PROPRIETÁRIO EM SENTIDO FORMAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que somente a posse com animus domini é apta a gerar a exação predial urbana. 2. Agravo regimental não provido.
(STJ – AgRg AREsp 544086/RJ – Processo 2014/0166490-8 – Relator(a) Ministro Mauro Campbell Marques – Segunda Turma – DJe 30/09/2014)
“TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ARRENDATÁRIA DE ÁREA NO PORTO DE SANTOS. PROPRIEDADE DA UNIÃO. AUSÊNCIA DE ANIMUS DOMINI. COBRANÇA DE IPTU. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Consoante a jurisprudência desta Corte, a arrendatária de imóvel localizado no Porto de Santos, de propriedade da União, não é responsável tributária pelo recolhimento do IPTU, nos termos do artigo 34 do CTN, haja vista tratar-se de posse fundada em direito pessoal, exercida, portanto, sem ‘animus domini’. 2. Precedentes: AgRg no AREsp 152.656/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 15/05/2012, DJe 23/05/2012; AgRg no AREsp 80.464/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 18/12/2012, DJe 05/02/2013; AgRg no Ag 1.341.800/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, julgado em 27/11/2012, DJe 03/12/2012; AgRg no AREsp 349.019/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 19/09/2013, DJe 26/09/2013; AgRg no REsp 1.173.678/SP, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe de 30.8.2011. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(STJ – AgRg AREsp 140487/SP – Processo 2012/0016972-6 – Relator(a) Ministro Sérgio Kukina – Primeira Turma – DJe 25/03/2014 RTFP vol. 116 p. 320)
11- De fato, a ausência de posse direta de bem móvel por si só não afastaria a cobrança de IPVA e uma situação que demonstra isso sem muito esforço é a da contratação de leasing de um veículo. Em termos bem simplórios, a empresa de leasing possui a propriedade do carro, cuja posse direta é transferida para o arrendatário, que paga um valor periódico pela utilização do veículo e o utiliza como quase se seu fosse, com a possibilidade de comprá-lo ao final do contrato, momento em que ocorrerá a efetiva transferência da propriedade. Quem deve pagar o IPVA desse carro na vigência do contrato: a empresa de leasing (que detém a propriedade) ou o arrendatário (que detém a posse direta)? A legislação geralmente reconhece a existência do interesse de ambos no fato gerador do imposto e estabelece a responsabilidade tributária solidária (situação em que ambos podem ser cobrados). Na prática, nenhum dos dois poderá invocar o benefício de ordem: a empresa de leasing (por ser proprietária/contribuinte) não poderá requerer que se cobre primeiro do arrendatário, tampouco o arrendatário (por ser possuidor direito/responsável tributário solidário) poderá requerer que se cobre primeiro da empresa de leasing. Quando assim está previsto expressamente, pois solidariedade não se presume, a legislação parece adequada, pois reconhece a celebração de um contrato (consentimento entre as partes) específico, cotidiano e relevante, bem como, por conseguinte, a propriedade da empresa de leasing (tanto que a permite dispor do carro da maneira que quiser, até mesmo ceder a um terceiro) e a posse direta de boa-fé do arrendatário, inclusive com possibilidade de compra ao final.
Vide os ensinamentos do Exmo. Min. Francisco Falcão no julgamento do REsp n. 868.246/DF (DJ 18.12.2006): “Com efeito, no tocante à solidariedade, in casu, entre arrendante e arrendatário, ao pagamento do IPVA, verifica-se que a figura do arrendante equivale a de possuidor indireto do veículo, posto ser-lhe possível reavê-lo em face de eventual inadimplemento, uma vez que somente com a tradição definitiva poderia ser afastado o seu direito real alusivo à propriedade, ou não haveria razão para a cláusula ‘com reserva de domínio’, que garante exatamente o seu direito real decorrente da propriedade. A classificação doutrinária que subdivide os tributos em reais e pessoais reforça a assertiva lançada, posto que no contrato de arrendamento mercantil a arrendante mantém a propriedade do bem arrendado, de modo a tornar o IPVA um ‘tributo real’, tendo como conseqüência lógica a possibilidade de solidariedade ex vi legis em relação ao pagamento da exação. Nesse contexto, não se deve confundir contribuinte do tributo com responsável pelo pagamento, uma vez que a segunda figura, notadamente quando se relaciona com o instituto da solidariedade, apenas reforça a proteção ao crédito tributário, viabilizando sua realização para o Erário Público.”
12- O mesmo raciocínio se aplica para casos de perda total do veículo por ocorrência de sinistro, apropriação indébita, estelionato, entre outros casos. Apesar de tratarem de hipóteses nas quais há perda da propriedade, reparem que nesses exemplos o aspecto temporal complementa o conceito de propriedade na acepção civil, com influência direta na quantificação do IPVA devido ou recolhido a maior.
13- CTN: “ Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; (…)
14- As questões são postas em momento anterior (ou concomitante, se considerado o fato gerador contínuo) à própria incidência do tributo. A isenção pressupõe a concretização/aperfeiçoamento do fato gerador e ensejaria a necessidade de pagamento do tributo, não fosse a opção do legislador de dispensar o contribuinte da obrigação tributária. Com a devida vênia, analisar a questão do IPVA sob o ângulo da isenção foi o equívoco cometido pelo TJMG no julgamento da AC 1.0024.11.016138-7/001 – 4ª Câmara Cível – Relatora Des Heloísa Combat – j. 07.03.2013 – Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte, a 64, nº 204, p. 41-218, jan/mar. 2013. “Apreensão de veículo pela Polícia Rodoviária Federal – Apuração de prática de contrabando e descaminho – Denúncia rejeitada – Isenção de IPVA – Período de indisponibilidade do automóvel – Descabimento – Ato legal – Hipótese de isenção não prevista em lei – Art. 3º da Lei Estadual nº 14.937/2003 – Imposto devido”.
15- CTN: “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
16- “(Cameron Frye) – He knows the mileage, Ferris.
(Ferris Bueller) – He doesn’t trust you?
(Cameron Frye) – Never has, never will…
(Ferris Bueller) – Look, this is real simple: whatever miles we put on, we take off…
(Cameron Frye) – How?
(Ferris Bueller) – We drive home backwards!”
Alaim Rodrigues Neto / Renato Miragaya Rebello
Alaim Rodrigues Neto: Alaim Rodrigues Neto, advogado especializado em direito tributário, graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/Faculdade Nacional de Direito (UFRJ/FND).
Renato Miragaya Rebello: Renato Miragaya Rebello, advogado especializado em direito civil, graduado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade Nacional de Direito (UERJ).