COP30 e programa Mover: compensação ambiental nas importações
Rafael Corrêa Pinheiro
Incentivos à importação e meio-ambiente no contexto da COP30
Em novembro deste ano, o Brasil sediará a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (COP30) para debater temas como a redução de emissões de gases de efeito estufa e o estímulo a tecnologias de energia renovável.
A condição de anfitrião do encontro sedimenta uma trajetória que o país percorre desde Estocolmo 1972, e que o credenciou a liderar debates semelhantes na ECO-92, que consolidou a integração ambiente-desenvolvimento, e na COP-21, que resultou no Acordo de Paris de 2015 e transformou metas de mitigação e rotas de financiamento em compromissos internacionais.
A questão a respeito das “Aduanas Verdes” foi objeto de dois excelentes artigos de autoria de Rosaldo Trevisan e Dihego Antônio Santana de Oliveira publicados nesta coluna (aqui e aqui), que debateram, entre outros pontos, o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira – “Carbon Border Adjustment Mechanism” (CBAM), política da União Europeia baseado no mercado de carbono (EU ETS, vigente desde 2005), que elevam o custo de bens intensivos em emissões e reacendem discussões sobre compatibilidade com os princípios de não-discriminação da OMC.
A este respeito, diga-se, a paralisia do Órgão de Apelação não impede que os painéis analisem tais cobranças baseadas em boas intenções à luz do espírito do Princípio das Responsabilidades Comuns, mas Diferenciadas (RCMD), segundo o qual os países desenvolvidos devem liderar na ação climática e fornecer apoio aos países em desenvolvimento. Caso a política verde venha a ignorar as condições econômicas e tecnológicas de nações menos industrializadas, está-se diante de uma forma proscrita de protecionismo.
É neste contexto que, no plano doméstico, a Emenda Constitucional 132/2023 incorporou o “princípio da proteção do meio ambiente” ao novo desenho tributário brasileiro e autorizou a criação de um Imposto Seletivo (IS) destinado a onerar bens ou atividades de alta pegada de carbono, cujas limitações, sobretudo ao atuar como tributo equalizador de fronteira, foram objeto de artigo de nossa autoria [1]. Destaca-se, neste contexto, o desenvolvimento do programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), instituído pela Lei nº 14.902/2024 e regulamentado pelo Decreto nº 12.435/2025.
Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover)
Concebido para reduzir emissões do setor automotivo, o Mover combina incentivos fiscais, exigências de eficiência energética e índices de reciclabilidade, com o objetivo de ampliar a as exigências de sustentabilidade da frota automotiva nacional e estimular a produção de novas tecnologias nas áreas de mobilidade e logística.
Em que pese ter sido anunciado como uma expansão do Programa Rota 2030, a estrutura do Programa Mover contrasta com os antigos programas InovarAuto, instituído pela Medida Provisória nº 563, convertida na Lei nº 12.715/2012 e Rota 2030, instituído pela Lei nº 13.755/2018, programa sobre o qual tratamos no artigo “Rota 2030 e o regime de autopeças não produzidas” desta coluna, em coautoria com Marcela Adari (link).
Spacca
Na consecução de seus objetivos, o Mover suscita importante questão a respeito de uma específica manifestação da isonomia ao instituir uma cobrança compensatória de 20% sobre a receita da venda de veículos dos importadores independentes, como noticiado pela Conjur em 28/4/2025 [2].
Mecanismo de compensação ambiental
O parágrafo único do artigo 5º da Lei 14.902/2024 instituiu a cobrança como mecanismo de compensação ambiental: o importador independente que opta por não aderir ao programa Mover – e, portanto, não assume metas de redução de carbono, reciclabilidade ou investimentos em P&D verde — deve recolher, no momento do desembaraço aduaneiro, um valor a título de suposta “compensação”.
A lógica, ao menos aparente, é simples: quem não contribui para a transição tecnológica e para a descarbonização deve pagar pelo impacto que continua a provocar. Em teoria, o montante arrecadado poderia alimentar fundos de pesquisa ou projetos de mitigação, funcionando como verdadeira compensação econômica pelo dano potencial.
Contudo, a sanção é virtualmente inafastável sobre um específico modelo de negócio (importadores independentes), embora o impacto ambiental do veículo seja idêntico, seja ele fabricado localmente ou trazido por filial de montadora, em violação ao sistema não-discriminatório, pedra angular do comércio internacional.
A multa compensatória como ‘sobretarifa velada’
A Lei 14.902/2024 estrutura o programa Mover em torno de três perfis de contribuintes, cada qual submetido a obrigações e incentivos distintos: (1) os fabricantes nacionais: empresas com parque fabril no Brasil que, além de produzirem veículos internamente, podem cumprir as metas de eficiência energética, reciclabilidade e rastreabilidade convertendo parte desse esforço em créditos financeiros ou em deduções de tributos federais.
Nessa categoria, o legislador presume que a industrialização local gera ganhos de escala e domínio tecnológico capazes de viabilizar investimentos em P&D voltados à descarbonização, razão pela qual lhes concede flexibilidade regulatória — podem, por exemplo, compensar o eventual descumprimento parcial de metas ambientais mediante aportes em pesquisa ou aquisição de créditos de terceiros.
Em segundo lugar, os (2) importadores vinculados a fabricantes, isto é, as subsidiárias ou coligadas de montadoras que produzem no país. Apesar de atuarem como importadores, esses agentes se beneficiam do poder tecnológico e financeiro do grupo econômico a que pertencem e, por determinação legal, são autorizados a aderir ao mesmo plano de metas de suas matrizes fabris.
Assim, ao implementarem um modelo ainda não produzido localmente, podem utilizar os resultados globais de P&D — e as eventuais vendas domésticas — para compensar emissões ou déficits de reciclabilidade, evitando sanções diretas no momento do desembaraço.
Por fim, os (3) importadores independentes, tipicamente distribuidores que não mantêm qualquer elo societário com fabricantes sediados no Brasil. Para eles, a Lei 14.902/2024 adota lógica diametralmente oposta: salvo adesão voluntária ao programa Mover (o que implicaria assumir metas muitas vezes incompatíveis com seu porte), essas empresas se veem obrigadas a recolher, na própria DI (Declaração de Importação), uma multa compensatória de 20 % sobre o valor aduaneiro acrescido de tributos, condição “sine qua non” para a liberação das mercadorias [3]. O tributo funciona, portanto, como filtro de entrada — apenas quem internaliza o custo ambiental (ou se submete às metas) consegue operar.
O Decreto 12.435/2025 leva essa segmentação a um novo patamar. Ao regulamentar a intensidade máxima de carbono por quilômetro rodado, fixaram-se limites que pressupõem acesso contínuo a linhas de montagem, bancos de prova e centrais de desenvolvimento, requisitos inalcançáveis para importadores desprovidos de infraestrutura fabril.
Na prática, cria‐se uma barreira para esse segmento de mercado. Em primeiro lugar, conforme artigos 4º e 5º da Lei que instituiu o Mover [4], para o caso dos importadores independentes, a adesão é voluntária, mas, ao mesmo tempo, se não houver a adesão, torna-se imperativo o recolhimento da multa compensatória.
O importador independente de automóveis fora dos parâmetros do programa apenas conseguirá “compensar” as emissões mediante a importação de outro veículo que o suplante em termos de emissão de carbono, de modo que a assimetria normativa se converte em incentivo aos fabricantes nacionais, tendo-se criado um cadafalso tarifário para todo aquele que não detém chão de fábrica.
Encargos adicionais: limites à não-discriminação velada ou de fato
Qualquer encargo não isento superior à tarifa consolidada será considerado tratamento menos favorável do que aquele previsto em lista e, portanto, “sobretarifa” (“surcharge”), como ocorreu no caso DS302 (“Dominican Republic – Import and sale of cigarrettes”), de 2005, em que o Painel detectou a aplicação de tarifa “em excesso” àquela notificada pelo país, não havendo tolerância para qualquer excesso (“de minimis”) [5].
Cabível a remissão ao caso DS342 (“China – Auto Parts”), de 2001, em que Estados Unidos, a União Europeia e o México apresentaram reclamação contra as medidas adotadas pela China em relação às importações de peças automotivas que incluíam tarifas e encargos adicionais, além de exigências de conteúdo local que, segundo os países reclamantes, discriminavam as importações em relação às peças produzidas localmente.
Tanto o painel como órgão de apelação analisaram e concluíram que as tarifas adicionais e outros encargos eram inconsistentes com as obrigações chinesas perante a OMC, em violação, em especial, ao Artigo III:4 do Gatt, em virtude de tratamento menos favorável concedido às importações de peças automotivas em comparação com as peças produzidas localmente. Concluiu-se que as exigências de conteúdo local visavam favorecer as indústrias automotivas domésticas ao reduzir a competitividade das peças importadas por meio de encargos adicionais e requisitos administrativos, de forma a atuar como barreiras ao comércio, impactando negativamente as importações.
O documento concluiu que as exigências de conteúdo local eram inconsistentes com as obrigações da China sob o Acordo de Tecnologia da Informação (ATI) e o Acordo de Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC), pois incentivavam as empresas a utilizar componentes fabricados localmente, em detrimento das importações. Após a decisão do painel e do Órgão de Apelação da OMC, a China concordou em alterar suas medidas para promover a livre concorrência neste e a disputa foi resolvida em agosto de 2012 com a celebração de um acordo de adequação do país às normas da OMC.
Limites ao protecionismo
Os próprios textos internacionais criam rotas de fuga importantes para subsidiar o debate e que devem ser considerados como limites de aceitabilidade para a discriminação (ou, em outras palavras, um protecionismo tolerado, como o próprio imposto de importação).
Assim, o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (Acordo TBT) autoriza a criação de regulamentos técnicos sobre bens do comércio internacional, desde que os objetivos do membro sejam legítimos, como, por exemplo, a proteção ao meio ambiente. Da mesma forma, o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASCM) considera como subsídio irrecorrível a ajuda governamental destinada à assistência para promover a adaptação de instalações existentes a novas exigências ambientais impostas por regulamentos de que resultem maiores obrigações ou carga financeira sobre as empresas.
É necessário se estabelecer, no entanto, que, fora tais contornos previstos nos acordos e convenções, o protecionismo será considerado uma violação ao sistema de comércio internacional.
O alerta é necessário, na medida em que determinadas medidas podem parecer “neutras” com relação aos textos isonômicos, mas, na prática, revelam-se discriminatórias devido aos efeitos por elas produzidos.
Essas medidas podem ser difíceis de detectar e combater justamente porque, muitas vezes, são justificadas por preocupações regulatórias legítimas com a saúde, o meio ambiente ou a segurança pública [6]. Ainda que baseadas nas melhores intenções, têm o potencial de prejudicar o comércio internacional, notadamente no caso de países em desenvolvimento, e reduzir a eficácia das regras e acordos comerciais multilaterais.
[1] BRANCO, Leonardo. “IS-Nivelador: regime e controle da tributação seletiva nas importações”. In: ANDRADE, José Maria Arruda de, BRANCO, Leonardo e PEIXOTO, Marcelo Magalhães. Imposto seletivo na reforma tributária. São Paulo: MP Editora, 2024, pp. 333-352.
[2] https://www.conjur.com.br/2025-abr-28/programa-mover-cria-distorcao-no-mercado-e-pode-gerar-judicializacao/
[3] Art. 5º A importação ou a comercialização dos veículos de que trata o art. 2º desta Lei sem o ato de registro dos compromissos de que trata o § 2º do referido artigo, por parte do fabricante ou do importador, acarretarão multa compensatória de 20% (vinte por cento) incidente sobre a receita decorrente da venda dos veículos.
Parágrafo único. Na hipótese de veículos importados, as multas compensatórias de que trata o caput deste artigo incidirão no momento da nacionalização.
[4] Art. 4º Fica dispensada a emissão de ato de registro dos compromissos para as importações de veículos realizadas por pessoa física ou jurídica sem vínculo direto com o fabricante.
§1º O importador deverá informar ao importador autorizado da marca, quando houver, sobre a entrada dos veículos no País.
§2º O importador autorizado da marca ficará sujeito à responsabilidade de oferecer aos veículos de que trata o caputdeste artigo, que sejam do mesmo modelo e versão daqueles comercializados pelo importador autorizado da marca, a mesma garantia de fábrica, bem como de realizar manutenções, recallse revisões periódicas, sem que haja qualquer diferenciação de cobrança ou prazos.
§3º Para fins de controle de desembaraço aduaneiro das importações referidas no caputdeste artigo, a verificação física é o procedimento fiscal destinado a obter elementos para confirmar que o veículo é novo.
§4º A fiscalização aduaneira, caso considere necessário, poderá solicitar a assistência técnica para constatação do estado físico da mercadoria na verificação física de que trata o § 3º deste artigo.
Art. 5º A importação ou a comercialização dos veículos de que trata o art. 2º desta Lei sem o ato de registro dos compromissos de que trata o § 2º do referido artigo, por parte do fabricante ou do importador, acarretarão multa compensatória de 20% (vinte por cento) incidente sobre a receita decorrente da venda dos veículos.
Parágrafo único. Na hipótese de veículos importados, as multas compensatórias de que trata o caput deste artigo incidirão no momento da nacionalização.
[5] BRANCO, Leonardo. “Imposto de importação”. In: SEHN, Solon, e PEIXOTO, Marcelo Magalhães. Direito aduaneiro e tributação do comércio exterior. São Paulo: MP Editora, 2023, pp. 19-38.
[6] BRANCO, Leonardo. Normas tributárias niveladoras: concreção da não-discriminação por meio de ajustes tributários sobre o comércio internacional. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico, Financeiro e Tributário) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2023.
Leonardo Branco
é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), pós-doutorando, doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral pela Westfälische Wilhelms-Universität (WWU), presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA) e da Comissão de Estudos em Direito Aduaneiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), membro do Conselho Deliberativo da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET), ex-conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax).
Rafael Corrêa Pinheiro
é bacharel e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Rafael Corrêa Pinheiro
é bacharel e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.