Repetro: impactos da reforma tributária e da ‘nova lei geral aduaneira’
Liziane Angelotti Meira
A reforma tributária tem exigido atenção redobrada por parte daqueles que atuam no comércio exterior e no direito aduaneiro brasileiros. Se, por um lado, a simplificação de tributos e a instituição do IBS e da CBS prometem maior racionalidade, mais facilidade na desoneração tributária das exportações e, consequentemente, maior competitividade à economia e ao setor produtivo brasileiros, por outro, o impacto da reforma sobre os regimes aduaneiros especiais requer uma análise mais acurada, especialmente no tocante ao Repetro.
Já abordamos, em textos anteriores [1], a forma pela qual a Constituição passou a aludir ao direito aduaneiro, atribuindo à lei complementar a tarefa de dispor sobre a desoneração dos tributos aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais. Também examinamos o tratamento conferido pelo PLP, que se converteu na Lei Complementar nº 215, de 2025, a esses regimes, chamando atenção para a expressão “suspensão do pagamento dos tributos” e sua dissonância com os fundamentos do direito tributário nacional.
No caso do Repetro, essa discussão torna-se ainda mais relevante. A lei complementar manteve o Repetro entre os regimes desonerados, mas novamente recorreu à expressão “suspensão do pagamento”. Ademais, a reforma tributária, tal como prevista, aplica-se exclusivamente aos novos tributos CBS e IBS, deixando os demais tributos federais em descompasso com as novas regras, o que gera insegurança jurídica.
Nesse cenário, ganha relevo o Projeto de Lei nº 4.423, de 2024, a “Nova Lei Geral Aduaneira”, que trata dos regimes aduaneiros especiais em sua amplitude, incluindo a regulação do controle aduaneiro e a desoneração dos tributos federais já existentes. Assim, além de não utilizar os termos “suspensão do pagamento”, o texto confere tratamento sistemático ao Repetro, classificando-o como modalidade específica de regime aduaneiro especial, com regras próprias e clara delimitação jurídica.
Contexto do Repetro
Antes de abordar as mudanças normativas recentes, é fundamental recuperar aspectos essenciais sobre a instituição, aplicação e impactos do Repetro.
O Regime Aduaneiro Especial de Exportação e de Importação de Bens Destinados às Atividades de Pesquisa e de Lavra das Jazidas de Petróleo e de Gás Natural, conhecido como Repetro, foi criado para permitir a importação e exportação de bens com desoneração dos tributos federais. Assim, o regime reduz significativamente o custo operacional das empresas envolvidas em atividades petrolíferas e de gás natural. Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos, as renúncias fiscais associadas ao Repetro somaram R$ 29 bilhões em 2023, valor que expressa a magnitude do incentivo concedido e sua centralidade na política industrial voltada à energia [2].
Embora represente uma renúncia fiscal relevante, o Repetro se justifica em função de seus efeitos indutivos sobre a percepção de royalties, participação especial e tributos diretos sobre o lucro, bem como pelas externalidades positivas na cadeia nacional de bens e serviços.
Perspectiva normativo-legal
Inicialmente, o Repetro carecia de base legal em sentido estrito. Conforme Rodrigo Mineiro Fernandes,[3] diante da abertura e expansão do mercado de petróleo no Brasil, “foi editado o Decreto nº 2.889, de 1998, que extrapolou a sua função regulamentar e excepcionou o pagamento proporcional dos tributos aos bens relacionados à pesquisa e lavra de petróleo e gás”. O autor observa que essa norma consistia “em uma clara afronta do princípio da legalidade na instituição de isenções”. Dessa forma, Mineiro Fernandes reforça entendimento que já sustentei anteriormente [4], ao caracterizar os regimes aduaneiros especiais como isenções tributárias condicionadas e reconhecer, como consequência, a impropriedade da criação do Repetro sem respaldo legal específico.
Spacca
Posteriormente, o regime foi regulado pelo artigo 2º do Decreto nº 3.161, de 1999, com base na competência conferida pelo artigo 79 da Lei nº 9.430, de 1996. O Regulamento Aduaneiro passou depois a ser o decreto base do Repetro [5] e neste o fulcro legal indicado foi o artigo 93 do Decreto-Lei nº 37, de 1966, que autoriza o Poder Executivo a criar novos regimes aduaneiros especiais por meio de decreto. O artigo 6º da Lei nº 12.276, de 2010, e o artigo 61 da Lei nº 12.351, de 2010, determinaram a aplicação do Repetro ao pré-sal.
Portanto, o Repetro foi desenhado por ato normativo infralegal, mediante a combinação de regimes aduaneiros especiais já existentes e a previsão legal da exportação sem saída física [6], carecendo de especificidade legal, com prejuízo de sua juridicidade bem como de sua estabilidade.
Atualmente o Repetro dispõe de base legal própria: a Lei nº 13.586, de 2017. Esta, inclusive, prorrogou a vigência do regime até 2040, prazo que se estendia até 2020. Vale anotar que a lei complementar prevê a avaliação quinquenal da isenção do IBS e da CBS em alguns regimes aduaneiros, mas o Repetro não está entre eles. Contudo, por meio do Projeto de Lei Complementar nº 32, de 2025, pretende-se estabelecer essa avaliação para o regime de bens de capital do Repetro, com o intuito de evitar a ampliação dos subsídios à produção de petróleo e a redução da sua arrecadação potencial.
Os artigos 5º a 8º da Lei nº 13.586, de 2017, instituem um regime especial de suspensão de tributos federais aplicável à importação definitiva e à aquisição de bens e insumos destinados às atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos. A suspensão abrange II, IPI, PIS/Pasep e Cofins e pode ser convertida em isenção ou alíquota zero após o cumprimento de requisitos legais, como o uso efetivo dos bens nas atividades previstas. O regime não se aplica a embarcações de cabotagem e interior, bem como de apoio marítimo ou portuário, e impõe o recolhimento dos tributos com acréscimos legais caso os bens não sejam corretamente utilizados. O benefício se estende a fabricantes intermediários, sendo regulamentado por ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
‘Nova lei geral aduaneira’
O Projeto de Lei nº 4.423, de 2024 — Projeto da “Nova Lei Geral Aduaneira” — trata do Repetro no Capítulo VI, artigo 151, indicando sua natureza híbrida e integrada por diferentes regimes aduaneiros, tanto de importação quanto de exportação. O Repetro é classificado como regime especial, porém com peculiaridades que o distinguem dos demais, já que reúne elementos de regimes temporários, permanentes e de industrialização.
O artigo 151 enumera as seis modalidades de aplicação do Repetro, conforme a finalidade da operação:
1. Repetro-Temporário: importação de bens para atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos com permanência temporária e desoneração total de tributos federais incidentes na importação.
2. GNL-Temporário: importação de mercadorias destinadas às operações de transporte, movimentação, transferência, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito (GNL).
3. Repetro-Permanente: importação definitiva de mercadorias destinadas às mesmas atividades do Repetro-Temporário, também com desoneração de tributos federais, com exceções previstas, como embarcações destinadas à cabotagem ou navegação interior.
4. Repetro-Industrialização: aquisição no mercado interno ou importação de matérias-primas, intermediários e materiais de embalagem para produção de bens finais para o setor de petróleo e gás, sem incidência de tributos federais.
5. Repetro-Nacional: aquisição do produto final resultante da cadeia de industrialização nacional, pelo setor de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, com o mesmo benefício fiscal.
6. Repetro-Entreposto: importação ou aquisição interna de mercadorias para conversão ou construção de outros bens no Brasil, sob encomenda de empresa estrangeira, cujo destino final esteja vinculado às atividades de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos.
Anote-se que o artigo em análise prevê que a relação específica dos bens suscetíveis de submissão ao regime deve ser elaborada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.
O § 5º do artigo 151 prevê o prazo de vigência do Repetro até 31 de dezembro de 2040, alinhando-se ao disposto na Lei nº 13.586, de 2017. Há no projeto de lei ainda regras específicas para hipóteses de descumprimento das condições do regime, como a perda do benefício fiscal se o bem não for utilizado conforme previsto no prazo de três anos. É também permitida a aplicação do regime a fabricantes intermediários, reforçando a integração da cadeia de suprimentos nacional ao setor. Por fim, o projeto esclarece que o tratamento tributário aduaneiro aplicável às operações no âmbito do Repetro será aquele referente aos regimes integrados a cada modalidade, conforme definido em regulamento, garantindo segurança jurídica e coerência normativa.
Críticas do setor privado
Recorrentes questionamentos têm sido apresentados pelos agentes econômicos privados às novas regras do Repetro, no contexto da reforma tributária, críticas que revelam preocupações estruturais com a manutenção da competitividade e segurança jurídica nas operações de petróleo e gás no Brasil.[7]
O principal ponto é a ausência de plena integração do Repetro com os novos tributos CBS e IBS, de forma a compor um sistema harmônico de desoneração. O setor produtivo teme que a manutenção de tributos residuais ou não harmonizados possa implicar aumento do custo das importações estratégicas, prejudicando a competitividade do país frente a outros grandes produtores globais. Cumpre lembrar que essa integração deve ser feita pelo Projeto da “Nova Lei Geral Aduaneira”, ainda em tramitação.
É também destacada a complexidade operacional introduzida pelas novas regras de creditamento, que vinculam o aproveitamento de créditos ao efetivo pagamento do tributo. Essa exigência é tida como especialmente problemática em cadeias complexas e longas, nas quais o descasamento entre pagamento e operação é recorrente, o que pode gerar impacto direto no fluxo de caixa das empresas e inibir a adesão ao regime.
Ademais, o prazo de vigência do Repetro, limitado até 31 de dezembro de 2040, é tido como fator adicional de instabilidade normativa. Ainda que o prazo represente uma prorrogação em relação a versões anteriores do regime, a fixação de um marco final rígido compromete o planejamento de investimentos com ciclos superiores a uma década, típicos desse setor que demanda investimentos de altíssimo valor. O setor produtivo defende que a nova legislação consolide o Repetro como um instrumento estável, juridicamente seguro e tecnicamente adequado à complexidade das operações envolvidas, com vistas a garantir a continuidade dos investimentos e a atratividade do Brasil no cenário internacional de energia.
Conclusões
O Repetro permanece central para a política fiscal voltada ao setor de petróleo e gás, sendo reafirmado tanto pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023, quanto pela Lei Complementar nº 215, de 2025, e, espera-se, também pelo Projeto de Lei nº 4.423, de 2024.
A consolidação do regime em norma legal, com tratamento sistematizado, o reconhecimento da natureza híbrida do Repetro e sua inclusão sistemática como regime aduaneiro especial com modalidades distintas visa a reforçar a segurança jurídica e o respeito à tipicidade legal dos benefícios fiscais.
No entanto, as críticas formuladas pelo setor produtivo revelam que ainda há desafios a serem enfrentados: a plena integração do Repetro ao novo sistema tributário, a redução da complexidade operacional e a ampliação da previsibilidade normativa são preocupações recorrentes. Ademais, o prazo de vigência limitado até 2040 e a ausência de cláusulas de estabilidade institucional reforçam o caráter transitório do regime, comprometendo sua eficácia jurídica no longo prazo.
[1] MEIRA, Liziane Angelotti. “Impacto da reforma tributária (parte 3): regimes aduaneiros especiais” (Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-set-03/impacto-da-reforma-tributaria-parte-3-regimes-aduaneiros-especiais/. Acesso em: 03.jul.2025); “Impactos da reforma tributária (parte 4): comércio exterior e PLP 68/2024” (Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-out-08/impactos-da-reforma-tributaria-parte-4-comercio-exterior-e-plp-68-2024/. Acesso em: 03.jul.2025); e “Impactos da reforma tributária (parte 5): a nova Lei Geral Aduaneira e os regimes aduaneiros especiais” (Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-nov-12/impactos-da-reforma-tributaria-parte-5-a-nova-lei-geral-aduaneira-e-os-regimes-aduaneiros-especiais/. Acesso em: 03.jul.2025).
[2] Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos. Dados inéditos da Receita Federal do Brasil revelam renúncias bilionárias em favor da indústria do petróleo. (Disponível em https://inesc.org.br/wp-content/uploads/2024/09/levantamento-inedito-mostra-renuncias-bilionarias-para-industria-petroleo-docx.pdf. Acesso em: 3 jul. 2025)
[3] Fernandes, Rodrigo Mineiro. “Regimes aduaneiros especiais voltados à industrialização e o desenvolvimento nacional”, Belo Horizonte, Arraes, 2024, p. 175.
[4] O entendimento de que os regimes aduaneiros especiais não configuram hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, bem como a crítica à expressão “suspensão do pagamento” — inexistente na dogmática do direito tributário brasileiro — já constava da minha obra “Regimes Aduaneiros Especiais”, cuja conclusão foi a de que tais regimes constituem, na verdade, isenções tributárias condicionadas. (MEIRA, Liziane Angelotti. Regimes Aduaneiros Especiais. São Paulo: IOB, 2002, p. 343).
[5] No art. 411 do Decreto n.º 4.543, de e no art. 458 do Regulamento Aduaneiro atual.
[6] Sobre o histórico do Repetro, recomenda-se o estudo de Tom Pierre da Silva “Repetro – regime aduaneiro especial de importação e exportação de bens destinados à pesquisa e lavra de petróleo e gás: análise dos entraves e propostas de soluções”, p. 26-32 (Dissertação de Mestrado, disponível em HTTPS://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/69b916d5-36fc-4bbe-90a2-79118134d6d2/content. Acesso em: 3 jul. 2025).
[7] “Posicionamento ABPIP: a reforma tributária e os seus impactos para o setor de petróleo e gás”, ABPIP, 2023 (relevância mantida), com destaque sobre a rejeição de emenda transitória para o Repetro. Disponível em: https://abpip.org.br/pt/posicionamento-abpip-a-reforma-tributaria-e-os-seus-impactos-para-o-setor-de-petroleo-e-gas/. Acesso em: 3 jul. 2025.
“Estudo mostra os impactos da reforma tributária no setor de óleo e gás”, IBP & FGV, 27 nov. 2024. Disponível em: https://www.ibp.org.br/noticias/estudo-mostra-os-impactos-da-reforma-tributaria-no-setor-de-oleo-e-gas/. Acesso em: 3 jul. 2025.
“Carga tributária do setor de óleo e gás pode aumentar até 20% após reforma”, Exame, 1 abr. 2024. Disponível em: https://exame.com/esg/carga-tributaria-do-setor-de-oleo-e-gas-pode-aumentar-ate-20-apos-reforma/. Acesso em: 3 jul. 2025.
Liziane Angelotti Meira
é presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.