Controvérsias na mudança de critério jurídico em processos de compensação
Por Maria Carolina Maldonado Kraljevic, Fernando Beltcher da Silva
17/09/2025 12:00 am
A mudança de critério jurídico pela administração tributária foi tratada com maestria por Thais de Laurentiis em sua tese de doutorado, transformada em livro, e também objeto desta coluna aqui e aqui. Além disso, no início de setembro, durante o 11º Seminário Carf de Direito Tributário e Aduaneiro, o tema foi debatido em dois painéis: um aberto ao público e outro restrito aos conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o que denota sua importância e amplitude. No presente texto, entretanto, pretendemos enfrentar a questão da mudança de critério jurídico especificamente em processos de compensação.
Mudança de critério jurídico em processos de compensação
A impossibilidade de mudança no critério jurídico é tratada no artigo 146 do CTN que estabelece que “[a] modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução”. Embora o dispositivo faça referência à modificação nos critérios adotados no lançamento, a matéria é frequentemente discutida no âmbito do Carf também em processos de compensação — nem que seja para afastar sua aplicação, como se verá adiante.
Nos processos de compensação, é comum que, em despacho decisório eletrônico, a Receita Federal se limite a verificar a existência do direito creditório, sem analisar eventuais requisitos adicionais à sua utilização. E, comprovada sua existência em sede de manifestação de inconformidade, por vezes, a Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ) apresenta razões adicionais para a não homologação da compensação. Nesse contexto, surge a controvérsia acerca da violação ao artigo 146 do CTN em processos de compensação.
Nesses casos, estaria a DRJ modificando o critério jurídico que ensejou a não homologação da compensação pelo despacho decisório? Ou, por se tratar de processo de compensação, devem os julgadores apurar a liquidez e certeza do direito creditório, o que exige a verificação de todos os requisitos para a homologação da compensação, sem que isso implique em afronta ao artigo 146 do CTN? É o que passaremos a analisar.
Jurisprudência do Carf
O Acórdão nº 1102-001.679, de 25/7/2025, examinou situação muito frequente no âmbito do Carf: compensação de crédito de saldo negativo de IRPJ composto, dentre outros, por imposto de renda retido na fonte (IRRF), cujo despacho decisório eletrônico se limitou a não homologar a compensação por ausência de comprovação da retenção na fonte. Posteriormente, comprovada a retenção em sede de manifestação de inconformidade, DRJ manteve a não homologação da compensação por não terem sido oferecidas à tributação as receitas relativas ao IRRF.
Ocorre que, nos termos do inciso III do parágrafo 4º do artigo 2º da Lei nº 9.430/1996, o IRRF somente pode ser deduzido do imposto devido se as receitas correlatas forem computadas na apuração do lucro real. No mesmo sentido é a Súmula Carf nº 80: “Na apuração do IRPJ, a pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido o valor do imposto de renda retido na fonte, desde que comprovada a retenção e o cômputo das receitas correspondentes na base de cálculo do imposto”.
Em razão disso, por voto de qualidade, entendeu-se no referido acórdão que “[é] descabida a alegação de nulidade por inovação de critério jurídico de decisão colegiada de primeira instância, quando, superado o óbice da não confirmação das retenções aduzido em Despacho Decisório, a turma julgadora concluiu que o contribuinte, a quem incumbe o ônus da prova de que o alegado crédito é líquido e certo, não ofereceu as correspondentes receitas à tributação”. Isso porque “[d]eve a administração tributária, aí incluídos os colegiados de primeiro grau, investigar a higidez do crédito vindicado, na base de dados da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil e à luz do que esclarecido e instruído pelo autor do feito, o particular, para que, em se cumprindo os requisitos legais, especialmente, no caso concreto, aqueles enunciados na Súmula Carf n° 80, possa o indébito ser oponível à Fazenda Nacional”.
Spacca
Interessante notar que o redator do voto vencedor expressamente afastou a aplicação do artigo 146 do CTN aos processos de compensação, vez que o dispositivo seria endereçado à hipótese de lançamento de ofício. Assim, seria do contribuinte o ônus de comprovar a liquidez e certeza do seu direito creditório e da administração tributária verificar o cumprimento dos requisitos legais, inclusive aqueles expressos na Súmula Carf n° 80.
No mesmo sentido de não aplicação do artigo 146 do CTN aos processos de compensação, já que o julgador teria, em todas as instâncias administrativas, ampla cognição para examinar a liquidez e certeza do direito creditório é o Acórdão nº 1201-006.290, de 14/3/2024.
Na oportunidade, analisou-se compensação de saldo negativo de CSLL composto, dentre outros, por tributo pago no exterior. O despacho decisório não homologou a compensação ao fundamento de que não seria possível aproveitar créditos havidos no exterior em anos anteriores. Apresentada manifestação de inconformidade, a DRJ manteve o não reconhecimento da parcela do crédito composta pelo tributo recolhido no exterior, por entender que (1) houve erro na taxa de câmbio utilizada pelo contribuinte; (2) não houve comprovação de parte dos recolhimentos no exterior; (3) parte dos créditos foi aproveitada de modo desproporcional à participação acionária; e (4) créditos relativos a tributo pago no exterior no ano anterior não podem ser compensados.
Nesse cenário, o Carf entendeu que não havia mudança de critério jurídico, tendo em vista que “[d]urante todo o processamento do PAF relacionado a procedimentos de compensação, cabe ao contribuinte comprovar a liquidez e certeza do direito creditório. Tal comprovação é sempre um ônus, exige do interessado apresentar os elementos fáticos exigidos pelas normas jurídicas (inclusive as instrumentais) que demonstrem tratar-se de crédito recuperável de pronto”.
Isto é, ao contrário do que ocorre nos autos de infração, “em que os fundamentos havidos pela administração tributária na atuação não podem ser recompostos pelo julgador”, nos processos de compensação, a liquidez e certeza do direito creditório deve ser verificada em todas as instâncias, não havendo que se falar em mudança de critério jurídico quando se exige do contribuinte o atendimento às previsões legais.
Em outro julgado, reconheceu o Carf que a decisão de primeira instância pode ampliar a cognição com relação aos fundamentos do despacho decisório, mas não de forma ilimitada, adotando razões estranhas ao pedido de restituição ou compensação para indeferir o direito creditório.
Isso ocorreu no Acórdão nº 1201-007.053, de 10/10/2024, que analisou situação na qual o contribuinte pretendeu compensar crédito de pagamento a maior de estimativa mensal de CSLL. O despacho decisório não homologou a compensação sob o argumento de que o pagamento estaria integralmente alocado a outro débito do contribuinte. Apresentada manifestação de inconformidade evidenciando o erro que ensejou o pagamento a maior, a DRJ superou o óbice à compensação apontado pelo despacho decisório, mas verificou que, no período, o contribuinte se utilizou em duplicidade de retenções na fonte de CSLL.
Diante disso, os julgadores entenderam que a autoridade julgadora de primeira instância tem “ampla cognição sobre a matéria relacionada ao pedido de restituição ou a declaração de compensação sub judice, não estando limitada aos fundamentos do despacho decisório denegatório, em benefício da legalidade e da verdade material”. No entanto, isso não significa que a ampliação possa “ser estendida para permitir a inclusão de matéria não relacionada à restituição/compensação sub judice, ainda que haja um apelo de justiça”. E, por tais razões, foi dado provimento ao recurso voluntário.
Há casos, entretanto, em que a mudança de critério jurídico implementada pela DRJ é entendida como sendo consequência da própria manifestação de inconformidade apresentada pelo contribuinte, o que não ensejaria qualquer nulidade. Nesse sentido é o Acórdão nº 1302-005.107, de 09.12.2020.
Na oportunidade, pretendeu-se compensar crédito de pagamento indevido de estimativa mensal de CSLL; o despacho decisório não homologou a compensação sob a alegação de que as estimativas deveriam compor o saldo negativo; e, em sede de manifestação de inconformidade, o contribuinte alegou, dentre outros, que a estimativa havia sido computada no saldo negativo. Diante disso, a DRJ superou o fundamento do despacho decisório, permitindo a compensação de pagamento indevido de estimativa, desde que a estimativa não tivesse sido computada no saldo negativo. E, com isso, manteve a não homologação da compensação, não por impossibilidade de compensação de estimativa, como o fez o despacho decisório, mas porque verificou a inclusão da estimativa no saldo negativo do período – o que foi entendido pelo colegiado como sendo uma mudança decorrente da própria defesa do contribuinte.
Por fim, há diversos casos em que a mudança pela DRJ do critério jurídico contido no despacho decisório enseja o provimento do recurso voluntário para (1) determinar a prolação de novo despacho decisório, (2) conceder prazo para o contribuinte apresentar nova manifestação de inconformidade ou, ainda, (3) declarar a nulidade da decisão da DRJ.
No Acórdão nº 1001-002.901, de 4/4/2023, analisou-se situação na qual o contribuinte pretendeu compensar crédito de saldo negativo de IRPJ de empresa sucedida e o despacho decisório deixou de homologar a compensação ao argumento de que não fora possível confirmar o evento sucessório. Em sede de manifestação de inconformidade, o contribuinte se limitou a demonstrar a sucessão. A DRJ, por sua vez, afastou o óbice suscitado pela autoridade fiscal e reconheceu parcialmente o direito creditório, denegando, apenas, a parcela relativa às retenções na fonte não confirmadas.
Diante disso, o Carf entendeu que “[a]pressou-se a DRJ ao impor ao contribuinte a causa do fracasso parcial da Manifestação de Inconformidade, sem lhe dar a chance prévia de trazer aos autos documentos hábeis e idôneos a fazerem as vezes dos comprovantes em tese não emitidos pelas fontes pagadoras (…) para que desse acervo se pudesse eventualmente extrair a certeza de que a sucedida sofrera as retenções na fonte em litígio”. E, nesse contexto, acatou o pedido de devolução do prazo para apresentação de manifestação de inconformidade, “haja vista a inovação de critério jurídico tendente a negar-lhe, em parte, o direito creditório postulado” [1].
No Acórdão nº 1002-003.354, de 3/4/2024, o despacho decisório não homologou a compensação de crédito de IRRF sobre juros sobre o capital próprio (JCP) com débito de mesma natureza, sob o fundamento de que a receita correlata não teria sido oferecida à tributação. A DRJ manteve a não homologação da compensação, por entender que o IRRF somente poderia ser compensado pelo contribuinte com débito de IRRF sobre JCP até 31 de dezembro do ano em questão. E o Carf, por sua vez, entendeu que houve mudança de critério jurídico pela DRJ e, acolhendo a preliminar de nulidade, determinou o retorno dos autos à origem, para que fosse proferida nova decisão.
Note-se que no Acórdão nº 1001-002.901 oportunizou-se ao contribuinte a apresentação de nova manifestação de inconformidade, enquanto no Acórdão nº 1002-003.354 determinou-se a prolação de novo despacho decisório. A diferença, conquanto possa parecer sutil, pode resultar na homologação tácita da compensação no segundo caso, por força do disposto no §5º do artigo 74 da Lei nº 9.430/96.
Conclusões
Como visto, há julgados do Carf reconhecendo que a alteração pela DRJ no critério jurídico contido no despacho decisório deve levar à anulação da decisão, à apresentação de nova manifestação de inconformidade, ou, ainda, à prolação de novo despacho decisório.
Por outro lado, existem acórdãos nos quais se concluiu que, nos processos de compensação, é ampla a cognição do julgador na verificação da liquidez e certeza do direito creditório em todas as instâncias, não havendo que falar em aplicação do artigo 146 do CTN quando a DRJ exige o preenchimento de requisitos legais adicionais.
Além dessas duas posições antagônicas, as circunstâncias do caso concreto podem ensejar, ainda, o entendimento de que a alteração no critério jurídico pela DRJ decorreu dos termos da manifestação de inconformidade apresentada pelo contribuinte, hipótese em que não há que se falar em qualquer nulidade.
Disso se conclui que a mudança de critério jurídico pela administração tributária é terreno fértil, que muito merece ser debatido, especialmente no que se refere à polêmica aplicação do art. 146 do CTN aos processos de compensação.
[1] Situação muito similar foi examinada no Acórdão nº 1402-004.578, de 11/3/2020. No entanto, no caso, os julgadores concluíram pela anulação da decisão da DRJ – e não pela devolução do prazo para apresentação de manifestação de inconformidade.
Mini Curriculum
Maria Carolina Maldonado Kraljevic
é doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, conselheira da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf, advogada licenciada, contadora e professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária.
Fernando Beltcher da Silva
é auditor-fiscal da RFB, bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Federal Fluminense, especialista em Direito Tributário pela Escola Nacional de Administração Pública e conselheiro do Carf.
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