Apuração assistida do IBS e da CBS como concretização do princípio da cooperação tributária
Marcos Pires
A Emenda Constitucional nº 132/2023 acrescentou o § 3º ao artigo 145 da Constituição, estabelecendo, de forma expressa, que o sistema tributário nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. Esse dispositivo normativo representa, em termos constitucionais, uma guinada paradigmática: de um modelo historicamente marcado pela desconfiança mútua, pela opacidade informacional e pela litigiosidade, passa-se a privilegiar valores que reforçam o compromisso entre administração tributária e contribuintes, em ambiente de boa-fé, simetria de informações e maior previsibilidade.
FreepikJuíza explicou que apesar de alterações promovidas pela Lei 14789/23, o crédito presumido de ICMS não incide no cálculo do IRPJ e do CSLL
O princípio da cooperação tributária, agora elevado a patamar constitucional, impõe ao Estado o dever de não apenas fiscalizar e arrecadar, mas também orientar, apoiar e simplificar o cumprimento das obrigações tributárias. Exige, em outras palavras, que o Fisco promova um ambiente institucional capaz de reduzir custos de conformidade, eliminar assimetrias de informação e estimular o cumprimento voluntário dos deveres tributários pelos contribuintes.
Antes mesmo da EC 132/2023, havia iniciativas normativas e administrativas que apontavam nessa direção. O Projeto de Lei Complementar nº 17/2022, que objetiva a instituição do Código de Defesa do Contribuinte, prevê a construção de um ambiente de maior diálogo entre Fisco e contribuintes. De igual modo, o Programa Conformidade Cooperativa Fiscal da Receita Federal do Brasil (Confia), cuja cartilha foi publicada em 2021, inspirou-se nas experiências internacionais de “cooperative compliance” da OCDE, visando selecionar contribuintes de maior porte para programas de cooperação fiscal, baseados em confiança e transparência recíprocas.
No contexto da nova tributação sobre o consumo, disciplinada pela Lei Complementar nº 214/2025, a cooperação assume papel central. A lei institui um modelo de apuração que, ao privilegiar a interação entre administração tributária e contribuintes, busca simplificar procedimentos, reduzir assimetrias informacionais e promover a conformidade voluntária.
O regime regular do IBS e da CBS exige que o contribuinte apure, em cada período mensal, os saldos devidos, com base nas operações realizadas e nas informações fiscais disponíveis. Além disso, os órgãos arrecadadores poderão disponibilizar ao contribuinte uma apuração assistida: uma estimativa prévia de débitos e créditos, apresentada antes do vencimento da obrigação. Cabe ao contribuinte validar, complementar ou ajustar essa apuração, cuja confirmação — expressa ou tácita — enseja a constituição do crédito tributário.
Declaração assistida
A inovação reside especialmente nesse mecanismo de apuração assistida, que passará a ser a regra geral. Ao disponibilizar ao contribuinte uma estimativa consolidada e antecipada dos saldos tributários a serem apurados, o Fisco assume um papel de facilitador no processo de conformidade. Essa prática contribui para reduzir riscos de erro, minimizar inconsistências nas declarações e favorecer uma cultura de cumprimento tempestivo e espontâneo.
Spacca
É um modelo que reforça a simetria de dados e aproxima Fisco e contribuinte de um novo tipo de interação. Trata-se de aperfeiçoamento da sistemática tradicional, centrada em controle posterior e autodeclaração isolada. O foco se desloca agora para um ambiente de colaboração em tempo quase real, com ganhos mútuos de eficiência e segurança jurídica.
Ao substituir o modelo tradicional de lançamento por homologação, em que a constituição do crédito dependia da homologação tácita ou expressa da autoridade administrativa, o novo regime caracteriza-se como um “lançamento por declaração assistida”, cujos efeitos repercutem também sobre a contagem dos prazos de decadência e prescrição. Na prática, a constituição do crédito passa a ocorrer com a confirmação (expressa ou tácita) da apuração assistida pelo contribuinte, tornando mais precisos e controláveis os marcos temporais para exigência do crédito remanescente ou de diferenças.
A experiência internacional reforça a solidez desse caminho. Programas de monitoramento horizontal e cooperação fiscal desenvolvidos em países da OCDE — notadamente Holanda, Irlanda e Estados Unidos — têm gerado resultados consistentes: redução da litigiosidade tributária, aumento da arrecadação espontânea, maior segurança jurídica para investidores e modernização das práticas de administração tributária. Esses modelos, em geral, preveem canais formais e permanentes de diálogo entre contribuintes e a autoridade fiscal, permitindo antecipar conflitos e buscar soluções antes da constituição definitiva do crédito tributário.
O novo regime brasileiro, embora adaptado às especificidades do nosso sistema, compartilha dessa mesma diretriz. A uniformização e a sincronização da apuração assistida para IBS e CBS visam reduzir a complexidade, garantir previsibilidade e criar condições para que o contribuinte planeje suas obrigações com antecedência. Além disso, o uso intensivo de dados digitais e sistemas integrados representa avanço importante na transparência e na governança tributária.
Desafios e requisitos
Entretanto, os desafios são consideráveis. É necessário investimento robusto em tecnologia, interoperabilidade de sistemas e capacitação dos servidores públicos. O sucesso do modelo dependerá da qualidade das informações fornecidas ao contribuinte, da regularidade na atualização de dados e da capacidade institucional de prevenir inconsistências ou falhas que possam gerar insegurança jurídica.
Por outro lado, do lado do contribuinte, a apuração assistida exige maior maturidade organizacional, governança interna e gestão de riscos tributários. Empresas precisarão manter controles contábeis e fiscais rigorosos, assegurar atualização permanente de sistemas e cultivar cultura de conformidade que valorize o relacionamento construtivo com o Fisco.
Se bem conduzida, a apuração assistida do IBS e da CBS poderá se consolidar como marco de transição para uma administração tributária mais moderna, menos conflituosa e mais orientada ao contribuinte. Ao criar condições para que o contribuinte tenha previsibilidade e segurança na constituição de seus créditos, o novo procedimento de constituição dos tributos sobre o consumo reforça a confiança mútua e valoriza o princípio constitucional da cooperação, criando um ambiente mais estável para a relação tributária e para o ambiente de negócios como um todo.
Por fim, cumpre registrar que a concretização do princípio da cooperação tributária, por meio da apuração assistida, representa apenas o primeiro passo em um processo de transformação mais profundo. A expectativa é de que, com a consolidação de boas práticas, o Brasil possa estender esse paradigma para outras áreas da administração tributária, construindo um sistema menos punitivo, mais inteligente e mais alinhado às melhores experiências internacionais.
Marcos Pires
é mestrando em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), eecialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), advogado e sócio da PPF Advocacia.