Tributação das companhias securitizadoras
Jeferson Roberto Nonato
A – O que pode ser securitizado?
A expressão "security" está presente no direito financeiro norte-americano como designação genérica das várias espécies de valores mobiliários. São elementos presentes nos "securities": o investidor, o empreendedor, o empreendimento objeto e a expectativa de rentabilidade e risco do investidor (doutrina de Fernando Schwarz Gaggini, in Securitização de Recebíveis, Universitária de Direito, São Paulo, 2.003, fls.23). Entre nós ocorreu, então, o fenômeno do neologismo da expressão inglesa "securities" para designar a operação de transformação de recebíveis, de uma empresa operacional, em valores mobiliários, como sendo uma operação de securitização. Assim é que nos Estados Unidos o órgão regulador do mercado de capitais se denomina SEC – Securities & Exchange Commission, enquanto que no Brasil temos a Comissão de Valores Mobiliários-CVM, como instituição reguladora correspondente.
No Brasil os títulos com "status" de valor mobiliário constam do art. 2º da Lei nº 6.385 de 1.976, alterada que foi pela Lei nº 10.303 de 2.001. Neste dispositivo legal, o legislador ordinário excluiu expressamente do conceito de valor mobiliário, os títulos de dívida pública emitidos pela União, pelos Estados e pelos Municípios (LTN, LFT, NTN e outros), apesar deles circularem de forma semelhante aos valores mobiliários. Também foram excluídos os títulos cambiais emitidos por instituições financeiras. Portanto é forçoso concluir, no ponto, que o fato de um título de crédito ser passível de transferência por endosso ou cessão não faz dele um valor mobiliário, apto, juridicamente, a figurar como instrumento financeiro de captação de recursos por oferta pública.
Não é o momento para digressões sobre a disciplina jurídica de nosso mercado de capitais. O propósito maior da citação legal é demonstrar que a emissão de valores mobiliários deve atender a requisitos formais e materiais presentes em lei. É a lei que reconhece a legitimidade do emitente e a regularidade da emissão, seja em razão da forma, do propósito negocial ou do contrato subjacente.
À bem da verdade impõe-se anotar que a legislação, complementar ou infraconstitucional, que verse sobre o Sistema Financeiro Nacional, surge no mundo jurídico por imposição de explicito comando constitucional, que se extrai do disposto nos arts. 170 e 192 da Carta Magna:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)
Antes da Emenda Constitucional nº 40 de 2.003, assim estava redigido o art. 192 da Constituição Federal:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:
I – a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso;
II – autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial resegurador;
III – as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente:
a) os interesses nacionais;
b) os acordos internacionais;
IV – a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central e demais instituições financeiras públicas e privadas;
V – os requisitos para a designação de membros da diretoria do Banco Central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo;
VI – a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos até determinado valor, vedada a participação de recursos da União;
VII – os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento;
VIII – o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.
§ 1º A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o empreendimento.
§ 2º Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabilidade da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e por elas aplicados.
§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.
Apesar da alteração de redação do art. 192 promovida pelo Constituinte Derivado, permanece firme a restrição feita ao final do parágrafo único do art. 172, o qual retira da ampla liberdade do exercício da atividade econômica, aquelas atividades que só podem acontecer segundo os ditames de lei. Em outras palavras: para atuar no Sistema Financeiro Nacional não basta ter o capital para empreender o negócio desejado; às vezes a própria pessoa do capitalista tem seu ingresso vetado neste especial segmento da economia. Em resumo: os mercados, financeiro e de capitais, funcionam por tipos padronizados de contratos e títulos, e, por certas categorias de agentes, segundo ditames pré-estabelecidos em lei voltada para cada finalidade especifica (marcos regulatórios).
Por tudo isso é que os recebíveis imobiliários podem ser securitizados em conformidade com o disposto na Lei nº 9.514 de 1.997, bem como, os recebíveis agrícolas em conformidade com o disposto na Lei nº 11.076 de 2.004. Certos recebíveis, derivados de operações de crédito de instituições financeiras também podem ser cedidos a companhias securitizadoras em conformidade com o disposto na Resolução BACEN nº 2.686 de 2.000, por autorização expressa do Conselho Monetário Nacional. Enfim é o legislador ordinário quem define o que pode ser securitizado, quem pode securitizar e a forma da securitização.
B – A figura do deságio
Para que se leve a cabo uma operação de securtização de recebíveis é necessário que as partes contratantes, cedente e cessionário, ajustem o deságio da operação, seja ele decorrente de uma única forma de precificação da carteira cedida ou da precificação de crédito por crédito envolvido no contrato. Desta forma quando o crédito cedido for recebido pela instituição securitizadora haverá a realização financeira do deságio que é a fonte natural da remuneração dos investidores que decidiram participar da securitização.
Sob outro ângulo, se pode afirmar que, na securitização de recebíveis, os riscos dos créditos são transferidos para os investidores. Entre outras, esta é uma das razões para que no ato do contrato de cessão de crédito, a cessionária registre o custo de aquisição dos recebíveis pelo valor pago ao cedente e não pelo valor de face do titulo de crédito transferido. Se assim não fosse o fundo de origem de remuneração dos investidores ficaria majorado indevidamente. Esta é uma diferença fundamental entre a fatorização (fomento mercantil) e a securitização.
Temos assim que a figura do deságio ocupa papel central na securitização de recebíveis; sem deságio não há securitização. No entanto, o fato de a instituição securitizadora não ser, por definição legal, uma instituição financeira não implica em dizer que a receita desta securitizadora tenha natureza de receita mercantil ou financeira. Trata-se de receita operacional própria das instituições securitizadoras porque assim estão qualificadas por lei especial. É a lei que identifica a natureza da receita. Justifica-se, neste sentido, a exigência legal de que as companhias securitizadoras de créditos devem adotar, compulsoriamente, a forma de Sociedade de Propósito Específico – SPE desde a constituição da sociedade anônima.
C – Regime tributário das companhias securitizadoras
Em 2.010 foi publicada a Lei nº 12.249, cujo art. 22 foi expresso nos seguintes termos:
Art. 22. O art. 14 da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VII:
"Art.14.
VII – que explorem as atividades de securitização de créditos imobiliários, financeiros e do agronegócio." (NR)
Esta modificação legal teve por finalidade impedir os planejamentos tributários que vinham acontecendo pela via do instituto da securitização, quando o crédito de uma empresa sujeita ao regime do lucro real eram cedidos com deságio para uma empresa interligada optante do lucro presumido, cujo coeficiente de presunção de lucro era aplicado exclusivamente sobre a receita operacional da securitizadora interligada, o qual, como já vimos se consubstancia apenas no deságio realizado.
Deste ato legal se pode deduzir a firme obediência do legislador ao princípio da estrita legalidade tributária. Vetou-se o planejamento tributário por via de lei, ficando assente que o legislador identificou uma disfunção no sistema normativo tributário e passou a corrigi-la na exata medida do necessário. Neste tom não se pode imaginar que o legislador tributário desconhecia o fato de que o coeficiente de presunção de lucro, no regime tributário do lucro presumido, recaía somente sobre o deságio. Não há um sinal sequer de que alguém pudesse conceber que o produto do recebimento de um crédito fosse equiparado à receita da securitizadora, e, como tal, sobre ele ser imputado o coeficiente de presunção de lucro. Se assim fosse não haveria nenhuma razão lógica para se editar a norma anti-elisiva em foco.
Não pode, também, passar despercebido o fato de que a norma anti-elisiva limitou seu alcance aos créditos de instituições financeiras, aos imobiliários e aos do agronegócio. Assim está posto porque até o presente momento só existe disciplina jurídica de securtização para estes três tipos de negócio, que, obrigatoriamente, terão uma sociedade anônima de propósito especifico – SPE-, não financeira, como contraparte na securitização de recebíveis. Lembramos que entre as próprias instituições financeiras existem normas sobre cessão de créditos – Resolução do CMN nº 2.836 de 2.001- que são operações semelhantes à securitização de recebíveis, mas de cunho legal absolutamente diverso.
D-S. D. COSIT nº 08 de 2.011
Toda esta articulação se faz presente em razão da publicação da Solução de Divergência COSIT nº 08 de abril de 2.011. A Receita Federal do Brasil, por intermédio de seu órgão central, expediu a referida Solução de Divergência para por fim à divergência de interpretação entre seus órgãos regionais. Eis o texto da SD:
SOLUÇÃO DE DIVERGÊNCIA Nº 8, DE 13 DE ABRIL DE 2011
D.O.U.: 05.05.2011
ASSUNTO: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ
EMENTA: SECURITIZAÇÃO. LUCRO PRESUMIDO. BASE DE CÁLCULO. Para fins de apuração da base de cálculo do IRPJ das pessoas jurídicas, optantes pelo regime de lucro presumido, que exploram atividade de securitização de créditos, inexiste base legal para excluir da receita bruta auferida o custo de aquisição dos direitos creditórios. O percentual de presunção a ser aplicado sobre a receita ruta é de 8%. Excetuam-se do acima disposto as sociedades securitizadoras de créditos imobiliários, financeiros e do agronegócio, visto que encontram-se obrigadas à apuração do lucro real, de acordo com o inciso VII do art. 14 da Lei nº 9.718, de 1998.
DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, art. 15; Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, art. 3º; Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, arts. 1º e 25, inciso I; Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, art. 31 e parágrafo único; Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, art. 14, inciso VII; Lei nº 12.249, de 11 de junho de 2010, art. 22; Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999, arts. 518, 519 e 224.
FERNANDO MOMBELLI
Coordenador-Geral
Ainda que de forma abstrata, a Ementa da SD sugere a plausibilidade jurídica de que a atividade de securitização possa ser realizada por uma empresa optante pelo regime de lucro presumido, excetuando apenas a securitização dos créditos financeiros, do agronegócio e os imobiliários. Ora, como já vimos as securitizadoras tem receita própria cuja definição da natureza jurídica exige que se conheça o ambiente do negócio, as contrapartes, o objeto securitizado e, principalmente seu marco legal regulatório que ofertará os instrumentos de apuração e qualificação jurídica do fato concreto. Assim, securitização em termos jurídicos, não se confunde com fatorização (fomento mercantil) ou mesmo com a pura cessão de créditos. Securitização é conceito jurídico especial que se toma para fins de imputação de consequências tributárias próprias. Somente a pessoa legalmente autorizada pode praticar a atividade de securitização, propriamente dita.
Atualmente não vislumbramos a possibilidade legal de existir uma empresa que explore a atividade de securitização de créditos que possa optar pelo regime de tributação do lucro presumido.
Os recebíveis mercantis – duplicatas – somente serão considerados securitizados quando cedidos a um fundo de investimento coletivo – FIDC- FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITORIOS – porque existe uma disciplina jurídica especifica para esta operação (Lei nº 6.385/76 art. 2º inciso IX, introduzido pela Lei nº 10.303 de 2.001). Caso sejam cedidos a uma Companhia Securitizadora ter-se-á a operação como mera cessão de crédito tendo em vista a falta de autorização legal para securitização de créditos mercantis por intermédio de companhias securitizadoras.
Esta conclusão pode ser reforçada pelo fato de existir, atualmente, projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, de autoria do Deputado Pedro Eugênio – PT-PE- que tem a exposição de motivos encerrada com as seguintes palavras: "O Projeto de Lei, aqui apresentado, cria o marco legal que permite o uso de operações de securitização com lastro nos títulos da DPMFi, o que permite obter recursos para o financiamento do investimento em infraestrutura. Face o exposto conto com o apoio dos meus nobres pares para sua aprovação na Casa do Povo Brasileiro." (grifamos). Vê-se assim o legislador tributário laborando no sentido de autorizar e disciplinar uma nova modalidade de securitização.
Frente ao duvidoso pressuposto estabelecido nesta Solução de Divergência, que é a possibilidade de tributação no regime do lucro presumido, segue a Ementa para a conclusão de que o lucro presumido decorreria da aplicação do coeficiente de presunção sobre o produto do recebimento do crédito e não sobre o deságio. Assim se depreende porque o texto expressa a impossibilidade de se deduzir o custo de aquisição dos direitos creditórios da receita bruta auferida, em razão da falta de previsão legal para tanto.
Quanto a este critério de interpretação, temos a contrapor:
a – Tal previsão legal não existe e nem poderia existir, eis que o recebimento de um crédito é fato patrimonial que não se amolda a nenhum dos conceitos previstos no art. 31 da Lei nº 8.981 de 1.995 – produto da venda de bens e serviços ou resultado auferido em operações de conta alheia;
b – O instituto da cessão de crédito está previsto nos arts. 286 a 298 de nosso Código Civil; destarte tal conceito não pode ser alterado por qualquer norma tributária- CTN, art. 109;
c – Em conformidade com os I e II do art. 43 do CTN, que assenta o fato gerador do imposto de renda, somente o deságio pode se consumar materialmente em acréscimo patrimonial;
d – Por princípio ganho financeiro não se presume, se apura mesmo as empresas comerciais, optantes do lucro presumido, estão obrigadas a adicionar o ganho financeiro ao lucro presumido para alcançar a base de cálculo do IRPJ.
E – Conclusão
Nos termos em que está posta, esta Solução de Divergência, longe de solver as divergências de interpretação do quadro normativo que disciplina a atividade de securitização de recebíveis, traz insegurança jurídica aos administrados. Os fundamentos lançados não convencem sobre o acerto da interpretação.
De nossa parte entendemos que a matéria foi, devidamente, equacionada pelo art. 22 da Lei nº 12.249 de 2.010, visto que não se pode admitir que o legislador ordinário tivesse esquecido de incluir outras espécies de créditos passiveis de securitização, pela via da cessão de créditos de uma empresa geradora de recebíveis, para uma Companhia Securitizadora de Créditos. Ademais outras modalidades de securitização, pela via dos investimentos coletivos (fundos de investimento) não se encerram na questão tributária versada na Solução de Divergência.
Jeferson Roberto Nonato
Graduado pela EASP/FGV. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil aposentado com especialidade no sistema financeiro. Instrutor da ESAF. Consultor tributário com especialidade no IRPJ.