Precatórios e a compensação com débitos tributários: perspectivas a partir do julgamento do pedido de modulação dos efeitos da decisão proferida na ADI 4.425

Daniel Moreti

1 – O regime de pagamento de obrigações do poder público constituídas por decisão judicial transitada em julgado: os precatórios

Os precatórios decorrem de decisões judiciais transitadas em julgado contra a Fazenda Pública, as quais se originam, necessariamente, em litígios havidos com terceiros.

Em razão da impenhorabilidade dos bens públicos, não é dado ao credor de um determinado direito perante o Poder Público se valer dos meios comuns para recebimento forçado de seu crédito, ou seja, a sistemática dos precatórios tem como fundamento o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos, a qual impede a execução contra a Fazenda Pública pelo rito comum.

Por tal razão a Constituição da República prevê que o pagamento de débitos da Fazenda Pública reconhecidos em decisão judicial transitada em julgada será efetuado por meio dos chamados "precatórios", que seguirão a ordem de apresentação.

A instituição desse sistema veio para moralizar o pagamento das obrigações do Poder Público, vedando especialmente a concessão de privilégios, em homenagem aos princípios da moralidade e da isonomia.

A primeira Constituição a tratar do tema foi a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 (01), que estabeleceu o pagamento dos precatórios na ordem de sua apresentação, pois antes do advento da aludida Carta Constitucional o pagamento dos precatórios ficava submetido essencialmente à vontade do administrador público.

Atualmente a Constituição Federal de 1988 estabelece expressamente no caput do art. 100 que os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

O termo "precatório" é ambíguo, pois serve tanto para designar o sistema a que se submetem as obrigações do Poder Público reconhecidas por decisão judicial transitada em julgado, como para fazer referência a denominação atribuída ao documento que relata essa obrigação da Fazenda Pública.

Conforme leciona Regis Fernandes Oliveira:

"precatório ou ofício precatório é a solicitação que o juiz da execução faz ao presidente do tribunal respectivo para que ele requisite (à Fazenda Pública devedora) verba necessária ao pagamento de credor de pessoa jurídica de direito público, em face de decisão judicial transitada em julgado." (02)

O precatório, portanto, é instrumento que representa a solicitação (ofício requisitório) que o juiz da execução da sentença faz ao Presidente do respectivo Tribunal, para que este solicite ao Poder Executivo os recursos financeiros necessários para pagamento das obrigações da fazenda pública constituídas por decisão judicial transitada em julgado.

Conforme o art. 730 do Código de Processo Civil, na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, citar-se-á a devedora para opor embargos em 10 (dez) dias; se esta não os opuser, no prazo legal, observar-se-ão as seguintes regras: a) o juiz da execução requisitará o pagamento por intermédio do Presidente do Tribunal competente; b) far-se-á o pagamento na ordem de apresentação do precatório e à conta do respectivo crédito.

Esta organização sistematizada para pagamento dos precatórios forma uma espécie de "fila" que atende a critérios objetivos para pagamento.

Todavia, é prática corrente no Brasil o não cumprimento das obrigações representadas por precatórios judicias, configurando verdadeira deslealdade do Estado para com os cidadãos.

Estima-se que a dívida que configura o chamado "estoque de precatórios", considerando todos os Estados e Municípios somava 94 bilhões de reais no final de 2013. No Estado de São Paulo, conforme informação divulgada pela Procuradoria Geral do Estado, esse montante chegou a 21,2 bilhões de reais, em 30/04/2014 (03).

Esse inadimplemento por parte do poder público acarreta consequências das mais variadas naturezas, em especial a cessão ou "comércio" desses direitos, em negócios jurídicos regulares, com fulcro no parágrafo 13 do art. 100 da Constituição (04) e no artigo 286 do Código Civil (05).

Adquiridos com considerável deságio, esses direitos são utilizados pelos cessionários/adquirentes em face da fazenda pública devedora para tentar a "quitação" de obrigações tributárias por meio de compensação.

Não significa que a cessão de direitos relativos a precatórios tenha um resultado inconteste e a salvo de questionamentos por parte das fazendas públicas, pois outras demandas têm surgido em decorrência do comércio de precatórios.

Nesse sentido destaca-se o entendimento Superior Tribunal de Justiça, em decisão que assegura à fazenda pública o direito de rejeitar a nomeação de precatórios como garantia em execução fiscal, em virtude de outros bens e direitos ocuparem posição de prevalência na ordem legal de penhora do art. 656 do CPC ou nos arts. 11 e 15 da Lei de Execuções Fiscais (06).

Com efeito, o grande inadimplemento de obrigações do poder público representadas por precatórios tem provocado intenso movimento no Poder Constituinte derivado, bem como da Corte Suprema de nosso país.

A última alteração à Constituição da República para tratar da matéria se deu por meio da Emenda Constitucional nº 62, de 09 de dezembro de 2009, alterando a redação do art. 100.

Em março de 2013, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI – 4.425, declarou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos veiculados pela EC nº 62/2009. (Foram julgadas em conjunto com a ADI 4.425 as ADIs 4.357, 4.372 e 4.400).

Eis a ementa da decisão publicada no Diário da Justiça Eletrônico em 19 de dezembro de 2013.

DIREITO CONSTITUCIONAL. REGIME DE EXECUÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA MEDIANTE PRECATÓRIO. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL NÃO CONFIGURADA. INEXISTÊNCIA DE INTERSTÍCIO CONSTITUCIONAL MÍNIMO ENTRE OS DOIS TURNOS DE VOTAÇÃO DE EMENDAS À LEI MAIOR (CF, ART. 60, §2º). CONSTITUCIONALIDADE DA SISTEMÁTICA DE "SUPERPREFERÊNCIA" A CREDORES DE VERBAS ALIMENTÍCIAS QUANDO IDOSOS OU PORTADORES DE DOENÇA GRAVE. RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À PROPORCIONALIDADE. INVALIDADE JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA LIMITAÇÃO DA PREFERÊNCIA A IDOSOS QUE COMPLETEM 60 (SESSENTA) ANOS ATÉ A EXPEDIÇÃO DO PRECATÓRIO. DISCRIMINAÇÃO ARBITRÁRIA E VIOLAÇÃO À ISONOMIA (CF, ART. 5º, CAPUT). INCONSTITUCIONALIDADE DA SISTEMÁTICA DE COMPENSAÇÃO DE DÉBITOS INSCRITOS EM PRECATÓRIOS EM PROVEITO EXCLUSIVO DA FAZENDA PÚBLICA. EMBARAÇO À EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO (CF, ART. 5º, XXXV), DESRESPEITO À COISA JULGADA MATERIAL (CF, ART. 5º XXXVI), OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES (CF, ART. 2º) E ULTRAJE À ISONOMIA ENTRE O ESTADO E O PARTICULAR (CF, ART. 1º, CAPUT, C/C ART. 5º, CAPUT). IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DO ÍNDICE DE REMUNERAÇÃO DA CADERNETA DE POUPANÇA COMO CRITÉRIO DE CORREÇÃO MONETÁRIA. VIOLAÇÃO AO DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE (CF, ART. 5º, XXII). INADEQUAÇÃO MANIFESTA ENTRE MEIOS E FINS. INCONSTITUCIONALIDADE DA UTILIZAÇÃO DO RENDIMENTO DA CADERNETA DE POUPANÇA COMO ÍNDICE DEFINIDOR DOS JUROS MORATÓRIOS DOS CRÉDITOS INSCRITOS EM PRECATÓRIOS, QUANDO ORIUNDOS DE RELAÇÕES JURÍDICO-TRIBUTÁRIAS. DISCRIMINAÇÃO ARBITRÁRIA E VIOLAÇÃO À ISONOMIA ENTRE DEVEDOR PÚBLICO E DEVEDOR PRIVADO (CF, ART. 5º, CAPUT). INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME ESPECIAL DE PAGAMENTO. OFENSA À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE DIREITO (CF, ART. 1º, CAPUT), AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES (CF, ART. 2º), AO POSTULADO DA ISONOMIA (CF, ART. 5º, CAPUT), À GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL (CF, ART. 5º, XXXV) E AO DIREITO ADQUIRIDO E À COISA JULGADA (CF, ART. 5º, XXXVI). PEDIDO JULGADO PROCEDENTE EM PARTE.
1. A Constituição Federal de 1988 não fixou um intervalo temporal mínimo entre os dois turnos de votação para fins de aprovação de emendas à Constituição (CF, art. 62, §2º), de sorte que inexiste parâmetro objetivo que oriente o exame judicial do grau de solidez da vontade política de reformar a Lei Maior. A interferência judicial no âmago do processo político, verdadeiro locus da atuação típica dos agentes do Poder Legislativo, tem de gozar de lastro forte e categórico no que prevê o texto da Constituição Federal. Inexistência de ofensa formal à Constituição brasileira.
2. O pagamento prioritário, até certo limite, de precatórios devidos a titulares idosos ou que sejam portadores de doença grave promove, com razoabilidade, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e a proporcionalidade (CF, art. 5º, LIV), situando-se dentro da margem de conformação do legislador constituinte para operacionalização da novel preferência subjetiva criada pela Emenda Constitucional nº 62/2009.
3. A expressão "na data de expedição do precatório", contida no art. 100, §2º, da CF, com redação dada pela EC nº 62/09, enquanto baliza temporal para a aplicação da preferência no pagamento de idosos, ultraja a isonomia (CF, art. 5º, caput) entre os cidadãos credores da Fazenda Pública, na medida em que discrimina, sem qualquer fundamento, aqueles que venham a alcançar a idade de sessenta anos não na data da expedição do precatório, mas sim posteriormente, enquanto pendente este e ainda não ocorrido o pagamento.
4. O regime de compensação dos débitos da Fazenda Pública inscritos em precatórios, previsto nos §§ 9º e 10 do art. 100 da Constituição Federal, incluídos pela EC nº 62/09, embaraça a efetividade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), desrespeita a coisa julgada material (CF, art. 5º, XXXVI), vulnera a Separação dos Poderes (CF, art. 2º) e ofende a isonomia entre o Poder Público e o particular (CF, art. 5º, caput), cânone essencial do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput).
5. A atualização monetária dos débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança viola o direito fundamental de propriedade (CF, art. 5º, XXII) na medida em que é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. A inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período).
6. A quantificação dos juros moratórios relativos a débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança vulnera o princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º, caput) ao incidir sobre débitos estatais de natureza tributária, pela discriminação em detrimento da parte processual privada que, salvo expressa determinação em contrário, responde pelos juros da mora tributária à taxa de 1% ao mês em favor do Estado (ex vi do art. 161, §1º, CTN). Declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução da expressão "independentemente de sua natureza", contida no art. 100, §12, da CF, incluído pela EC nº 62/09, para determinar que, quanto aos precatórios de natureza tributária, sejam aplicados os mesmos juros de mora incidentes sobre todo e qualquer crédito tributário.
7. O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com redação dada pela Lei nº 11.960/09, ao reproduzir as regras da EC nº 62/09 quanto à atualização monetária e à fixação de juros moratórios de créditos inscritos em precatórios incorre nos mesmos vícios de juridicidade que inquinam o art. 100, §12, da CF, razão pela qual se revela inconstitucional por arrastamento, na mesma extensão dos itens 5 e 6 supra.
8. O regime "especial" de pagamento de precatórios para Estados e Municípios criado pela EC nº 62/09, ao veicular nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e ao impor o contingenciamento de recursos para esse fim, viola a cláusula constitucional do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), o princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia do acesso à justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).
9. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente em parte.
(ADI 4425, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 14/03/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 18-12-2013 PUBLIC 19-12-2013)

Em breve resumo, os principais pontos objeto da decisão foram: i) o reconhecimento da constitucionalidade para o regime de pagamento prioritário, até certo limite, para idosos e portadores de doenças graves (§2º, do art. 100); ii) a inconstitucionalidade do regime de compensação de ofício, pela Fazenda Pública devedora, dos créditos representados por precatórios com débitos de seu titular (§§ 9º e 10 do art. 100); iii) a inconstitucionalidade do regime de pagamento dos precatórios instituído pela EC nº 62/2009, o qual prevê a vinculação de receita para pagamento em até 15 anos ou a vinculação de percentuais da receita líquida corrente para pagamento em prazo indeterminado (art. 97 do ADCT); iv) a inconstitucionalidade da atualização dos débitos representados por precatórios com base no índice da caderneta de poupança (declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução da expressão "independentemente de sua natureza", contida no art. 100, §12); v) a inconstitucionalidade da limitação e contingenciamento de verbas orçamentárias para pagamento de precatórios pelos Estados e Municípios (art. 97 do ADCT).

Em seguida, Procuradores de diversos Estados apresentaram pedido de modulação dos efeitos da decisão da Suprema Corte, nos termos da Lei nº 9.868/99.

Para evitar a paralização do pagamento dos precatórios pelas unidades federadas, o Ministro Luiz Fux, relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, determinou que, até decisão final acerca da modulação dos efeitos das decisões nas referidas ADIs, os precatórios sejam pagos conforme o regime anterior à declaração de inconstitucionalidade parcial da EC nº 62/2009.

Dessa forma, para os Estados e Municípios que estavam em mora na quitação de precatórios vencidos na data da promulgação da EC nº 62/2009 (09/12/2009), continua sendo aplicado o regime especial previsto no art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a saber: o depósito de recursos em conta especial de percentuais da receita líquida corrente (1% a 1,5% para Municípios e 1,5% a 2% para Estados) para pagamento em prazo indeterminado, ou o depósito em conta especial do montante necessário para pagamento da dívida em até 15 anos.

Feita a necessária contextualização acerca do regime jurídico dos precatórios, ressaltamos que, para este ensaio, o tema que mais nos interessa é aquele que alude à compensação de débitos tributários com créditos representados por precatórios de titularidade do sujeito passivo.

Tal matéria encontra-se em discussão no Supremo Tribunal Federal por oportunidade do julgamento do pedido de modulação dos efeitos da decisão supramencionada.

2 – A compensação de débitos tributários com precatórios

A regra geral sobre a compensação é disciplinada pelo art. 368 do Código Civil, dispondo que, quando duas pessoas forem, ao mesmo tempo, credoras e devedoras uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.

No Direito Tributário a regra acerca da compensação é veiculada no art. 170 do Código Tributário Nacional – CTN, in verbis:

Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública. (Destacamos).

Com base neste dispositivo, as Fazendas Públicas, em geral, têm sistematicamente se posicionado contra a compensação de precatórios com débitos tributários do mesmo sujeito, com o fundamento de que é imprescindível a autorização legislativa do ente federativo para que se implemente a compensação.

Nesse sentido destaca-se importante julgado do Superior Tribunal de Justiça:

"(…) 2. A compensação, modalidade extintiva do crédito tributário, surge quando o sujeito passivo da obrigação tributária é, ao mesmo tempo, credor e devedor, sendo necessário para sua concretização lei autorizadora específica, nos termos do art. 170 do Código Tributário Nacional. " (RESP 1196680, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, Dje. 6/10/10).

Note-se que, de acordo com tal entendimento, a compensação decorreria sempre de uma decisão política mediante autorização legislativa no âmbito das unidades federativas.

Todavia, pesa a favor dos contribuintes o argumento de que a compensação de débitos tributários com créditos oriundos de precatórios encontra fundamento de validade diretamente no art. 78, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, incluído pela EC nº 30/2000:

"Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.
(…)
§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora." (Destacamos).

Trata-se, inegavelmente, de interpretação sistemática atribuída ao art. 170 do CTN com o art. 78, § 2º, do ADCT, fazendo prevalecer o enunciado do ADCT sobre aquele veiculado pelo CTN, aplicando-se a norma que estabelece o poder liberatório do pagamento de tributos em face da entidade devedora do precatório.

Ora, é possível tal interpretação na medida em que o aludido dispositivo do art. 78, § 2º, do ADCT não exige autorização legislativa, em nível de competência das pessoas políticas, para sua aplicação.

Ou seja, é possível a construção de norma individual e concreta, no percurso de positivação do direito, a partir do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para constituir a relação jurídica que prescreve o direito à compensação tributária.

Ademais, as normas veiculadas pelo ADCT têm natureza de norma constitucional e, como tal, não podem ter seu alcance limitado ou reduzido pela legislação infraconstitucional, no caso, o art. 170 do Código Tributário Nacional, que tem status de lei complementar.

Acerca da natureza das normas veiculadas pelo ADCT, destaca-se a lição de José Afonso da Silva:

"As normas das disposições transitórias fazem parte integrante da Constituição. Tendo sido elaboradas e promulgadas pelo constituinte, revestem-se do mesmo valor jurídico da parte permanente da Constituição. Mas seu caráter transitório indica que regulam situações individuais e específicas, de sorte que, uma vez aplicadas e esgotados os interesses regulados, exaurem-se, perdendo a razão de ser, pelo desaparecimento do objeto cogitado, não tendo, pois, mais aplicação no futuro (07).

Em didática abordagem sobre o tema, Isa Gabriela de Almeida Stefano e Miriam Conegusuco ensinam que os dispositivos do ADCT

"São normas de natureza constitucional elaboradas para permitir uma transição entre o ordenamento jurídico anterior e o novo ordenamento criado pela Assembleia Constituinte" (08).

Nesse passo, o art. 78, § 2º, do ADCT é norma que prevalece sobre a "possível" limitação ao direito à compensação tributária estabelecida pelo Código Tributário Nacional, figurando como norma autoaplicável e, dessa forma, sua implementação não depende de autorização pelo Poder Legislativo.

O Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2007, na decisão monocrática do então Ministro Eros Grau nos autos do RE 550.400/RS, asseverou o poder liberatório do pagamento de tributos mediante a compensação com precatórios não pagos, in verbis:

(…) a Constituição do Brasil não impôs limitações aos institutos da cessão e da compensação e o poder liberatório de precatórios para pagamento de tributo resulta da própria lei [artigo 78, caput e § 2º, do ADCT à CB/88]. (RE 550.400, Relator(a): Min. EROS GRAU, j. 28/08/2007, DJ 18/09/2007).

Mais recentemente a 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu no mesmo sentido:

TRIBUTÁRIO – Pretensão da impetrante em pagar o débito tributário com crédito de precatório vencido e não pago – Cabimento – O art. 78, parágrafo 2º, do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais, aduz que as prestações anuais relativas a precatório vencidos e não pagos tem o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora – Norma de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, não dependendo de lei infraconstitucional para regulá-la Sentença reformada – Recurso provido. (Apelação nº 0042757-30.2012.8.26.0053 – São Paulo; Rel. Des. Antonio Carlos Malheiros; j. 03/09/2013). (Destacamos).

Importante observar que o caput do artigo 78 do ADCT estabelece que esse poder liberatório do pagamento de tributos para com a entidade devedora não se aplica aos precatórios de natureza alimentícia.

Todavia, a jurisprudência tem construído interpretação no sentido de que o precatório de natureza alimentícia, quando objeto de inadimplemento por parte poder público, passa a se equiparar ao precatório comum para fins de aplicação do art. 78 do ADCT.

Nesse sentido o excerto do voto do Des. Antonio Carlos Malheiros no julgamento da apelação acima citada, ao abordar o art. 78 do ADCT:

"(…)
Com o advento desta norma, o legislador não teve outra intenção que não fosse permitir a utilização de precatórios vencidos e não pagos para extinguir a obrigação tributária.
E referida norma tem força de norma constitucional, e pode ser aplicada também aos créditos de natureza alimentar.
(…)."

Dessa forma, o poder liberatório do pagamento de tributos decorre do inadimplemento de precatórios originariamente de natureza comum ou alimentícia, pois o precatório não pago, ainda que de natureza alimentícia, passa a se equiparar ao precatório comum para fins de compensação com débitos tributários.

3 – O julgamento do pedido de modulação dos efeitos da decisão proferida na ADI 4.425

No nosso sentir, embora sobejem elementos jurídicos para assegurar o direito à compensação de débitos tributários com créditos representados por precatórios pendentes de pagamento independentemente de autorização legislativa, surge uma importante indicação a significar algum alento no divergente tema da compensação de precatórios com débitos tributários independentemente de autorização legislativa.

Conforme notícia divulgada no site do Supremo Tribunal Federal em 19 de março de 2014 (09), por ocasião do voto-vista proferido pelo Ministro Roberto Barroso no pedido de modulação dos efeitos da decisão proferida nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.425, na qual foi declarada a inconstitucionalidade de diversos dispositivos do art. 100 da Constituição da República (art. 100 com redação alterada pela EC nº 62/2009), ficou consignada a proposta de algumas medidas de transição para viabilizar o pagamento de precatórios pelos entes federativos, a saber:

a) a utilização compulsória, a partir de janeiro de 2015, de 70% do estoque da conta dos depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios;

b) a abertura da possibilidade de negociação com os credores, seguindo a ordem cronológica, com deságio máximo de 25% do valor do precatório;

c) a possibilidade de compensação dos precatórios vencidos com débitos registrados em dívida ativa até a data do julgamento;

d) o aumento, em 1%, da receita corrente líquida de estados e municípios, sendo 0,5% a partir de 2015 e 0,5% a partir de 2016. Pela EC nº 62, essa vinculação varia de 1% a 2% da receita de Estados e Municípios.

A modulação dos efeitos das decisões do STF encontra fundamento no art. 27 da Lei nº 9.868/99 e tem por finalidade, em razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da decisão ou definir um espaço de tempo de sobrevida para a norma declarada inconstitucional.

Notavelmente, ao analisar a necessidade de conformação dos efeitos da decisão proferida na ADI, especialmente em face da "vulgarização" do mercado de precatórios e a multiplicação das ações em tramitação no Poder Judiciário, nas quais se discute o direito dos contribuintes em realizar a compensação de direitos representados por precatórios judiciais com débitos tributários, o Ministro propõe medida que, caso seja aprovada, tende a reduzir as divergências existentes na interpretação da legislação em vigor acerca da matéria e principalmente diminuir os estoques de precatórios dos órgãos da administração pública.

Para tanto, propõe a compensação de precatórios vencidos com débitos inscritos em dívida ativa anteriores ao julgamento da demanda.

Segundo o entendimento do Min. Roberto Barroso, além de reduzir o estoque de precatórios, a medida diminuiria significativamente o montante das dívidas ativas, as quais são dotadas de baixíssima liquidez, ou seja, são de difícil recuperação.

Há de se aguardar, porém, o voto dos demais Ministros da Suprema Corte no aludido pedido de modulação de efeitos (é necessária aprovação de dois terços dos membros do STF para aprovação da modulação dos efeitos da decisão), mas seguramente o voto representa um sinal da tentativa de estabilização das relações entre o poder público e os titulares de precatórios, ao menos em relação aos débitos tributários já inscritos em dívida ativa.

Acaso ratificada a proposta do Ministro Roberto Barroso, estará assegurado o direito à compensação de débitos inscritos em dívida ativa com créditos decorrentes de precatórios.

Todavia, há de se ressaltar que certamente uma nova discussão será inaugurada, pois o parágrafo 2º do art. 78 do ADCT assegura que as prestações anuais relativas a precatórios vencidos e não pagos têm o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, sem especificar tratar-se de créditos tributários inscritos em dívida ativa.

Nesse passo, o direito à compensação deve ser conferido aos titulares de precatórios com débitos inscritos ou não em dívida ativa, pois essa é a norma veiculada pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Votaram também o Min. Luiz Fux, o qual aderiu às quatro propostas do Min. Roberto Barroso e Min. Teori Zavascki. Este último, todavia, divergiu das propostas, pois para ele a modulação deve ser apenas temporal e a proposta do Min. Roberto Barroso estaria indo além desse mister, configurando inovação legislativa não cabível ao STF.

O julgamento encontra-se suspenso em razão do pedido de vista do Min. Dias Toffoli.

É de se esperar que o Supremo Tribunal Federal, pautando-se no princípio da moralidade administrativa, principal premissa desrespeitada com os "calotes" aplicados pelo Poder Público quando do inadimplemento de precatórios, não perca a oportunidade de sanar esse distúrbio nas relações entre Estado e os particulares, o qual é fonte de inúmeras demandas que ingressam diuturnamente no Poder Judiciário, e solucione, em definitivo, esse tema de grande interesse social e econômico.

Considerações finais

É cenário de extrema insegurança jurídica aquele relativo à (im)possibilidade de compensação de precatórios com débitos tributários nos casos em que não exista lei específica da respectiva pessoa política autorizando o encontro de contas, estando a matéria indefinida nos Tribunais pátrios.

Ao proferir sua decisão na ADI 4.425, o STF afastou vários dispositivos do art. 100 da Constituição, com a redação dada pela EC nº 62/2009, pois foram tidos como inconstitucionais. A Corte, porém, ainda não concluiu o julgamento do pedido de modulação dos efeitos da referida decisão.

Por força da apreciação pelo Pretório Excelso do pedido de modulação dos efeitos da decisão proferida na ADI 4.425, é ventilada pelo Min. Roberto Barroso a possibilidade de compensação de precatórios com débitos já inscritos em dívida ativa, sem a condicionante da autorização legislativa para estes casos.

Tal proposta, acaso aprovada na forma do art. 27 da Lei nº 9.868/99, certamente produzirá o principal efeito de reduzir o "estoque" de precatórios das unidades da Federação, na medida em que será possível a compensação dessas obrigações do Poder Público com créditos do sujeito passivo representados por precatório judicial.

Notas

(01) De acordo com o art. 182 da Constituição de 1934: Os pagamentos devidos pela Fazenda federal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão na ordem de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, sendo vedada a designação de caso ou pessoas nas verbas legais.

(02) Curso de Direito Financeiro. Revista dos Tribunais. 5ª ed. Rio de Janeiro: 2013, p. 607.

(03) Fonte: http://www.fazenda.sp.gov.br/contas/precatorios/precatorios_estoque.pdf

(04) § 13. O credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º.

(05) Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

(06) Súmula 406 do STJ: A Fazenda Pública pode recusar a substituição do bem penhorado por precatório.
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. RESOLUÇÃO STJ Nº 08/2008. EXECUÇÃO FISCAL. SUBSTITUIÇÃO DE BEM PENHORADO POR PRECATÓRIO. INVIABILIDADE. 1. "O crédito representado por precatório é bem penhorável, mesmo que a entidade dele devedora não seja a própria exeqüente, enquadrando-se na hipótese do inciso XI do art. 655 do CPC, por se constituir em direito de crédito" (EREsp 881.014/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 17.03.08). 2. A penhora de precatório equivale à penhora de crédito, e não de dinheiro. 3. Nos termos do art. 15, I, da Lei 6.830/80, é autorizada ao executado, em qualquer fase do processo e independentemente da aquiescência da Fazenda Pública, tão somente a substituição dos bens penhorados por depósito em dinheiro ou fiança bancária. 4. Não se equiparando o precatório a dinheiro ou fiança bancária, mas a direito de crédito, pode o Fazenda Pública recusar a substituição por quaisquer das causas previstas no art. 656 do CPC ou nos arts. 11 e 15 da LEF. 5. Recurso especial representativo de controvérsia não provido. Acórdão sujeito à sistemática do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ nº 08/2008. (STJ, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 12/08/2009, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO).

(07) APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, Malheiros Editores, São Paulo, 5ª edição, 1998, p. 204 e ss.

(08) Direito Constitucional. Coleção Método de Estudo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

(09) Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=262868

(10) Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Daniel Moreti

Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor em Cursos de Graduação e Pós-Graduação. Autor de diversas obras e artigos jurídicos de Direito Tributário. Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo - TIT/SP. Advogado em São Paulo.

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