Põe IOF; tira IOF: o que está em jogo no cabo de guerra Legislativo x Executivo?

Bernardo Strobel Guimarães Luis Henrique Braga Madalena Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

O tema da separação dos Poderes é um dos mais espinhosos do Direito Constitucional. Dizer que o Legislativo faz leis, que o Executivo as aplica, e o Judiciário julga conflitos, é muito pouco. A questão vai muito além disto, porque as linhas que dividem o que compete a cada um não são tão claras quanto se poderia desejar.

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A Constituição brasileira prevê, além de zonas de autonomia decisória, algumas superposições que criam zonas cinzentas. Mesmo assim, esse mapa precisa ter suas fronteiras desenhadas, e isso implica definir as matérias sobre as quais cada um dos poderes pode decidir de modo autônomo.

Isso porque definir quem decide é mais importante do que saber como deve ser decidido. A estabilidade do sistema reside muito mais na atribuição de competência para decidir algo do que nos parâmetros em que uma decisão deve ser tomada. A Constituição estabelece para cada um dos poderes o direito de errar por último sobre os temas de sua competência; e cria meios para que arroubos de um poder sejam combatidos pelos demais, no que se convencionou chamar de sistema de freios e contrapesos. A separação de poderes representa então o arranjo dinâmico em que as decisões do Estado são tomadas e controladas.

A desarmonia entre os três poderes é uma espécie de doença autoimune, em que partes do mesmo corpo se agridem. Ela coloca em risco a integridade do Estado e por isto deve ser combatida nos termos institucionalmente adequados.

A recente polêmica envolvendo o imposto sobre movimentações financeiras (IOF) materializa estas dificuldades, transformando a abstração teórica do direito em um problema concreto sobre os limites da atuação de cada poder. O problema em questão coloca a teste nossas instituições e não deve ser menosprezado.

O objetivo do presente texto é exatamente pensar sobre esse cabo de guerra que se instalou entre os três poderes: primeiro o Executivo majorou as alíquotas do IOF mediante decreto, exercendo a competência prevista no § 1º do artigo 153 da Constituição; depois, o Legislativo sustou os efeitos destes decretos com fundamento no inciso V do artigo 49 da Constituição, sob a justificativa de que o chefe do Executivo incorreu em desvio de finalidade ao utilizar o IOF com fins arrecadatórios; e, como último ato, após provocado por partidos políticos e pela AGU, o Supremo Tribunal Federal suspendeu liminarmente tanto os efeitos dos decretos presenciais quando do decreto legislativo que os cassou.

Como se vê, há duas coordenadas constitucionais potencialmente antagônicas em causa: antagônicas em causa, de um lado a competência do Congresso de cassar atos normativos que exorbitam dos limites da lei, e de outro a do Executivo criar normas, pois assim autorizado a tanto pelo ordenamento jurídico.

Spacca
Retomando, o IOF é um imposto cujas alíquotas podem ser definidas pelo Executivo, excepcionando a legalidade tributária estrita. Essa competência se exerce, segundo o § 1º do artigo 153 da Constituição, “atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei”. Tem-se, portanto, um espaço de autonomia em favor do Executivo que, analisando os temas segundo sua lógica deliberativa, pode fixar as alíquotas do IOF — mas, de novo, desde que respeitados os limites da lei e da Constituição.

Por outro lado, a Constituição atribui ao Congresso competência exclusiva para cassar atos expedidos do Executivo “que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa” (inciso V do artigo 49). Ou seja, a Constituição garante ao Legislativo a atribuição de avaliar se a atuação do Executivo exorbita ou não dos parâmetros que vinculam sua atuação. E claro que o Congresso exerce esse poder segundo a sua própria lógica de atuação, que não se confunde com a atuação do Judiciário. Como aponta Anna Candida da Cunha Ferraz, trata-se de um controle de constitucionalidade político, no que excepciona a atividade do Poder Judiciário [1].

Então, a questão do IOF revela, ao fundo, um conflito entre competências constitucionais. O Congresso, ao sustar os efeitos dos decretos presidenciais que aumentaram as alíquotas do IOF, agiu dentro da sua esfera de competência? E o Executivo, ao editar os decretos, respeitou “as condições e os limites estabelecidos em lei”? Não há respostas simples. E a situação fica ainda não complexa quando pensamos no papel do Judiciário nesse imbróglio todo.

Pois bem. A nosso ver, e retomando o que foi dito, o que está em causa é menos saber se o Executivo agiu dentro dos limites normativos em que pode atuar, e mais identificar a quem compete definir se houve ou não exorbitância do poder regulamentar no caso. Essa análise cabe ao Legislativo ou ao Judiciário?

Uma primeira dificuldade é definir se os decretos presidenciais em questão se enquadram na competência regulamentar do Poder Executivo, a atrair a atribuição de controle do Congresso nos termos do inciso V do artigo 49 da Constituição.

O ministro Alexandre, na decisão liminar, entendeu que não. Na sua visão, os decretos que majoraram as alíquotas do IOF são autônomos e encontram fundamento diretamente na Constituição, pelo que “… não se submetem ao controle repressivo por meio de decreto legislativo”. Com todo o respeito, discordamos desse entendimento. Isso porque o § 1º do artigo 153 da Constituição estabelece que a prerrogativa do Executivo de alterar as alíquotas do IOF mediante decreto está vinculada à observância das condições e limites estabelecidos em lei. Embora previsto expressamente na Constituição, não se trata de poder normativo que dispensa a mediação da lei. Segundo nos parece, o constituinte originário qualificou a atuação normativa em questão como poder regulamentar ordinário, que se exerce nos limites definidos pelo legislador.

E fixada a premissa de que o Legislativo atuou dentro da sua esfera de competência, surgem duas outras questões: (1) houve, de fato, exorbitância do poder regulamentar e/ou desvio de finalidade por parte do Poder Executivo? (2) o Judiciário pode controlar judicialmente a decisão do Congresso Nacional? Eis aí os dois questionamentos centrais de toda a controvérsia.

Quanto à primeira pergunta, a resposta é complexa. Como já dissemos, o controle exercido pelo Legislativo não é jurídico, mas político, de modo que os limites e vinculações que naturalmente exigimos do Poder Judiciário não se aplicam aqui. Em outras palavras, o Congresso atua sob uma outra lógica, e mesmo quando entra em temas jurídicos não está obrigado a agir sob os mesmos fundamentos que se aplicam ao Judiciário. A decisão é política e assim deve ser controlada.

Seja como for, fato é que o uso do IOF com objetivos fiscais não é algo vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Na verdade, a Lei nº 8.894/94 estabelece expressamente que o Poder Executivo pode majorar as alíquotas do IOF tendo em vista os objetivos da política fiscal (§ 2º do artigo 1º). Nesse mesmo sentido, o STF já decidiu que “… que eventual prevalência de finalidade extrafiscal adotada por um tributo não impede, até como consequência lógica, sua função arrecadatória, em menor ou maior grau” (RE nº 1.269.641/PR).

Mas, novamente, estes são argumentos jurídicos que não vinculam o controle político do Congresso. Embora vislumbremos elementos aptos a afastar a tese de desvio de finalidade, a lógica pela qual o Congresso Nacional atua é, em certa medida, a eles indiferente. Sendo um decreto que deve observar a lei, compete ao Congresso avaliar se houve ou não exorbitância do poder regulamentar; e ainda que não se concorde com a sua decisão, não se pode negar que a competência decisória recai sobre o Legislativo.

E qual o papel do STF nesse imbróglio?
Chegamos, enfim, à segunda questão: a decisão política do Legislativo pode ser controlada judicialmente pelo Poder Judiciário? Novamente, a resposta não é simples.

Em primeiro lugar, a jurisprudência do STF desde há muito foi fixada no sentido de que é possível o controle jurisdicional de constitucionalidade de decreto legislativo de sustação (por todos, a ver a ADI n. 1.553/DF). Isto é, eventual controle da decisão do Congresso no caso do IOF não seria algo novo ou inédito. Nada obstante, enxergamos esse entendimento com algumas reservas, pois ele pode, na prática, anular uma ferramenta essencial do sistema de freios e contrapesos.

A Constituição delegou ao Legislativo competência para sustar decretos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar. E, como já dito, o exercício de tal prerrogativa não se funda numa técnica de controle estritamente jurídica, mas política. O que está em jogo não é se a decisão do Congresso de sustar os decretos é correta ou não, mas se ele pode ou não deliberar sobre o tema. E, caso possa — como entendemos que pode —, não cabe ao Judiciário revisar o mérito da decisão. Pode-se discordar dela politicamente, criticá-la etc, mas não a substituir por outra que se entenda mais correta. Aqui, a última palavra deve competir ao Congresso.

A Constituição previu no sistema de freios e contrapesos competências para o Legislativo avaliar temas que têm conotação jurídica. Contudo, ao fazê-lo não obrigou este poder a agir sob os mesmos fundamentos que se aplicam ao Judiciário. A decisão do Congresso é política e assim deve ser controlada. Não nos parece que discussão possa ser resolvida simplesmente dizendo que o Supremo deve avaliar a decisão do Congresso, na qualidade de guardião da Constituição. E a razão é simples: neste cenário a jurisdição faria juízo de valor sobre o eventual excesso do Executivo, sendo que a Constituição previu que essa é uma atribuição do Congresso.

É crucial compreender que a natureza do controle exercido pelo Congresso é distinta daquele realizado pelo Poder Judiciário. Enquanto o Judiciário atua sob a égide da estrita legalidade e da interpretação jurídica, o Legislativo, ao exercer sua função fiscalizatória, incorpora considerações de ordem política, conveniência e oportunidade, inerentes à sua esfera de atuação. A decisão de sustar um decreto, nesse contexto, não é apenas uma análise técnica de conformidade normativa, mas uma manifestação da vontade política do Parlamento em face de uma ação do Executivo que ele considera exorbitante.

Nesse sentido, a intervenção do STF no controle de decretos legislativos de sustação deve ser vista com cautela e parcimônia, sob pena de desvirtuar o equilíbrio entre os poderes. Embora a jurisprudência do STF admita o controle, este deve se restringir aos aspectos formais e aos limites explícitos da competência do Congresso, sem adentrar o mérito da decisão política. O STF, como guardião da Constituição, deve assegurar que o Congresso atuou dentro de sua esfera de atribuições, mas não substituir a avaliação política do Legislativo pela sua própria.

Para finalizar: nesse cenário de complexidade e potencial conflito de competências, em que há mais certezas do que incertezas, a iniciativa do Supremo Tribunal Federal de convocar uma audiência de conciliação para debater o tema do IOF merece elogios. Ao invés de uma decisão impositiva, o STF demonstra uma postura de prudência e busca por consenso, reconhecendo que a questão transcende a mera interpretação jurídica e adentra a esfera da harmonia entre os Poderes. Essa abordagem conciliatória é fundamental para preservar a integridade do Estado e fortalecer o sistema de freios e contrapesos, evitando que a “doença autoimune” da desarmonia comprometa a estabilidade institucional.

No mais, o que o STF efetivamente busca evitar é um aprofundamento daquilo que Mark Tushnet chama de constitutional hardball, e que chamamos no Brasil de constitucionalismos abusivo.

[1] FERRA, Anna Candida da Cunha. Comentários ao inc. V do art. 49 da Constituição. In.: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (orgs.). Comentários à constituição do brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

Bernardo Strobel Guimarães Luis Henrique Braga Madalena Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

Bernardo Strobel Guimarães
é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP, professor adjunto de Direito Administrativo da P, c. Conselheiro da Comissão Especial da OAB-PR.

Luis Henrique Braga Madalena
é mestre em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst. Advogado.

Lucas Sipioni Furtado de Medeiros
é doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Uerj, mestre em Direito Público pela Unisinos, professor do IDP e da FAE e advogado.

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