Eldorado tenta validar R$ 400 milhões em créditos de ICMS
Empresa recorreu ao Judiciário depois de a Sefaz-MS alegar que créditos estão prescritos
Uma liminar da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) impede a Secretaria de Estado de Fazenda (Sefaz-MS) de autuar e multar a Eldorado Brasil Celulose até que o Judiciário examine se são válidos R$ 400 milhões de créditos de ICMS no estoque da companhia. O volume é quase metade do total de R$ 977,7 milhões em créditos que a empresa tem acumulado, segundo o mais recente formulário de referência.
A Sefaz-MS alegou que os créditos estariam prescritos, por não terem sido usados no prazo de cinco anos, contados da escrituração na contabilidade da empresa. O tema é controvertido e não existe consenso entre os Estados nem no Judiciário. Em São Paulo, há manifestações do governo entendendo que o prazo de cinco anos não é para utilização de créditos, mas sim para registro deles na contabilidade.
Segundo advogados, o tema ganha relevância com a aproximação da reforma tributária. Para empresas que não tenham como compensar os créditos de ICMS – como as exportadoras -, os valores só serão devolvidos em 240 parcelas (20 anos), corrigido pelo IPCA.
A Procuradoria-Geral do Estado (PGE-MS) recorreu da liminar, defendendo que o prazo de cinco anos é para uso dos créditos. Ao Valor, disse que os precedentes sobre o tema são favoráveis ao Estado. Em dois julgados que envolvem também a Eldorado, os desembargadores declararam prescritos R$ 505 milhões de saldo credor de ICMS. A empresa recorre no STJ (processos nº 0841075-41.2021.812.0001 e 0841082-33.2021.812.0001).
O caso mais recente chegou à Justiça porque em fevereiro a Eldorado recebeu uma intimação da Sefaz-MS alegando que parte do saldo credor acumulado de ICMS, registrado na escrituração contábil (EFD), foi atingido pela decadência. A empresa deveria estornar o crédito, sob pena de autuação e multa.
Na primeira instância, o pedido de liminar foi negado. O juízo da 4ª Vara de Fazenda Pública e de Registros Públicos da Comarca de Campo Grande não viu ilegalidade ou abuso de poder da autoridade fiscal. Para ele, o prazo de cinco anos previsto no artigo 23 da Lei Complementar nº 87/1996, a Lei Kandir, e o artigo 68 da Lei Estadual nº 1.810/1997 aplica-se também para o uso do crédito de ICMS e não apenas à sua escrituração fiscal.
A segunda instância, porém, foi favorável à companhia. Na visão do relator do caso, o desembargador Ary Raghiant Neto, da 2ª Câmara Cível, a “aparente limitação imposta pelas normas infraconstitucionais” de que o saldo credor de ICMS deve ser usado em cinco anos, “caracteriza evidente afronta ao princípio constitucional da não cumulatividade”, previsto no artigo 155 da Constituição.
Esse foi o principal fundamento para conceder a liminar. Ele também levou em conta o fato de que a empresa se comprometeu a não usar os créditos até que haja uma decisão definitiva na ação. “Se ao final, a Corte decidir pela revogação da tutela recursal, poderá a autoridade coatora prosseguir com os atos vinculados, sem maiores transtornos”, acrescenta (processo nº 1408048-79.2025.8.12.0000).
O desembargador ainda afirma, na decisão, que “não há qualquer inércia por parte da agravante capaz de justificar a aplicação da decadência em seu desfavor”. E que, se ela não estornar o saldo credor de ICMS em 10 dias, poderia se sujeitar às sanções previstas na Lei estadual.
A advogada Ana Flora Diaz, sócia da área de tributário no HRSA, diz que a controvérsia é antiga e não há grandes definições até hoje. “Os tribunais nunca bateram o martelo e desde que a lei complementar [Lei Kandir] foi editada tem essa discussão”, afirma. Na visão de Ana Flora, os questionamentos são feitos porque a norma foi mal escrita e deixa dúvidas.
A discussão é semelhante a outro debate travado no Judiciário, sobre o prazo para consumo de créditos tributários oriundos de decisões judiciais. Recentemente, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) alterou o entendimento e decidiu que os cinco anos devem ser para uso integral dos créditos, a contar do trânsito em julgado da sentença que reconheceu os valores. Antes, se considerava esse período para pedir o reconhecimento na Receita Federal, podendo usá-los até o esgotamento.
Mas segundo especialistas, a disputa no caso da Eldorado é diferente. “É ICMS crédito escritural, não tem a ver com ação de repetição de indébito. A discussão é se tenho cinco anos para lançar nos livros contábeis ou usar”, acrescenta Ana Flora. O precedente, afirma, não poderia ser aplicado. “Lá decorre de ação judicial e aqui são créditos oriundos das operações naturais e da não cumulatividade de crédito e débito.”
O tributarista Gabriel Caldiron Rezende, sócio do Machado Associados, diz que pode ser importante para os Estados esse tipo de discussão com a transição da reforma tributária. “O que sobrar de crédito de ICMS poderá ser usado no futuro, então é importante para o Fisco dilapidá-los antes da hora, porque a discussão ganha bastante relevância lá na frente.”
Rezende também entende que o caso da empresa de celulose difere dos precedentes do STJ. “No caso, a empresa não tem débitos para compensar”, afirma. Ele ressalta que esse é um “problema crônico” do tributo estadual. “É um dos maiores terrores para as empresas o acúmulo de crédito. Algumas legislações têm mecanismos para recuperação, mas são procedimentos trabalhosos, complexos, dependem de homologação e só pode usado [o crédito] para determinas coisas, como pagar fornecedor”, acrescenta. “Não há uma monetização plena.”
Por isso, na visão do advogado, impor cinco anos para uso é “jogar o contribuinte numa armadilha”. “Achei a decisão bastante razoável na medida em que dá salvaguarda para o contribuinte não ser penalizado por conta da própria legislação. Impor o prazo de consumo, falando em prescrição, pressupõe uma inércia do contribuinte, o que não é o caso.”
Procurado, um dos advogados da Eldorado no caso, Sandro Pissini Espíndola, informou não ter autorização da empresa para comentar a questão. A Eldorado também não quis se pronunciar sobre o assunto.