ICMS na importação de mercadoria pelo regime de arrendamento mercantil internacional

Hugo Funaro

Está na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal o RE 540.829/SP, que versa sobre a incidência do ICMS na importação de bens objeto de contrato de arrendamento mercantil internacional. O caso é relevante, pois está em jogo a racionalidade do sistema tributário. A tributação em questão envolve os limites da competência tributária estadual e municipal em matéria de arrendamento mercantil e pode interferir na competitividade dos bens estrangeiros e nacionais. É preciso, portanto, que o STF examine o tema de forma ampla, levando em consideração inclusive pronunciamentos anteriores da Corte sobre questões correlatas, particularmente as julgadas nos RREE 158.834-9/SP, RE 206.069/SP, 439.796/PR , 461.968/SP, 592.905 RG/SC e 547.245/SC.

Explica-se.

Como se sabe, há diversas modalidades de arrendamento mercantil (leasing). As mais comuns são: operacional, em que o arrendatário compromete-se a pagar pelo uso do bem e, após o término do prazo previsto, deve devolvê-lo ao arrendador; e financeiro, em que o arrendatário pode optar pela aquisição do bem ao final do contrato, pagando o valor residual remanescente após o cômputo das parcelas pagas durante o prazo contratual.

O caso concreto a ser julgado pelo STF é de leasing operacional.Ao examinar caso idêntico, em outra oportunidade, decidiu o Plenário que não há transferência da propriedade que caracterize “operação de circulação de mercadoria” tributável pelo ICMS (RE 461.968/SP). Tal requisito — transferência de propriedade — é exigido inclusive em matéria de importação (RE 439.796/PR), o que significa dizer que o imposto não incide na mera entrada física do bem em território nacional, mas sim na “entrada jurídica” do bem no patrimônio do seu destinatário. Essa posição seria coerente com o entendimento externado pela corte no RE 158.834-9/SP, segundo o qual não constitui fato gerador do ICMS a saída física de bem cedido em locação no mercado interno, figura equivalente à do leasing operacional internacional.

A aplicação, ao arrendamento de bens importados, do mesmo tratamento conferido em matéria de ICMS aos bens nacionais cedidos em locação se justifica inclusive por imperativo de isonomia, presente na regra do artigo 152 da CF, segundo a qual “é vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino”. Por isso, afigura-se de todo recomendável que a Corte mantenha o seu entendimento anterior sobre o tema.

Questão mais delicada — e que pode vir a ser abordada no julgamento do leading case referido — é saber se o ICMS incide no arrendamento mercantil financeiro. Ao analisar caso versando sobre esse tipo de contrato, decidiu o STF pela incidência do tributo (RE 206.069/SP). Todavia, posteriormente, entendeu a corte que, no leasing financeiro interno, sobressai a prestação de serviços caracterizada por “uma série de atos que pode, de alguma forma, ser reduzida à produção individualizada de uma só atividade”, sujeita à competência tributária municipal (conforme votos vencedores do ministro Cézar Peluso, nos RREE 592.905 RG/SC e 547.245/SC). Diante da rigidez do sistema constitucional de partilha de competências impositivas, uma mesma realidade não pode, ao mesmo tempo, ser tributada pelo ICMS e pelo ISS.

Assim, tendo sido definido que o leasing financeiro interno sujeita-se ao ISS, é de esperar que o STF, de forma coerente, declare a impossibilidade de cobrança do ICMS sobre a importação de bens objeto de leasing financeiro internacional, de sorte a evitar a bitributação, já que a LC 116/2003 prevê a incidência do imposto municipal também na importação (a despeito da inexistência de previsão constitucional expressa, questão que deverá ser analisada oportunamente pelo STF). Ademais, durante o prazo do contrato, não há transferência de propriedade e as parcelas pagas ao arrendador caracterizam-se como remuneração pela prestação de serviço típico, inconfundível com aqueles alcançados pelo ICMS (transporte intermunicipal e interestadual e comunicação). Logo, não há “entrada jurídica” do bem no patrimônio do destinatário que permita a incidência incondicional do imposto estadual na importação do bem arrendado.

Uma forma de compatibilizar o tratamento da importação com aquele adotado no âmbito interno, como decorrência do já referido artigo 152 da CF, seria admitir a cobrança do ICMS na importação sob condição suspensiva, apenas na eventualidade de a propriedade do bem importado vir a ser transferida ao arrendatário, como previsto no artigo 3º, inciso VIII, da LC 87/96 e de forma coerente com os artigos 116, inciso II e 117, inciso I, do CTN. Embora tenha o STF entendido que o referido artigo 3º, inciso VIII, da LC 87/96 só se aplicaria ao arrendamento mercantil interno (RE 205.069/SP), não haveria óbice à sua aplicação também ao arrendamento internacional. Bastaria aos Fiscos estaduais criarem instrumentos de controle da devolução ou nacionalização do bem objeto do contrato.

Outra alternativa seria admitir a exigência do ICMS sob condição resolutiva, assegurando-se a restituição do valor recolhido na importação, caso não exercida, no futuro, a opção de compra do bem arrendado. Neste caso, porém, seria necessária a edição de nova lei complementar (e de leis estaduais com ela compatíveis — RE 439.796/PR) para possibilitar a exigência do tributo, tendo em vista a necessidade de uniformizar a cobrança do tributo nesses moldes e de prever mecanismo que assegure a imediata e preferencial restituição, à semelhança do que ocorre em matéria de substituição tributária (artigo 150, parágrafo 7º da CF combinado com artigo 10 da LC 87/96).

Em qualquer hipótese, a exigência do ICMS estaria limitada ao valor do bem, não compondo sua base de cálculo o valor atinente aos serviços, teoricamente tributáveis pelo ISS.

Portanto, o julgamento do RE 540.829/SP não envolve apenas tese relacionada ao ICMS, mas uma questão fundamental para a correta delimitação e exercício das competências impositivas dos Estados, Distrito Federal e Municípios e para o equilíbrio competitivo de empresas estrangeiras e nacionais, razão pela qual deve-se ter presente todo o contexto legislativo e jurisprudencial que envolve as diversas modalidades de arrendamento mercantil, de sorte a preservar-se a racionalidade do sistema tributário.

Hugo Funaro

Advogado tributarista, mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP, e sócio do Dias de Souza Advogados Associados.

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