Função redistributiva e a reforma do imposto de renda (parte 1)
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira, Sonia de Queiroz Accioly
Por nos dedicarmos trabalhar temáticas afetas à 2ª Seção de Julgamento do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) — cuja competência é processar e julgar recursos versando sobre a aplicação da legislação relativa ao i) Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF); ii) Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), em determinadas situações; iii) Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR); iv) Contribuições previdenciárias, inclusive as instituídas a título de substituição e as devidas a terceiros; e, v) penalidades pelo descumprimento de obrigações acessórias pelas pessoas físicas e jurídicas, relativamente aos tributos retromencionados [1] —, nada tratamos da nova tributação do consumo, que gradualmente será implementada a partir do ano que vem.
Spacca
As características regressivas do sistema tributário de nosso país são de amplo conhecimento e, apesar de a reforma ter lançado mão a mecanismos como i) a implementação de alíquotas privilegiadas a serviços e mercadorias entendidos como essenciais — por exemplo, nos termos do artigo 125 da Lei Complementar nº 214/2025, ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre as vendas de produtos que compõem a cesta básica —; e, ii) a devolução individualizada a pessoas físicas, na redação do inciso VII do § 5º do artigo 156-A da Carta Constitucional, certo que pouco se avançou para a realização de uma verdadeira justiça fiscal.
O Projeto de Lei nº 1.087/25, que propõe alterações significativas na tributação do IR no Brasil, tem vocação para dar passos mais largos na edificação de um sistema em que cada qual arque com sua justa cota no pagamento de tributos. De quebra, cabe justamente à 2ª Seção do Carf apreciar querelas envolvendo o IRPF. Todas essas razões justificam o tema eleito da coluna desta semana.
Funções da tributação
A tributação é rotineiramente utilizada por propósitos diversos, que vão desde a mais evidente (arrecadar), passando pela redistribuição da renda e da riqueza à tentativa de moldar o comportamento de pessoas físicas e jurídicas. E justamente por isso é muitas vezes difícil assegurar, na prática, qual a finalidade precípua de uma determinada exação. O fenômeno tributário é, assim, multifacetado, poliédrico e definitivamente não se resume à tarefa de levar dinheiro aos cofres públicos. A tributação, portanto, atua tanto no campo da fiscalidade (função arrecadatória) quanto da extrafiscalidade (funções regulatórias e redistributivas).
Embora há muito Augusto Becker já pontuasse que “[h]á cerca de cinco séculos, já eram percebidos os efeitos da tributação sobre redistribuição do capital e da renda entre os indivíduos e sobre a formação das classes sociais […];” [2] todavia “[…] é raro que muito da discussão política fiscal considere adequadamente as dimensões distributivas ou de estabilização do problema fiscal; em vez disso, a discussão centra-se em questões de eficiência.” [3]
Em simplórias linhas, a finalidade redistributiva da tributação atua de modo a alterar as distribuições interindividuais de riqueza. A missão, portanto, é transformar a realidade socioeconômica, dissolvendo as concentrações de riqueza que vêm se revelando cada vez maiores e cruéis, para a construção de uma sociedade mais justa.
A excelência da imposição tributária no desempenho dessa função é, para muitos, notório , sendo que até a OMS veio testemunhar que “[…] a redistribuição de renda, via tributos e transferências — essa última, chave da proteção social — é mais eficiente para a redução da pobreza do que o crescimento econômico per se.” [4]
A mudança da teoria tributária de matriz contratualista do “imposto-troca” (l’impôt-échange) para uma de viés igualitário do “imposto-solidariedade” (l’impôt-solidarité) [5] permitiu a ascensão da técnica da progressividade, tida hoje como um dos principais mecanismos de se promover a redistribuição via sistema tributário, uma vez que “[a] mera proporcionalidade do imposto não parecia mais satisfatória para manter a equidade fiscal, porque ela não conseguia garantir a igualdade de sacrifícios entre os cidadãos.” [6]
A faceta redistributiva da tributação, assim, atua como instrumento de justiça social, contribuindo para a redução do abismo entre indivíduos e, consequentemente, para a salvaguardar a dignidade de nossos concidadãos.
Exposição de motivos do PL 1.087
Com base em estudo desenvolvido no seio do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a exposição de motivos do Projeto de Lei nº 1.087/25 (aqui) começa denunciando que:
[a] renda acumulada pelo 1% mais rico também é um bom indicador de concentração e, no caso brasileiro, atingiu aproximadamente 23,6% da renda disponível bruta das famílias em 2022 … Esse nível de concentração é não só um dos mais altos do mundo como também cresceu nos anos recentes…
Já os milionários, aqueles que possuem uma renda superior a R$ 1 milhão anuais, representam cerca de 307 mil pessoas ou 0,2% da população adulta, conforme pode-se aferir pelas declarações de IRPF de 2022.
Outra forma de analisar a mesma questão é olhar para quanto cada estrato de renda concentra dos diferentes tipos de rendimento. Nesse sentido, … estrato do 1% mais rico concentra aproximadamente 8% da renda de salários e benefícios sociais e mais de 70% dos rendimentos do capital, resultando nos 23,6% da renda disponível total.
Quando subimos mais na pirâmide e chegamos ao 0,1% mais rico, verificamos que os milionários deste estrato concentram apenas 1,5% das rendas do trabalho e benefícios sociais, mas 45% da renda do capital e mista, o que resulta numa participação de 11,9% sobre a renda total.
As principais causas apontadas para que cenário tão iníquo se conformasse foram:
[a] baixa (ou nula) progressividade da tributação da renda, em especial no topo da distribuição (0,2% mais ricos, precisamente), é reflexo de inúmeras distorções e privilégios perpetuados no sistema tributário brasileiro. Entre elas, destacam-se não só a isenção sobre lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas (caso raro no mundo atual) como também os benefícios inerentes aos regimes especiais de tributação e as brechas existentes no regime de Lucro Real, que tornam a tributação do lucro das empresas brasileiras tão díspar entre diferentes corporações e setores econômicos, como vimos anteriormente.
Panorama geral do PL
De modo a atender aos objetivos constitucionais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” [7], o Projeto de Lei nº 1.087/25 gravita em torno de 3 (três) eixos principais:
(i) a redução a zero do IRPF para as pessoas físicas com renda ou proventos de até R$ 5.000,00 por mês;
(ii) o estabelecimento de desconto no IRPF para as pessoas físicas com renda ou proventos até R$ 7.000,00 por mês; e,
(iii) a criação do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas Mínimo — IRPFM, incidente sobre rendas ou proventos totais superiores a R$ 600.000,00 anuais, combinado com tributação pelo IR dos lucros ou dividendos, inclusive para não residentes.
A exposição de motivos aclara que nova hipótese de incidência sobre altas rendas, mediante a aplicação do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo (IRPFM) foi desenhada a partir da “observação da ‘progressão inversa’ do imposto, quando considerada a alíquota efetiva de cada contribuinte, em que, quanto maior o rendimento do contribuinte, menor a tributação efetiva, tendo em vista as diversas deduções da base de cálculo e as isenções a que tem direito.” (aqui)
Esclarecendo ainda que, em observância ao disposto no artigo 129 da Lei nº 15.080, de 30 de dezembro de 2024, Lei de Diretrizes Orçamentária/LDO-2025, e do artigo 14 da LRF, as renúncias de receita serão compensadas pela instituição da nova hipótese de incidência sobre altas rendas e a tributação dos lucros e dividendos remetidos ao exterior. (aqui)
Calha pontuar que conceito de rendimentos totais proposto no PL alcança todos os rendimentos recebidos no ano-calendário, inclusive os tributados de forma exclusiva ou definitiva e os isentos, sujeitos à alíquota zero ou reduzida, e exclui, dentre outros: i) ganhos de capital, exceto os ganhos líquidos no mercado de capitais, rendimentos recebidos acumuladamente; ii) doações em antecipação de legítima e herança, indenizações recebidas, exceto lucros cessantes; e, iii) os rendimentos isentos decorrentes de proventos de aposentadoria ou por doenças previstas em lei.
A alíquota do IRPFM anual será de 10% para rendimentos iguais ou superiores a R$ 1,2 milhão, e crescerá linearmente, de zero a 10%, para os rendimentos totais auferidos na faixa de R$ 600 mil a R$ 1,2 milhão. Apurado o IRPFM anual, a pessoa física poderá deduzir as retenções em fonte, o imposto de renda pago sobre os rendimentos sujeitos a tabela progressiva, e até o redutor previsto no PL, para a tributação de dividendos.
O PL estabelece IR mensal, incidente sobre o pagamento lucros ou dividendos por uma mesma pessoa jurídica a uma mesma pessoa física residente no Brasil em montante superior a R$ 50 mil em um mesmo mês. A previsão é de retenção na fonte do IR à alíquota de 10% sobre o total do valor pago sem qualquer dedução, para creditamentos acima R$ 50 mil/mês.
Caracterização de residentes e não-residentes
Caso convertida em lei, a tributação mensal das altas rendas terá como sujeito passivo aqueles residentes no Brasil, razão pela qual imprescindível diferenciá-los dos não-residentes.
Considera-se residente no Brasil, para fins de tributação pelo imposto sobre a renda, por exemplo, a pessoa física que resida em território nacional em caráter permanente. Aquele que decide se retirar em caráter permanente do solo brasileiro, no curso do ano-calendário, não pode se olvidar de cumprir algumas obrigações:
(i) apresentar a Comunicação de Saída Definitiva do País (CSD), a partir da data de saída e até o último dia do mês de fevereiro do ano-calendário subsequente
(ii) apresentar a Declaração de Saída Definitiva do País (DSDP), relativa ao período em que tenha permanecido na condição de residente no Brasil no ano-calendário da saída, até o último dia útil do mês de maio do ano-calendário subsequente ao da saída definitiva
(iii) apresentar as declarações correspondentes a anos-calendário anteriores, se obrigatórias e ainda não entregues
(iv) recolher em quota única, até a data prevista para a apresentação das declarações, o imposto nelas apurado e os demais créditos tributários ainda não quitados.
O objetivo da apresentação da CSD é o de informar à RFB dados referentes à perda da condição de residente fiscal no Brasil, como:
(i) a data da perda da condição de residente fiscal no Brasil — na saída definitiva, a data a ser informada na CSD é a que o contribuinte efetivamente deixou o país;
(ii) o nome e CPF dos dependentes que devem acompanhar o contribuinte (por exemplo, cônjuge e filhos menores);
(iii) o nome, CPF e endereço completo do procurador nomeado pelo contribuinte para realizar procedimentos perante a RFB.
O formulário de CSD permite identificar o CPF ou CNPJ das fontes pagadoras no Brasil, para a informação da nova situação do contribuinte, de forma que as retenções observem os corretos códigos de recolhimento e alíquotas.
A DSDP, ao seu turno, é uma declaração de ajuste anual sui generis, abrangendo o período entre o dia 1º de janeiro e a data da perda da condição de residente fiscal no Brasil, informada na CSD.
Jurisprudência do Carf
A jurisprudência do Carf [8] caminha no sentido da obrigatoriedade da CSD, sob pena de que exista uma presunção relativa de residência com aplicação da sistemática da tributação de residentes ao longo dos 12 primeiros meses de ausência, e de que a Declaração de Ajuste Anual (DAA) exibida deve ser tomada como indício importante para estabelecimento da residência para fins fiscais.
Tal presunção pode ser afastada com a demonstração da condição de não residente fiscal mediante apresentação de documentação hábil e idônea, cujo ônus probatório recai sobre a pessoa física, evidentemente.
Não cabe abordar, neste momento, todas as situações descritas nos normativos — IN SRF nº 208/2002, por exemplo — de residente e não residente fiscal; entretanto, a condição de residente implica que a pessoa física terá o acréscimo patrimonial tributado pelo IR, tanto recebido de fontes situadas no aqui como no exterior. Soma-se o fato de que a pessoa física que passar à condição de residente no Brasil estará sujeita às normas vigentes na legislação tributária aplicáveis aos demais residentes, a partir da data em que assim for considerado, restando obrigado, por exemplo, a entrega da DAA.
Caso a pessoa física não adquira a condição de residente, seus rendimentos recebidos no Brasil serão tributados de forma definitiva (ganhos de capital) ou exclusiva na fonte (demais rendimentos). Adquirida a condição de residente no país, a partir dessa data, os rendimentos recebidos de fontes situadas no território nacional ou no exterior serão tributados de acordo com as normas aplicáveis aos residentes em solo nacional.
Reflexões futuras
Demonstrado o atual estado da arte, tirante de dúvidas que muitas são as reflexões já levantadas — e ainda porvir — acerca desta nova forma de tributação dos mais afortunados. Diante de um cenário em que é impossível alegar ignorância das mazelas ocorridas no nosso país, fomentadas e aprofundadas pelo sistema tributário altamente regressivo adotado, certo haver muito a mudado para que a dignidade dos despossuídos não continue a ser negligenciada.
Arestas precisarão ser aparadas no Projeto de Lei nº 1.087/25; contudo, deve ser o PL festejado, já que há muito necessita nosso país abandonar a malfadada pecha de “paraíso tributário para super-ricos”. (aqui)
_________________________________________
[1] Vide art. 44 do Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (RICarf).
[2] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p. 622.
[3] BIRD, Richard. Taxation and development. Poverty Reduction and Economic Management Network (PREM), n. 34, p. 1-5, 2010, p. 3.
[4] JIMÉNEZ, Juan Pablo (ed.). Desigualdad, concentración del ingreso y tributación sobre las altas rentas en América Latina. Santiago do Chile: Publicación de las Naciones Unidas, 2015, p. 25.
[5] Sobre as ideologias que inspiraram a teoria do imposto, cf. Seção 2 (Les représentations libérale et communautariste de l’impôt) do Cap. 3 de BOUVIER, Michel. Introduction au droi fiscal général et à la théorie de l’impôt. 12ª ed. Paris: LGDJ Lextenso éditions, 2012 (Systèmes Fiscalité).
[6] SACCHETTO, Cláudio. O dever de solidariedade no direito tributário: o ordenamento italiano. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 9-52, p. 26.
[7] Ex vi dos incs. I, III e IV do art. 3º da CRFB/88.
[8] A título ilustrativo, cf.: Acórdão nº 2202-009.928, j. em 13 de jun. de 2023; Acórdão nº 2301-007.136, j. em 4 de mar. de 2020; Acórdão nº 2202-000.999, j. em 08 de fev. de 2011.
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira
é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.
Sonia de Queiroz Accioly
é presidente da 2ª Turma da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura (EPM-SP), pós-graduada em Direito Tributário pela FGV-SP, ex-chefe da Divisão de Tributação (Disit) na 8ª Região Fiscal da RFB, ex-delegada da DRJ/Campinas e da Delegacia Especial da RFB de Pessoas Físicas (Derpf) na 8ª Região Fiscal da RFB.
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira, Sonia de Queiroz Accioly
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira
é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.
Sonia de Queiroz Accioly
é presidente da 2ª Turma da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura (EPM-SP), pós-graduada em Direito Tributário pela FGV-SP, ex-chefe da Divisão de Tributação (Disit) na 8ª Região Fiscal da RFB, ex-delegada da DRJ/Campinas e da Delegacia Especial da RFB de Pessoas Físicas (Derpf) na 8ª Região Fiscal da RFB.