Crise do IOF: debate que extrapola a extrafiscalidade

Tathiane Piscitelli

No dia 22 de junho, completou um mês da publicação do Decreto nº 12.466/2025 que instalou crise no governo por conta das alterações ao IOF. O início da correção de rumos ocorreu já no dia seguinte, com o Decreto nº 12.467/2025 e o recuo na tributação das operações de câmbio com finalidade de investimento. Finalmente, no dia 11 de junho, foi publicado o Decreto nº 12.499/2025, com novas alterações e ajustes, relativos às operações de risco sacado, à fixação de valores de aporte em planos VGBL que resultam em incidência do IOF Seguro, e outras.

Na semana passada, o Congresso Nacional houve por bem sustar os decretos mencionados, com fundamento no artigo 49, inciso V da Constituição, com restabelecimento dos comandos do Decreto nº 6.306/2007, que originalmente disciplina o IOF. Houve, assim, o afastamento de todas as alterações recentemente promovidas. Trata-se do Decreto Legislativo nº 176/2025.

Ontem, um novo capítulo foi iniciado nesta disputa: a Advocacia-Geral da União ajuizou Ação Declaratória de Constitucionalidade, cumulada com Ação Direta de Inconstitucionalidade, com o objetivo de ter a validade do Decreto nº 12.499/2025 confirmada e a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo nº 176/2025 declarada. A ação foi distribuída por prevenção à ADI 7827, ajuizada pelo Partido Liberal (PL) em face dos decretos presidenciais, e à ADI 7839, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em face do decreto legislativo mencionado.

Em linhas gerais, a AGU argumenta que o Decreto nº 12.499/2025 é constitucional na medida em que representa regular exercício da competência prevista no artigo 153, parágrafo 1º da Constituição, que confere ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de alterar as alíquotas do IOF – o mesmo vale para o IPI, Imposto de Importação e Imposto de Exportação. Tais tributos têm natureza eminentemente extrafiscal e a alteração das alíquotas via decreto representa instrumento ágil de intervenção econômica, com vistas ao cumprimento de objetivos fiscais, cambiais e monetários. Sendo assim, não haveria qualquer exorbitância no ato do Presidente da República apta a justificar a prerrogativa do Congresso Nacional de sustar os decretos em questão. Em verdade, alega a AGU, o Congresso é que age para além dos limites de sua atuação ao sustar ato plenamente constitucional e exercido nos limites da Constituição.

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De outro lado, a discussão posta na ADI 7827, que questiona a validade dos decretos, limita-se a afirmar que as alterações promovidas têm fundamento na necessidade de aumento de receitas públicas e atingimento da meta fiscal. Tratar-se-ia, portanto, de finalidade meramente arrecadatória, em dissonância com a função constitucional do tributo. Caso quisesse a União aumentar a arrecadação do IOF deveria fazê-lo por lei. Também nessa direção caminham as justificativas dos Projetos de Decreto Legislativo nº 214/2025 e 313/2025, que resultaram no Decreto Legislativo nº 176/2025: as alterações resultam em aumento da carga tributária e negativa ao caráter extrafiscal do IOF; algo que deveria se submeter ao crivo do Poder Legislativo.

Nesse cenário, faz-se fundamental identificar duas discussões distintas, que, no debate público, estão sendo absorvidas pela discussão sobre a natureza necessariamente extrafiscal ou não do imposto.

Sobre o tema, há disputa teórica interessante. Evidente que todos os tributos, em alguma medida, possuem efeitos fiscais (arrecadatórios) e extrafiscais (regulatórios). O predomínio de uma característica ou outra depende da incidência tributária em jogo e há argumentos para se defender, nesse caso, a prevalência de uma ou outra posição. Uma alternativa interessante seria considerar a primazia da finalidade arrecadatória na presente situação e assegurar, ao menos, a aplicação da anterioridade tributária para as mudanças propostas – posição que já se sagrou vencedora em fevereiro deste ano no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em discussão relativa ao imposto de importação.

A despeito desse ponto, a questão que está sendo esquecida nesse debate é mais crítica do que a identificação do uso que o Presidente da República fez do IOF. Os decretos mencionados, para além de alterarem a alíquota do imposto, também instituíram novas hipóteses de incidência, ao qualificarem como “operação de crédito” ou “operação de seguro” fatos que, antes, escapavam da incidência normativa. Além disso, houve criação de isenções condicionadas e ampliação da sujeição passiva. Nesses pontos, a ofensa constitucional é evidente, já que se trata de modificar elementos cuja alteração depende de lei, em sentido estrito.

Como exemplo, cite-se as operações de risco sacado: como já tratado nesta coluna, trata-se de “operação que se realiza entre uma instituição financeira ou de pagamento e outra pessoa jurídica, que pretende ver antecipado o recebimento de valores decorrentes da venda de mercadorias ou prestação de serviços” e em relação à qual há posicionamento antigo da Receita Federal afastando a qualificação como operação de crédito. A interpretação é corroborada pelo Banco Central do Brasil, que diferencia tal transação de um empréstimo, na medida em que o lojista utiliza suas próprias receitas em vez de tomar recursos emprestados. A equiparação dessas operações a operação de crédito representa ampliação da hipótese de incidência do IOF e questionamento válido sobre a constitucionalidade do decreto presidencial.

O mesmo se diga para o IOF Seguros e a previsão que contempla na incidência do IOF “operações de seguro realizadas por entidades abertas de previdência complementar e outras entidades equiparadas a instituições financeiras”, conforme a redação que se pretendeu ao artigo 2º, inciso III do Decreto nº 6.306/2007. Sobre o tema, ressalte-se: a Lei nº 5.143/1966, ao instituir o IOF, determinou o âmbito de incidência possível do imposto: operações de crédito e seguro, realizadas por instituições financeiras e seguradoras. Posteriormente, a Lei nº 8.894/1994 disciplinou o IOF incidente sobre as operações de câmbio, além de outras providências. Em nenhuma das ocasiões houve qualquer referência a operações de seguro realizadas por entidades de previdência complementar ou entidades equiparadas a instituições financeiras.

As duas situações ilustram, portanto, hipótese de inconstitucionalidade dos decretos presidenciais que extrapolam a discussão da extrafiscalidade, pois se está diante de situações que, de forma inequívoca, ampliam a materialidade do IOF para contemplar operações que nunca estiveram previstas na norma instituidoras da exação. Não há dúvidas de que parte da atuação do Poder Executivo nesse caso exacerba seu poder de competência.

Sobre o tema, é interessante notar que a AGU reconhece, na petição inicial da ADC/ADI proposta que o Decreto nº 12.499/2025 alterou alíquotas incidentes sobre determinados fatos geradores e incluiu “as operações de antecipação de pagamentos a fornecedores e demais financiamentos correlatos no conceito de operação de crédito”. Ou seja, não há dúvidas de que houve a inclusão de novos fatos na hipótese de incidência do imposto, sem lei que autorizasse.

Faz-se fundamental, portanto, que a discussão judicial agora consolidada com a ADC/ADI ajuizada pela AGU não se limite ao debate da extrafiscalidade versus fiscalidade do IOF. Deve-se jogar luzes sobre as novas incidências tributárias e a evidente inconstitucionalidade dos pontos aqui ilustrados.

Tathiane Piscitelli

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