Impactos da reforma no licenciamento de uso de IA generativa integrada
Maria Eduarda Gusmão de Lima
A Quarta Revolução Industrial, ou Indústria 4.0, projetou [1] soluções tecnológicas desenvolvidas por automação, a exemplo da internet das coisas (IoT) ou inteligência artificial (IA), aptas a remodelarem o modo de viver da sociedade.
FreepilBraço robótico humanoide escrevendo com caneta sobre papel
Não há dúvidas de que novas formas de geração de riqueza estão em constante evolução e estão sendo incorporadas aos processos produtivos das companhias. Nos últimos anos, destacou-se, enquanto solução tecnológica revolucionária, a IA generativa. Tecnologia aperfeiçoada constantemente por meio dos dados coletados dos usuários e baseada em modelos de machine learning e deep learning, especialmente redes neurais. Em resumo, a IA generativa cria conteúdos por conjunto de algoritmos que foram treinados com grandes volumes de dados — exemplos: GPT-4, Gemini, entre outros.
A IA foi definida [2] pelo Grupo de Especialistas de Alto Nível em Inteligência Artificial, da Comissão Europeia, como: “sistemas que se comportam de forma inteligente ao analisar seu ambiente e realizar ações — com algum grau de autonomia — para atingir objetivos específicos”. Os especialistas também ressaltaram que as soluções tecnológicas baseadas em IA podem ser baseadas em softwares virtuais ou incorporadas em hardwares (exemplos: carros autônomos, drones, aplicativos de IoT, entre outros).
Atualmente, é real a possibilidade de otimização dos procedimentos internos das empresas, especialmente prestadoras de serviços, por meio da contratação de uma licença de uso de software [3], que utiliza a IA generativa como tecnologia incorporada, geralmente via modelos pré- treinados. Nessa hipótese, a empresa de tecnologia licencia para o adquirente o uso do software com IA generativa incorporada, permitindo a utilização do produto licenciado.
Novo sistema de tributação
Em meio a um contexto de aceleradas mudanças nos modelos de soluções tecnológicas comercializadas pelas big techs, que resultam em alterações substanciais nas estruturações dos negócios realizados pelas empresas ou sociedades prestadoras de serviços, sobreveio uma outra mudança relevante para o desenrolar da atividade econômica no cenário nacional: o nascimento de um novo sistema de tributação nacional sobre o consumo em 2023.
No início de 2025, foi publicada a LC 214/2025 [4], responsável por traçar as linhas gerais da “reforma tributária”, introduzida ao Sistema Tributário Nacional pela EC 132/2023 [5], que trouxe ao texto constitucional as figuras inéditas do Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS) — que substituem o ICMS/ISS/IPI/IOF-Seguros/PIS e Cofins.
Esses novos tributos, devidos nas variadas fases do ciclo econômico, ou Imposto Sobre o Valor Agregado (IVA) Dual, também funcionam por meio de sistemática incidente sobre valor agregado, em diversos elos da cadeia de consumo, com direito ao abatimento do imposto pago em operações anteriores. E foram desenhados para fins de simplificação do sistema tributário nacional, por meio da operacionalização de fatores que impliquem neutralidade e simplicidade.
O fato gerador do IBS e da CBS são idênticos e os tributos serão instituídos por “competência compartilhada” entre a União e os entes subnacionais. Uma das principais alterações promovidas pela LC 214 diz respeito a ampliação da base de cálculo dos tributos incidentes sobre o consumo, de modo que os novos tributos alcançarão praticamente toda sorte de operações onerosas com bens e serviços, praticadas com habitualidade, em ciclo comercial.
Spacca
Situação que se traduz em um perfil inédito, conferido ao IVA-Dual, na medida em que o novo tributo alcança formas de produção de riqueza que antes não eram tributadas e, consequentemente, não geravam créditos aos contribuintes participantes de determinado ciclo econômico.
Transformação da economia
Um dos motivos para a ampliação da base de cálculo dos tributos incidentes sobre o consumo se deu em razão da transformação da economia, em decorrência da elevação do percentual de operações firmadas em meio digital. O fato gerador do IVA-Dual compreende as operações com bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, inclusive direitos e serviços [6]. Assim, todas as operações com bens e serviços, objeto de negócio jurídico oneroso, praticado com habitualidade e no contexto de ciclo comercial, serão alcançadas pelo IBS/CBS.
Portanto, a substituição de antigos impostos sobre o consumo, por novos tributos com base econômica mais flexível, promove a modernização da tributação nacional. Pois, a agregação de valor aos processos produtivos por meio de bens intangíveis e serviços digitais serão amplamente tributados pelo IBS/CBS, em sistemática de tributação informada pelo princípio da não cumulatividade (amplamente considerado). Em termos práticos, o elastecimento da base tributável dos tributos incidentes em ciclo comercial resulta em elevação exponencial dos casos possíveis a serem alcançados pelo IVA-Dual.
Nos últimos anos, foram objeto de apreciação, por parte dos tribunais superiores, controvérsias envolvendo a disponibilização de bens 100% digitais aos adquirentes. Portanto, não é de se espantar que a base econômica de incidência do IBS e da CBS inclua os bens incorpóreos ou imateriais, pois há anos os entes federativos buscam argumentos para arrecadar tributos sobre a comercialização de bens e serviços tecnológicos.
Entendimento do STF
Por cerca de 20 anos, o STF manteve [7] o entendimento de que as operações que tinham como objeto a comercialização de softwares padronizados, entendidos como obra intelectual produzida em massa, fornecida em larga escala aos usuários, não deveria estar fora do âmbito de incidência do ICMS, por representarem negócios jurídicos com mercadorias padronizadas, que não caracterizavam o licenciamento ou cessão do direito de uso de obra intelectual, tributável pelo ISS.
Contudo, em 2021, o STF modificou seu entendimento sobre o tema [8], de forma que todas as operações com programas de computador que envolvam o licenciamento ou cessão de uso de software — customizado ou não — devem ser tributadas pelo ISS, sob o racional de que o fato tributável nessas operações decorre de contrato complexo que abrange a obrigação de dar um bem digital, desenvolvido mediante um fazer ou esforço humano. Além disso, destacou-se que o licenciamento de programas de computador está elencado dentre os serviços [9] previstos na Lista Anexa à LC 116.
Diante disso, mesmo em um cenário pré-reforma tributária, a Corte Constitucional buscava interpretar o substrato econômico de quaisquer operações envolvendo o fornecimento de licenciamento do uso de software enquanto tributáveis pelo ISS, de forma que tais operações não estavam livres de oneração por custos tributários.
A LC 214 prevê [10] expressamente a tributação das operações que envolvam o licenciamento do uso de programas de computador pelo IBS/CBS, considerando-se “(…) operação onerosa com bens ou com serviços qualquer fornecimento com contraprestação, incluindo o decorrente de licenciamento”[11].
Ônus tributário
No cenário atual, além de não haver dúvidas de que todas as operações onerosas que envolvam o fornecimento de bens intangíveis ou serviços, serão tributadas pelo IBS/CBS — e não somente o licenciamento de programas de computador —, haverá elevação do ônus tributário incidente sobre as operações realizadas pelas empresas fornecedoras de licenciamento de softwares que operam por meio de redes neurais artificiais — a exemplo do ChatGPT.
Pois, a alíquota combinada do IBS/CBS será em torno de 28%, situação a qual, em comparação à alíquota do ISS, que varia entre 2-5%, representa às empresas de tecnologia ônus financeiro bastante expressivo. Além disso, o cálculo dos tributos devidos a título de IBS/CBS será realizado sob alíquota-padrão, incidente sobre todos os bens e serviços [12]. De modo que a União fixará a alíquota da CBS e a alíquota do IBS corresponderá a soma da alíquota do estado de destino da operação e da alíquota do município de destino da operação. Diante disso, as big techs recolherão mais impostos sobre todas as operações com bens e serviços, que forneçam aos adquirentes soluções tecnológicas.
No mesmo sentido: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.659, j. 24.02.2021. Trânsito em julgado em 28.05.2021. ADI 1.945, j. 24.02.2021. Trânsito em julgado em 27.05.2021.
Em contrapartida, se anteriormente a operação de licenciamento de software era tributada pelo ISS — imposto cumulativo, que não gerava créditos ao adquirente dos serviços; a não cumulatividade do IVA Dual é ampla [13]. Dessa forma, as empresas que adquirirem essas tecnologias, independentemente de as utilizarem para otimização qualitativa ou quantitativa dos bens ou serviços que serão posteriormente transacionados, poderão compensar créditos de IBS/CBS, referentes às notas fiscais que registram a operação de aquirencia do software de IA- Generativa.
Pois, a sistemática de não cumulatividade ampla do IBS/CBS permite a apuração de créditos em relação a todos os bens e serviços adquiridos pela companhia, excetuados aqueles para uso e consumo pessoal. De modo que a companhia poderá descontar do imposto recolhido aos entes federativos os créditos referentes à tecnologia contratada. Portanto, um dos impactos financeiros que a reforma tributária traz às companhias que implementarem o uso de softwares de IA- Generativa em seus negócios reside na possibilidade de apuração de créditos relacionados às tecnologias adquiridas, que desonerarão as operações de saída praticadas pela companhia.
Exemplo de tributação
A título exemplificativo, imagine-se que determinado escritório de advocacia contrata junto à empresa de tecnologia software de soluções de IA-Generativa que gera novas petições por meio dos dados já existentes em sistema de informática interno do escritório. Não há dúvidas de que essa contratação está relacionada aos serviços prestados pelo escritório de advocacia e, portanto, gera créditos a título de IVA-Dual.
Pois, a operação onerosa de fornecimento do licenciamento do uso de software à sociedade de advogados será tributada pelo IBS/CBS e sobre a operação de prestação dos serviços advocatícios também incidirá o IVA-Dual. Restando possibilitado que o escritório de advocacia aproprie créditos de IBS/CBS, referentes ao tributo pago por parte da empresa de tecnologia.
A evolução dos meios de produção por intermédio de tecnologias geradas pela Quarta Revolução Industrial, considerada conjuntamente à modernização da tributação sobre o valor agregado, por meio da reforma tributária (EC 132/2023), resulta em impactos fiscais expressivos aos agentes que participarem de cadeias de consumo que envolvam o fornecimento de bens e serviços.
Além da elevação da carga tributária suportada pelas empresas fornecedoras de bens e serviços tecnológicos, destacamos que as companhias ou sociedades prestadoras de serviços devem ficar atentas à apuração de créditos de IBS/CBS, referentes a quaisquer operações tributadas em elo anterior da cadeia de consumo, e que resultem em obtenção de bens ou serviços relacionados ao seu negócio. Dado que a contratação de tecnologias desenvolvidas pela Indústria 4.0, gerará créditos aos adquirentes, que funcionam como moedas de pagamento ao tributo a ser recolhido aos cofres públicos em operação subsequente.
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Art. 9º, Lei 9.609, de 19 de fevereiro de 1998 (“Lei 9.609”).
4 Lei Complementar 214 (“LC 214”), de 16 de janeiro de 2025.
5 Emenda Constitucional (“EC”) 132, de 20 de dezembro de 2023.
6 Art. 3º, I, a, b, LC 214.
7 Supremo Tribunal Federal (“STF”), RE 285.870-AgR, j. 17.06.2008. Trânsito em julgado em 02.09.2008.
8 STF, Recurso extraordinário (“RE”) 688.223 (Tema 590), j. 06.12.2021: “É constitucional a incidência do ISS no licenciamento ou na cessão de direito de uso de programas de computação desenvolvidos para clientes de forma personalizada, nos termos do subitem 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03”. Trânsito em julgado em 20.05.2022.
9 Art. 1°, Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2002 (“LC 116”).
Lista anexa, LC 116: “1 – Serviços de informática e congêneres. (…) 1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.”
10 Art. 3º, II, b, LC 214.
11 Art. 4º, p. 2º, III, LC 204.
12 Art 14, LC 214.
13 Art. 47, LC 214.
Maria Eduarda Gusmão de Lima
é advogada, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda em Direito Tributário pela PUC-SP.