A causa da prejudicialidade externa na jurisprudência do Carf
Diego Diniz Ribeiro, Mariel Orsi Gameiro
ProcessoTributário
A coluna de hoje analisa a causa de prejudicialidade externa no processo administrativo fiscal (PAF), com foco na jurisprudência do Carf. Parte-se da definição processual do instituto e sua aplicação conforme o CPC e o Regimento Interno do Tribunal (Ricarf).
O que é prejudicialidade para fins processuais?
A figura da prejudicialidade decorre da relação entre demandas processuais diversas que se comunicam, na hipótese de o julgamento de mérito de uma causa depender (i) da resolução de outra lide ou da declaração de (in)existência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente ou, ainda, (ii) do julgamento de outra causa ou da declaração de (in)existência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo em andamento, nos termos do artigo 313, V, “a” e “b” do CPC.
Em suma, há prejudicialidade quando o julgamento de uma demanda impactar diretamente no de outra, configurando-se como um antecedente lógico que subordinará a resolução da segunda lide, dita como prejudicada.
A questão prejudicial pode ser classificada como (i) interna ou (ii) externa. É considerada interna quando surge como antecedente dentro do mesmo processo em que vai ser proferida a sentença de mérito; [1] e externa quando a sentença de mérito da relação subordinada depender de decisão a ser proferida em outro processo, tido como principal.
Tal como acontece com a conexão e com e continência (artigos 55 e 56 do CPC), também se trata de mecanismo processual que tem por objetivo evitar decisões conflitantes e promover a integridade da resposta a ser ofertada ao direito material subjacente ao conflito; é mais um instituto processual que visa fomentar segurança jurídica.
Prejudicialidade e institutos processuais correlatos
Um primeiro ponto a ser esclarecido é que não há correspondência entre os conceitos de prejudicialidade e litispendência. Enquanto na prejudicialidade há uma comparação de casos próximos, na litispendência há identidade dos processos comparados (mesmas partes, causas de pedir e pedidos). Assim, configurada litispendência entre dois PAFs, a solução é a extinção daquele formado posteriormente. Já havendo litispendência entre um processo administrativo e outro judicial, a solução é pela concomitância, com prevalência do processo judicial (artigo 38, parágrafo único da LEF e Súmula nº 1 do Carf).
Seguindo adiante, há conexão entre demandas sempre que houver identidade entre suas causas de pedir e/ou pedidos. Há, todavia, continência quando existir identidade de partes e causa de pedir, mas o pedido de uma, por ser mais amplo, abrange o da outra. O artigo 55, §3º do CPC prevê ainda uma hipótese que vem sendo denominada pela doutrina de conexão por afinidade, quando há risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias entre demandas caso elas sejam decididas separadamente, ainda que tecnicamente não haja conexão entre elas.
Por sua vez, o artigo 47 do Ricarf prevê três institutos distintos que gravitam em torno do tema: (i) a conexão, (ii) a decorrência e (iii) a reflexão. [2]
Spacca
Segundo tal previsão normativa, os processos são conexos quando a exigência do crédito ou o pedido do administrado forem baseados em fatos idênticos, ainda que formalizados em face de diferentes sujeitos passivos. Resta constatada a decorrência a partir de processos formalizados em razão de procedimento fiscal anterior ou de atos do sujeito passivo acerca de direito creditório ou de benefício fiscal, ainda que veiculem outras matérias autônomas. E, por fim, são reflexos os PAFs formalizados em um mesmo procedimento fiscal, com base nos mesmos elementos de provas, mas que tratem de tributos distintos.
Tais fatos jurídicos podem, a priori, gerar um mesmo efeito formal: a reunião dos processos correlatos para julgamento conjunto, o que pode se dar (i) mediante distribuição por prevenção, (ii) por meio de pedido das partes ou, ainda, (iii) de ofício pelo conselheiro prevento. Só não haverá tal reunião se em um dos processos correlatos já tiver sido proferida decisão (artigo 47, §2º do Ricarf).
Outro ponto interessante é que o Ricarf deliberadamente prevê que há uma relação de subordinação entre os processos correlatos apenas nos casos de decorrência e de reflexão, mas não nos de conexão. É exatamente o disposto no seu já citado §2º do artigo 47, quando diz que é prevento o relator que primeiro recebeu o processo conexo ou o principal (aí incluídos os processos decorrentes ou reflexos). Há uma notória cisão entre processos conexos, os quais não possuem relação de subordinação, e processos decorrentes e/ou reflexos, nos quais se identifica um processo principal e um correlato subordinado.
Tal ponto é reforçado pelos §§ 4º, 5º e 6º do mesmo artigo 47 do Ricarf quando estabelece que, não sendo possível a reunião dos processos decorrentes ou reflexos — excluindo daí os conexos — para decisão conjunta por estarem em diferentes fases processuais, os processos subordinados deverão ser suspensos até que haja o julgamento do principal, haja vista seu caráter prejudicial em relação aos demais.
Diante desse quadro, resta claro que nas hipóteses de decorrência e de reflexão, o que também existe, de forma mais abrangente, é uma relação de prejudicialidade externa entre o processo principal e o subordinado, o que pode implicar a vinculação de caráter formal (reunião dos processos para julgamento conjunto), mas necessariamente deve resultar em uma vinculação de índole material, de modo que o processo subordinado obrigatoriamente reflita o que foi decido no principal.[3] [4]
Por fim, há possibilidade de existir prejudicialidade externa entre processo judicial e administrativo, o que não gera concomitância, como já mencionado no início desse tópico. Um exemplo que ilustra essa situação seria o caso de uma dada entidade que questiona judicialmente o reconhecimento quanto a sua imunidade em relação a impostos federais e que, no curso desse processo, se vê diante de autuações para exigir tais exações. Reconhecido no âmbito judicial que a pessoa jurídica tem direito a imunidade, as autuações correlatas restariam prejudicadas. Logo, a demanda judicial é uma prejudicial externa em relação aos PAFs, os quais devem permanecer suspensos até que haja resolução da instância judicial. [5]
Registre-se que o sobrestamento aqui defendido não é aquele decorrente de um leading case pendente de julgamento em tribunal superior e cujo precedente impactará a decisão administrativa. [6] Na hipótese ilustrada pelo exemplo acima, a prejudicialidade se dá para casos de um mesmo contribuinte, em razão da proximidade dos fatos discutidos em diferentes instâncias e da relação de subordinação dos casos administrativos pendentes frente o processo judicial em andamento.
Prejudicialidade externa na jurisprudência do Carf
Uma primeira discussão que vem sendo travada no Carf a respeito do tema diz respeito a obrigatoriedade ou não do sobrestamento na hipótese de vinculação dos casos sob julgamento. Alguns precedentes mais recentes, mesmo após as alterações sofridas pelo Ricarf, entendem que o sobrestamento seria uma faculdade do julgador, haja vista que o artigo 47, caput, do Ricarf estabelece que os processos vinculados poderão ser distribuídos e julgados mediante vinculação. [7]
O que tais precedentes ignoram é que o termo “poderão” empregado na norma não prevê uma faculdade para o julgador, mas existe para atender uma questão de praticabilidade, uma vez que os casos só poderão ser reunidos já na distribuição se, e somente se, os processos vinculados estiverem na mesma fase processual. Daí o mesmo Ricarf prever que, estando em fases processuais distintas, é hipótese de sobrestamento dos processos subordinados até julgamento do principal, o que se dá mediante um inequívoco mandamento, já que o Ricarf emprega os termos “será enviado” (artigo 47, §4º) e “será determinado a vinculação dos autos e o sobrestamento” do (artigo 47, §5º).
Também é possível encontrar precedentes do Tribunal que entendem que o sobrestamento do caso subordinado só seria possível na hipótese dos processos vinculados estarem nas mesmas instâncias recursais, ou seja, só seria possível tal providência se todos os PAFs correlatos estivessem em instância ordinária ou em instância especial.[8] [9] Tal posição não só se contrapõe à literalidade das disposições regimentais aqui tratadas, mas também afeta os próprios valores jurídicos que tais normas pretendem salvaguardar: eficiência, uniformidade e segurança jurídica.
Por fim, no que diz respeito a possibilidade de sobrestamento de PAFs quando o processo principal já está no âmbito judicial, destaca-se posição do Carf no sentido de rejeitar a vinculação, com fundamento no artigo 2º, parágrafo único, XII da Lei 9.784/99, denominado de princípio da oficialidade (equivalente ao princípio do impulso oficial). [10] Nesse sentido, destaca-se interessante debate havido no bojo do Acórdão Carf nº 9101-005.923. [11]
Segundo o voto vencedor, em situações como aqui tratada, não haveria a necessidade de sobrestamento do PAF até final julgamento da instância judicial, uma vez que prevaleceria a incidência subsidiária da Lei nº 9.784/99 em detrimento do CPC e seu artigo 313, V. Segundo essa posição, em respeito ao princípio do impulso oficial e em sintonia com a ideia de duração razoável do processo, não seria o caso de sobrestamento, a despeito da inconteste vinculação entre os processos administrativo e judicial.
Ousamos divergir dessa posição.
Segundo a posição vencedora, sempre que houver lacuna legislativa no âmbito do processo administrativo fiscal federal a Lei nº 9.784/99 deve ser primeiramente convocada de forma subsidiária e, só depois, o CPC, o que afastaria a incidência do artigo 315, V do Codex em favor do artigo 2º, parágrafo único, XII da referida lei. Acontece que se a lacuna deve ser preenchida por norma principiológica, também deve ser ponderado nesse debate os valores segurança jurídica, moralidade e eficiência, todos eles previstos no próprio caput do artigo 2º da Lei nº 9.784/99, i.e., independentemente de convocação do CPC. Logo não se aplicaria o princípio do impulso oficial sob a perspectiva de uma metódica do tudo ou nada, sem se ponderar a sua incidência à luz do caso concreto e dos outros princípios aqui citados. [12]
A perspectiva aqui criticada também olvida que o impulso oficial é um princípio processual genérico, que decorre de uma perspectiva publicista do processo e da preponderância de um modelo inquisitorial em detrimento de um modelo adversarial, competindo, em regra, ao julgador promover a marcha processual e não às partes. [13] Tanto é verdade que o princípio do impulso oficial (artigo 2º do CPC) e a disposição do artigo 315, V do CPC coexistem harmonicamente em tal Codex.
Resta claro, pois, que o princípio do impulso oficial não se presta a resolver questões de prejudicialidade externa, o que afastaria a convocação da Lei nº 9.784/99 para suprir a lacuna existente no PAF, restando, assim, a aplicação subsidiária do artigo 315, V do CPC, c.c. o seu art.igo15.
Conclusões
Para se tratar da causa de prejudicialidade externa e seus reflexos no PAF é fundamental não só delimitar conceitualmente o instituto, de modo a evitar indevidas confusões técnicas, mas também é indispensável precisar os valores jurídicos por trás dessa regra (eficiência, integridade das decisões e segurança jurídica), de modo a ponderá-los com outros valores que também iluminam o PAF e que devem ser considerados à luz do caso concreto, ou seja, no âmbito da realização prática do direito. É a reflexão que se espera provocar com o presente texto.
PS.: essa coluna é em homenagem ao conselheiro Rodrigo Rigo Pinheiro, que tão precocemente deixou nosso plano e com quem tivemos o prazer de conviver no Carf, na advocacia e nos momentos de diversão, em especial quando tocávamos o bom e velho rock and roll na banda Os Sophistas.
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[1] É o caso, v.g., do reconhecimento quanto a inexistência de relação jurídico-tributária para fins de análise de eventual direito à compensação/repetição de indébito, no caso de cumulação de pedidos.
[2] Sob a égide do antigo Ricarf, o tema já foi muito bem tratado por Thais de Laurentiis aqui.
[3] Daí Cássio Scarpinella Bueno, ao tratar das causas de prejudicialidade externa entre processos judiciais, afirmar que a ocorrência de tal situação, se verificada no mesmo processo, implicaria a incidência da coisa julgada sobre questão prejudicial, desde que respeitado o disposto no art. 503, §§ 1º e 2º do CPC. Nesse sentido: Curso sistematizado de direito processual civil. Vol. 1. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 748.
[4] É o caso, v.g., dos Acórdãos n.s 3201-009.235 (Cons. Rel. Paulo Roberto Duarte Moreira) e 1401-007.366 (Cons. Relator Luiz Augusto de Souza Gonçalves).
[5] Em sentido oposto para uma situação fática distinta: Acórdão n. 1002-003.693 (Cons. Rel. Ailton Neves da Silva).
[6] O que vem sendo refutado administrativamente, de forma questionável, em razão de uma suposta “omissão consciente” do Ricarf. Nesse esteio: Resolução n. 1201-000.796 (Cons. Rel. Lucas Issa Halah).
[7] Nessa linha: Acórdão n. 2301-011.262 (Cons. Rel. Vanessa Kaeda Bulara de Andrade); Acórdão n. 3301-014.001 (Cons. Rel. Rodrigo Lorenzon Yunan Gassibe).
[8] Destaca-se, novamente, o Acórdão n. 3301-014.001, quando aduz que o sobrestamento dependeria de decisão pendente de mesma instância. (grifos nosso)
[9] Em sentido oposto é o caso da Resolução n. 1302-001.214 (Cons. Rel. Paulo Henrique Silva Figueiredo). Nesse caso os prejuízos fiscais do contribuinte foram glosados, o que refletiu negativamente no saldo disponível para a compensação realizada em um determinado ano-calendário. Ao julgar o recurso voluntário no AIIM lavrado, o CARF decidiu sobrestar o caso até que sobreviessem decisões definitivas nos processos em que se discutia as citadas glosas, uma vez que, segundo o Tribunal, mesmo após decisão de turma ordinária no processo principal, a decisão poderia ser alterada na hipótese de eventual interposição de recursos.
[10] Em sentido diametralmente oposto destaca-se a Resolução n. 3402-04.118 9 (Cons. Rel. Mariel Orsi Gameiro), em que se reconheceu a prejudicialidade de embargos à execução fiscal em que discutia um débito de IPI, fruto de AIIM, em relação à PAFs em que se debatia a glosa de saldos credores desse mesmo IPI.
[11] Voto vencedor do Cons. Fernando Brasil de O. Pinto, voto vencido do Relator, Cons. Luiz Henrique M. Toselli.
[12] Por todos: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
[13] DINAMARCO, Cândido Rangel. BADARÓ, Gustavo Henrique Ivahy. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2024. p. 419/420.
Diego Diniz Ribeiro, Mariel Orsi Gameiro
Diego Diniz Ribeiro
é advogado tributarista e aduanerista, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutor em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.
Mariel Orsi Gameiro
é conselheira do Carf, professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e graduação, responsável executiva do GT de Direito Aduaneiro da FGV-SP, mestre em Medicina pela Unesp e doutoranda em Direito Tributário na UFMG.