Alíquotas progressivas do ITCMD podem gerar nova guerra fiscal
Por Beatriz Olivon e Marcela Villar — De Brasília e São Paulo
A adoção de alíquotas progressivas para o ITCMD pelos Estados, determinada pela reforma tributária, pode gerar uma nova guerra fiscal no país. Com percentuais máximos variando entre 2% e 8% para doações e transmissões de herança, contribuintes passaram a consultar advogados sobre a possibilidade de alteração de domicílio para pagar um valor menor de imposto.
Hoje, a maioria do Estados já adota alíquotas progressivas. Levantamento do escritório Sigaud Advogados, a pedido do Valor, mostra que apenas seis unidades ainda estão com percentuais fixos: Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Roraima e São Paulo, onde há dois projetos de lei para alterar a legislação.
A progressividade do ITCMD tornou-se obrigatória com a Emenda Constitucional n° 132, de 2023. Antes, a progressão era opcional, mas já era adotada em alguns Estados, como no Rio de Janeiro. Em tese, o prazo para os governos estaduais adotarem as alíquotas progressivas se encerrou no fim do ano passado. “Os Estados que ainda não seguiram a determinação estão em desacordo com a Constituição Federal, mas não há penalidade”, diz o tributarista Daniel Bijos Faidiga, sócio da LBZ Advocacia.
Recentemente, segundo o levantamento do Sigaud Advogados, cinco Estados adotaram a progressividade: Alagoas, Piauí, Bahia, Amazonas e Amapá. Para as doações, a alíquota máxima adotada vai até 4%. Em Alagoas, é de 2%. Nas transmissões por morte, vai até 8%, com o menor percentual adotado pelo Amazonas, de 4% – que vale tanto para doação quanto para herança.
Sigaud considera provável que os demais Estados ainda se adaptem neste ano ou, no máximo, 2026. “Em São Paulo, que é o Estado que mais arrecada ITCMD no país, até nos surpreende ainda não ter ocorrido essa alteração”, afirma ele. Acrescenta que clientes de maior potencial aquisitivo buscam fixar residência em Estados com menores alíquotas, justamente para, em eventual sucessão, economizar no ITCMD.
Durante as discussões da reforma tributária, não foi pautada uma uniformização para impedir uma guerra fiscal de ITCMD, segundo André Horta, diretor do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz). “Os Estados entenderam que a diversidade de situações econômicas iria impossibilitar um tratamento padronizado para a questão”, afirma.
Fernando Colucci, sócio do Machado Meyer Advogados, destaca que o contexto da reforma tributária do consumo é de não ter mais incentivo fiscal. “Já vivemos uma guerra fiscal de ICMS e agora podemos ter uma nova ligada ao ITCMD”, diz ele, adicionando que essa situação pode gerar reflexo na tributação pelo Imposto (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que será no destino. “Se o Estado tem mais pessoas de alta renda residentes, não captura só mais ITCMD, mas também mais IBS e CBS. Essas pessoas tendem a consumir mais e atrair mais receita para aquele Estado.”
Em São Paulo, existem dois projetos para alterar a legislação sobre o ITCMD, que gerou em 2024 cerca de R$ 6 bilhões para os cofres paulistas – apenas 2,2% da arrecadação total do ano. Em fevereiro de 2024, o deputado estadual Antonio Donato (PT) propôs a progressividade com o limite de 8%, mas o projeto de lei (PL nº 4/2024) não andou muito na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Foi logo aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJ), mas desde março do ano passado está na Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento (CFOP).
Segundo o deputado, a proposta aguarda análise da nova CFOP que ainda não foi instalada, o que deve ocorrer até fim do mês. Para ele, o projeto “está completamente alinhado com o que está determinado na reforma tributária” e traz “justiça fiscal, penalizando os muito ricos”. Pelos cálculos do parlamentar, o PL aumentaria em R$ 1 bilhão a arrecadação do governo e mais de 90% dos contribuintes teriam uma redução ou pagariam o mesmo valor de ITCMD.
Já o outro projeto é do deputado estadual Lucas Bove (PL). Protocolado no dia 5 de maio, quer que a progressividade tenha como teto a alíquota de 4% para doações e heranças, a mesma aplicada hoje (PL nº 409/2025). Seria o menor teto progressivo, adotado também em outros Estados, o que pode provocar nova guerra fiscal.
Na justificativa, Bove diz que o percentual garante “a promoção da justiça fiscal e a preservação da competitividade tributária do Estado”. E que “contribui também para reduzir os riscos de evasão e elisão fiscal, evitando que alíquotas excessivas levem contribuintes a migrar para outras jurisdições ”.
“É aqui que a gente vê que eles querem realmente entrar em uma guerra fiscal”, afirma o advogado tributarista Daniel Bijos Faidiga. “O que vai acontecer, na prática, é que eles podem trazer gente de outros Estados.”
Mas esse não é o intuito, segundo o deputado Lucas Bove. “Não quero criar guerra fiscal, quero que outros Estados também reduzam o imposto”, diz. “Não posso me furtar a reduzir o tributo pensando nos outros Estados, defendo o Estado de São Paulo”, acrescenta. Antes de entrar com o PL, ele pediu à Fazenda paulista dados sobre o impacto arrecadatório. Embora o órgão não tenha respondido no prazo, Bove protocolou a proposta.
“Não estou preocupado com o impacto, porque o próprio governador [Tarcísio de Freitas], durante a campanha, afirmou que a arrecadação aumenta com redução de imposto. Então acredito que pode ter tanto uma migração patrimonial para São Paulo quanto uma redução de sonegação fiscal, porque incentiva as pessoas a entrarem na legalidade”, diz.
Segundo Faidiga, é comum contribuintes adotarem um Estado diferente como residência fiscal para pagar menos tributos. “Mas é preciso ter algum endereço ou ligação no Estado em que se quer ter o domicílio fiscal”, afirma.
Na visão dele, o governo necessariamente perderia arrecadação se o projeto do deputado Lucas Bove passar. A recomendação do advogado para os clientes é esperar para ver qual projeto será aprovado. Se passar o sugerido pela bancada do PT, os contribuintes ainda terão 90 dias para declarar o ITCMD com a alíquota atual, de 4%, por conta da anterioridade tributária – princípio constitucional que veda a cobrança imediata de um tributo majorado.
Quem doar patrimônio de até R$ 3,1 milhões, de acordo com o advogado, pagaria menos imposto com o PL da alíquota progressiva de 8% do que se paga hoje com a alíquota fixa de 4%. A partir dos R$ 3,2 milhões, a carga tributária seria maior.
Já na alíquota progressiva de 4%, “necessariamente o contribuinte pagaria menos”, de acordo com Faidiga. “Mas o importante é o contribuinte ficar atento para ver qual projeto será aprovado”, adiciona. A isenção para doações até R$ 92,5 mil se mantém nos dois projetos.
Mudança de domicílio
Segundo Fernando Colucci, o êxodo migratório entre Estados por conta de ITCMD já existe e tende a ficar mais evidente. “Já vi de tudo. Como no Amazonas a alíquota parte de 2% [agora é progressiva], já tive cliente que queria fingir uma mudança para Manaus para realizar as doações”, afirma. O contribuinte precisa se mudar de fato, acrescenta o advogado, ou seja, deslocar o centro vital de interesses: relações pessoais, escola dos filhos.
A tributarista Luiza Lacerda, sócia do BMA Advogados, destaca que existem pessoas que consideram esse movimento de se mudar e ter residência em outro lugar para fazer a sucessão, mas devem ficar atentas de que a simulação é ilegal. É um planejamento tributário considerado caro, afirma, e se o contribuinte não se mudar de fato, será considerado irregular.
“Acho um pouco exagerado imaginar que as pessoas vão se mudar para pagar menos um tributo que incide só sobre a morte delas”, diz Murillo Allevato, sócio do Bichara Advogados. Segundo o advogado, é difícil para os Estados fiscalizarem se o contribuinte se mudou mesmo ou não.
Apesar disso, Allevato conta que um cliente queria mudar a residência fiscal por causa da alíquota e “a orientação foi para ele se mudar de verdade, se essa era a intenção”. “O que não pode fazer é alugar um apartamento no outro Estado e nunca ir para lá. Nos preocupa os clientes adotarem uma prática que terá risco no futuro.”
Especialistas alertam que forjar o domicílio fiscal pode implicar em autuação, com a cobrança do valor do tributo devido no Estado de real residência, multa de 20% e juros. Também é possível que o Ministério Público abra investigação por sonegação fiscal.
Procurada pelo Valor, a Sefaz-SP não quis comentar o assunto.