Planejamento tributário, o teste da subtração e a utilização de empresa veículo
Sergio André Rocha
Sem nenhuma dúvida, um dos textos mais relevantes da literatura nacional sobre os limites do direito de economia tributária dos contribuintes, talvez o mais relevante, é o livro “Planejamento Tributário”, do professor Marco Aurélio Greco.
Spacca
A primeira edição deste livro foi publicada em 2004, [1] em um período histórico peculiar. Em 2001 tinha sido editada a Lei Complementar nº 104, que incluía o parágrafo único do artigo 116 no Código Tributário Nacional. Em 2002, a regulamentação deste dispositivo havia sido tentada por meio da Medida Provisória nº 66, cujos artigos 13 a 19, que tratavam dos “procedimentos relativos à norma antielisão”, acabaram não integrando o texto da Lei nº 10.637/2002, lei de conversão da aludida medida provisória.
O vácuo deixado pela não conversão em lei dos dispositivos previstos na Medida Provisória nº 66/2002 fez com que as autoridades da Receita Federal, em um primeiro momento, e, em um segundo momento, os julgadores e julgadoras do Primeiro Conselho de Contribuintes e, posteriormente, do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, voltassem a atenção para a obra de Marco Aurélio Greco, buscando uma interpretação do ordenamento jurídico que superasse o hiato de dispositivos específicos sobre os limites do planejamento tributário.
Esta circunstância, possibilitou um avanço inegável no debate acerca dos limites do planejamento tributário, mas trouxe algumas externalidades negativas, decorrentes tanto da distorção que a teoria de Marco Aurélio Greco sofreu com interpretações que se distanciavam das suas posições, quanto da aplicação genérica de suas considerações de forma, não raro, descasada da situação concreta do contribuinte. [2]
Talvez uma das maiores distorções das contribuições teóricas de Marco Aurélio Greco seja a aplicação do capítulo XVIII de seu livro, intitulado “Operações preocupantes”, como se fosse uma espécie de roteiro para autuações fiscais, embora o próprio Greco destaque que “a referência às operações é razão de maior atenção, sem que isto signifique, por si só, as operações enumeradas serem, ela mesmas, ilícitas ou mesmo que a sua existência seja motivo suficiente para deflagar o efeito da inoponibilidade perante o Fisco”. [3]
Este artigo vai focar a atenção em um tema específico, as chamadas “operações estruturadas em sequência”, apontando a relevância do que temos chamado teste da subtração para verificar se os atos e/ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte podem ser desconsiderados pelas autoridades fiscais.
Operações estruturadas em sequência
Qualquer pessoa que já esteve envolvida de perto com operações de M&A sabe que, com frequência, a implementação da compra e venda de uma participação societária requer a execução de atos jurídicos preparatórios e posteriores. Este fato, em si mesmo, diz muito pouco sobre a existência de alguma artificialidade ou de configuração de uma simulação, o que pode estar presente, mas pode, igualmente, ser insustentável diante dos fatos do caso concreto.
Marco Aurélio Greco tratou das “operações estruturadas em sequência” nos seguintes termos:
“Sob esta denominação estão as step transactions, vale dizer, aquelas sequências de etapas em que uma corresponde a um tipo de ato ou deliberação societária ou negocial encadeado com o subsequente para obter determinado efeito fiscal mais vantajoso. Neste caso, cada etapa só tem sentido se existir a que lhe antecede e se for deflagrada a que lhe sucede.
Uma operação estruturada indica a existência de um objetivo único, predeterminado à realização de todo o conjunto. E mais, indica a existência de uma causa jurídica única que informa todo o conjunto. Nestes casos, cumpre examinar se há motivos autônomos, ou não, pois se estes inexistirem, o fato a ser enquadrado é o conjunto e não cada uma das etapas.” [4]
Em uma leitura simplista, que muitas vezes encontramos em autos de infração e em decisões administrativas, utiliza-se este alerta de Greco como se fosse um atestado de simulação aplicável a qualquer caso em que se identifique a prática de diversos atos societários. Isso ocorre, inclusive, em situações nas quais tais atos sequer têm como objetivo a geração de economia tributária, de modo que a subtração dos mesmos não afasta a aplicação do regime jurídico-fiscal mais vantajoso para o contribuinte.
Para esses casos, tenho sugerido a aplicação do referido teste da subtração, o qual evidencia, em situações concretas, que os atos praticados não foram responsáveis pela economia tributária. Vejamos.
O teste da subtração
Do modo que vimos sustentando, o teste da subtração presta-se a comprovar que determinada “operação estruturada em sequência” não teve como finalidade a geração de uma economia tributária, sustentando-se em objetivos extrafiscais.
Em linhas gerais, o que se propõe é verificar se em determinada situação concreta as consequências tributárias de uma transação seriam as mesmas, ainda que certos atos, anteriores ou posteriores ao seu fechamento, não tivessem sido praticados.
Considerando uma outra provocação de Marco Aurélio Greco, sobre se a realidade deve ser fotografada ou filmada, [5] o que estamos defendendo é que, se a cena final do filme for a mesma, ainda que o enredo tenha diferenças, há que se reconhecer que as alterações na história não lhe alteraram o resultado.
Dessa forma, o teste da subtração tem como premissa o reconhecimento de que em reorganizações societárias é possível que existam justificativas não tributárias para a prática de atos jurídicos (i) efêmeros, realizados e em seguida desfeitos ou superados por atos subsequentes, ou (ii) que agreguem aparente complexidade jurídica a uma transação. Nesses casos, se a subtração de tais atos jurídicos não eliminar o benefício fiscal, este fato, sozinho, será suficiente para assegurar a legitimidade da estrutura implementada pelo contribuinte e a sua consequente oponibilidade ao Fisco.
Um dos casos que melhor ilustra o raciocínio que apresentamos acima e a aplicação do teste da subtração é a amortização fiscal do ágio — ou goodwill, na definição pós Lei nº 12.973/2014 — na aquisição de participação societária.
Caso da utilização de empresa veículo para amortização de ágio
Nas operações que envolviam a utilização fiscal de ágio pago na aquisição de participação societária anteriormente à edição da Lei nº 12.973/2014, o ágio, em si, surgia no momento da aquisição do investimento. O início da utilização fiscal do ágio ocorria quando era realizada a incorporação entre a pessoa jurídica detentora da participação societária adquirida com ágio e a investida. A incorporação não fazia — como não faz no atual regime — surgir o direito ao benefício, mas marcava o início da sua fruição.
Note-se que, para fins de simplificação do exemplo utilizado para a aplicação do teste da subtração, estamos focando nossa atenção na amortização do ágio anterior à edição da Lei nº 12.973/2014, embora essas considerações sejam igualmente aplicáveis àquele contexto.
A Lei nº 9.532/1997, ao estabelecer a necessidade de um ato de concentração patrimonial para fins do início do aproveitamento fiscal do ágio, outorgou ao contribuinte o direito de escolher realizar este tipo de operação. Portanto, a implementação da incorporação, da fusão ou da cisão, sequer pode ser considerada um planejamento tributário, uma vez que estamos diante de uma operação cuja realização foi requerida pela própria lei, para possibilitar a amortização fiscal do ágio.
Assim, é possível já estabelecer uma premissa importante: a incorporação com a finalidade de utilização fiscal de um ágio efetivamente pago na aquisição de participação societária, entre partes independentes, é uma opção legal do contribuinte, uma possibilidade prevista em lei, cuja decisão de implementação não requer aquiescência nem concordância de qualquer autoridade pública.
Assim sendo, tratando-se de uma operação realizada dentro do Brasil, entre partes independentes, uma vez feita a aquisição da participação societária com ágio, a decisão de utilizar a dedução fiscal, ou não; de como se dará a utilização da dedução fiscal; e de quando utilizar a dedução fiscal cabe integralmente ao contribuinte.
Contudo, nem sempre, de uma perspectiva empresarial, administrativa, comercial, societária etc., faz sentido a realização da incorporação diretamente entre adquirente e adquirida. É, portanto, usual a realização de etapas preparatórias que evitem consequências adversas para a investidora e/ou para a investida.
Por exemplo, pode ser que a integração de sistemas tecnológicos internos — de cadastro de clientes, de escrituração contábil/fiscal, de gestão, etc. — seja trabalhosa e dispendiosa demais; também pode ocorrer que as pessoas jurídicas tenham formas societárias distintas, e se pretenda manter esta situação; ou, ainda, que de uma perspectiva de governança societária, outro modelo de implementação seja mais adequado. Há diversas situações em que a confusão patrimonial entre a adquirente original e a entidade investida não se mostra ideal ou adequada — para outros fins não tributários.
Para evitar tais situações, e outras como as que envolvem o sigilo da operação durante as negociações entre as partes e a mitigação do risco de surgimento de obstáculos ou eventos que gerem aumento do valor de aquisição, ou qualquer tipo de interferência indevida, recorre-se à utilização de entidades veículo, o que permite a fruição do direito ao benefício fiscal — surgido com o pagamento do ágio – sem a exposição das empresas a consequências não tributárias adversas.
Em outras palavras, o aporte de capital para a aquisição de uma pessoa jurídica e a utilização do veículo para tal transação, ao menos quando ambas as entidades estão no Brasil, não se dá para criar o benefício, mas sim para permitir que a dedução fiscal, cuja possibilidade já se encontra em potência, ocorra da maneira mais adequada de um ponto de vista empresarial, administrativo, comercial, societário etc.
Já analisamos esta situação, academicamente, em algumas oportunidades. Em artigo publicado em 2008, ficou consignado que “a finalidade da interposição do veículo, portanto, não é tributária, mas sim empresarial/societária. Ela não faz nascer um benefício fiscal, apenas permitindo que o mesmo seja fruído da maneira que seja mais racional da perspectiva societária e empresarial”. [6] O tema voltou a ser tratado em texto mais recente, onde ficou consignado que:
“[…] em operações domésticas, a utilização de empresa veículo no âmbito da amortização fiscal de ágio pago na aquisição de participações societárias tem uma finalidade societária, e não fiscal. Ou seja, a interposição da empresa veículo não faz surgir o ágio, que nasceria de toda forma, apenas viabiliza que o mesmo seja utilizado da melhor maneira do ponto de vista societário. Dessa forma, a não ser que se demonstre que a interposição da empresa veículo serviu para alocar o ágio em outra operação que não aquela que o gerou, sua utilização não deveria ser apontada como fundamento para a glosa da despesa gerada pela amortização fiscal do ágio.” [7]
O raciocínio por trás dessas passagens é simples: a aquisição da participação societária por uma entidade interposta, com a posterior incorporação e utilização fiscal do ágio, não contraria a finalidade dos artigos 7º e 8º da Lei nº 9.532/1997. Pelo contrário, estão alinhadas com tal finalidade.
Nada obstante, ainda que não houvesse tal alinhamento e que fosse considerada atípica a utilização de um veículo de aquisição em uma situação cujas partes são residentes no Brasil, surgiria a seguinte questão: teria sido a estrutura implementada com fim exclusivamente tributário? Acreditamos que, a esta altura, deve estar claro que não. e o teste da subtração confirma esta conclusão.
Se em um conjunto de atos, um deles é apontado como “simulado” ou “abusivo” — como, por exemplo, a utilização de uma entidade veículo —, há que simplesmente se subtrair este ato jurídico da sequência daqueles que foram praticados pelas partes. Caso, mesmo com a supressão, o efeito tributário for o mesmo, é sinal de que ele não pode ser considerado um ato simulado praticado para a obtenção de vantagem tributária indevida.
É exatamente o que se passa quando um veículo de aquisição é utilizado em uma operação na qual vendedora e compradora são partes independentes residentes no Brasil e verifica-se efetivo pagamento de preço: com ou sem a utilização da entidade veículo o mesmo benefício fiscal surgiria, corroborando a interpretação que defendemos no sentido de que não haveria, neste caso, simulação nem planejamento fiscal “abusivo”.
Conclusão
Temos insistido que o debate sobre planejamento tributário ganhou tons abstratos nos últimos anos que têm nos afastado do estudo de aspectos concretos que nos permitam reduzir a complexidade das decisões que devem ser tomadas pelas empresas para implementar uma reorganização; pelas autoridades fiscais, para rever os atos praticados pelos contribuintes; e pelos julgadores, administrativos ou judiciais, para rever a legalidade dos autos de infração lavrados pela Receita Federal. [8] Neste texto, tentamos chamar a atenção para um critério que pode auxiliar nesse processo de decisão e contribuir para um ambiente de maior segurança jurídica.
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[1] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004.
[2] Exploramos muitas de tais distorções no livro: ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário na Obra de Marco Aurélio Greco. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[3] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 465.
[4] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 467.
[5] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 138-139.
[6] ARAGÃO, Paulo Cezar; ROCHA, Sergio André. Aproveitamento de Ágio Registrado em Empresa-Veículo: Exame a Partir das Decisões dos Conselhos de Contribuintes e das Regras Previstas na Lei nº 11.638/07. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 396.
[7] ROCHA, Sergio André. Caso Vivo: Transferência de Ágio por Meio de Utilização de Empresa-Veículo e Ausência de Comprovação de seu Fundamento. In: CASTRO, Leonardo Freitas de Moraes e (Coord.). Planejamento Tributário: Análise de Casos. São Paulo: MP Editora, 2014. v. 2. p. 86-87.
[8] Ver: ROCHA, Sergio André. Planejamento Tributário e Liberdade Não Simulada. 3 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2025.
Sergio André Rocha
é professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerista.