Produtor rural e a tributação da renda: o PL 1.087/2025
Fábio Pallaretti Calcini
Tributação da renda e o PL 1.087/25
Spacca
O governo federal enviou ao Congresso o Projeto de Lei 1.087/2025, que “altera a legislação do imposto sobre a renda para instituir a redução do imposto devido nas bases de cálculo mensal e anual e a tributação mínima para as pessoas físicas que auferem altas rendas, e dá outras providências”.
Segundo justificativa para envio do PL, seria uma forma de reavaliar a tributação da renda, diante da progressividade tributária:
“Considerações sobre a progressividade tributária
Primeiramente, cumpre destacar aspectos relevantes apontados na Nota Técnica “Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma” publicada pelo Instituto de Política Econômica Aplicada – Ipea na Carta de Conjuntura Número 65 – Nota de Conjuntura 8 – 4º trimestre de 2024.
2.1. Na análise dos dados de renda da população brasileira, o estudo aponta para a concentração de renda pelo 1% (um por cento) e 0,1% (um décimo por cento) mais rico e a composição de renda deste extrato, onde há prevalência de rendimentos de capital. “A renda acumulada pelo 1% mais rico também é um bom indicador de concentração e, no caso brasileiro, atingiu aproximadamente 23,6% da renda disponível bruta das famílias em 2022, … Esse nível de concentração é não só um dos mais altos do mundo como também cresceu nos anos recentes… Já os milionários, aqueles que possuem uma renda superior a R$ 1 milhão anuais, representam cerca de 307 mil pessoas ou 0,2% da população adulta, conforme pode-se aferir pelas declarações de IRPF de 2022.”
Diante deste contexto, ao mesmo tempo que buscam, principalmente, estabelecer uma redução da tributação da renda para as pessoas físicas, a partir de 2026, chegando a zero para rendimentos mensais até R$ 5.000, alteram a exigência fiscal, com mais um aumento relevante da carga tributária, criando uma tributação mensal e anual daquilo que denominam “altas rendas”, em regra, no percentual de 10%.
A exposição de motivos, por si só, é a maior prova de que temos uma país miserável, onde, infelizmente, somente 0,2% da população adulta aufere rendimentos superior a R$ 1 milhão anuais.
O triste de tudo isso é que o maior responsável por esta miséria não é aquela pequena parcela da população adulta, mas, verdadeiramente, o governo brasileiro e nossos governantes, que, por completa ineficiência, gastos desnecessários, absurda corrupção e privilégios, impedem a todo instante que nosso país se desenvolva, incentivando o setor produtivo, a fim de que mais pessoas consigam auferir uma maior renda e gozem de uma vida digna.
Portanto, embora o discurso possa seduzir aquele que não tem conhecimento e discernimento (maioria a população brasileira), felizmente, não enganam a todos. Ademais, diante deste cenário, revela um verdadeiro escárnio com o povo brasileiro ver o Poder Público servir vinhos (e muita vezes estrangeiros e de valores altos), comidas sofisticadas servidas por “chef de cozinha”, promover shows, inclusive, milionários com artistas estrangeiros, hotéis caríssimos em viagens no Brasil e exterior… e vamos parar por aqui. Se a maior parcela da população brasileira não tem renda suficiente para pagar imposto, nossos governantes na gestão do dinheiro público precisam se adequar e viver esta realidade dentro das instituições do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário.
Não pretendemos dizer que o rendimento de até R$ 5.000 mensais deve ser tributado, mas que, sem crescimento econômico, a pequena parcela da população não conseguirá sustentar o Estado brasileiro.
Fato é que cada vez mais está mais claro que estamos vivenciando em nosso país um “arrastão tributário”!
Deixando de lado, porém, as mazelas de nosso país, o PL 1.087/25 possui inúmeros equívocos do ponto de vista técnico-jurídico, sobretudo, ao se analisar como contribuinte do imposto sobre a renda os produtores rurais.
Tributação da Renda e atividade rural [1]
Como temos sustentado de longa data, a tributação da cadeia do agronegócio merece um tratamento diferenciado e favorecido, na medida em que sua realidade é diversa de outros segmentos econômicos, tendo um duplo risco. Isto porque, como qualquer outra atividade possui riscos relacionados ao empreendedorismo, todavia, por suas peculiaridades, temos um risco adicional (agrariedade) decorrente de aspectos como sazonalidade, dependência de fatores climáticos, fatores biológicos, perecibilidade dos produtos, baixo valor agregado, preços sujeitos ao mercado internacional, câmbio, entre outros. A mais disso, sendo uma atividade que garante a segurança alimentar, tida como um direito fundamental do ser humano e um dever estatal (artigos 1º, 5º, 6º, 23 e 187, CF), não há dúvida da legitimidade de uma tributação diferenciada e favorecida ao setor, cabendo uma carga tributária mitigada. [2]
Daí porque, a tributação da renda da atividade rural, apesar de se submeter aos princípios e regras gerais, possui uma Lei específica para se atribuir um tratamento adequado.
Neste sentido, temos a Lei n. 8.023/90, que estabelece no artigo 1º, os “resultados provenientes da atividade rural estarão sujeitos ao Imposto de Renda de conformidade com o disposto nesta lei”.
Após prescrever o que se considera atividade rural (artigo 2º), o legislador esclarece que o resultado a ser tributado pelo imposto sobre a renda será obtido pelas seguintes formas (artigo 3º): (i) – simplificada, mediante prova documental, dispensada escrituração, quando a receita bruta total auferida no ano-base não ultrapassar setenta mil BTNs; (ii) – escritural, mediante escrituração rudimentar, quando a receita bruta total do ano-base for superior a setenta mil BTNs e igual ou inferior a setecentos mil BTNs; (iii) – contábil, mediante escrituração regular em livros devidamente registrados, até o encerramento do ano-base, em órgãos da Secretaria da Receita Federal, quando a receita bruta total no ano-base for superior a setecentos mil BTNs.
Cabe destacar a forma pela apuração contábil, por meio do livro caixa, de tal sorte que, nos termos do artigo 4º, “Considera-se resultado da atividade rural a diferença entre os valores das receitas recebidas e das despesas pagas no ano-base”.
Este dispositivo é muito relevante, pois o legislador reconhece que a tributação da renda na atividade rural depende do “resultado positivo” entre as receitas recebidas e as despesas pagas. Em respeito à realidade da atividade exercida, mas, também à noção jurídica de renda líquida (artigo 153, III, CF), capacidade contributiva (artigo 145, § 1º, CF) e não confisco (artigo 150, IV, CF), o legislador, expressamente, reconhece que inexiste possibilidade de tributação sem que exista este resultado positivo.
Isto porque, a atividade rural envolve, além do duplo risco já citado, um antecipado e grande investimento para se auferir uma futura e variável receita. Com isso, qualquer tributação que somente tenha por medida a receita auferida, inegavelmente, incorrerá em grave equívoco.
Tanto é verdade que, este mesmo legislador, além de reconhecer, como regra, que somente este “resultado positivo” pode ser tributado pela renda, autoriza o abatimento, sem limites, do prejuízo da atividade de períodos anteriores (artigo 14) [3].
Além da tributação sobre o resultado positivo, mediante encontro de receitas e despesas, a partir do livro caixa, o legislador autoriza, por opção do produtor rural, a tributação da renda por presunção, de tal sorte que a base de cálculo seria o percentual de 20%, desprezando as despesas (artigo 5º). [4] Vale lembrar que esta presunção, além de ser o limite máximo de tributação para a atividade rural, não seria obrigatório, mas, optativo.
PL 1.087 e equívocos para atividade rural
Após traçarmos de forma breve alguns apontamentos a respeito da tributação da renda da atividade rural, sem pretensão de trazer todas as vicissitudes existentes, é fácil notar que o PL 1.087/25, dentro os parâmetros estabelecidos, é complemente inadequado e equivocado para o setor, sendo, inclusive, inconstitucional.
Neste texto, ficaremos restritos ao “Capítulo III-A Da Tributação Anual de Altas Rendas”, o qual estabelece no artigoo 16-A que:
Art. 16-A. A partir do exercício de 2027, ano-calendário de 2026, a pessoa física cuja soma de todos os rendimentos recebidos no ano calendário seja superior a R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais) fica sujeita ao IRPFM, nos termos do disposto neste artigo.”
Com isso, excluindo alguns rendimentos (artigo 16-A, § 1º), cria um novo tributo, denominado de “imposto de renda das pessoas físicas mínimo” (IRPFM) à alíquota de 10% sobre todos os rendimentos iguais ou superiores a R$ 1,2 milhão [5], sem qualquer tipo de dedução, excluindo-se somente alguns rendimentos (artigo 16-A, § 3º):
“§ 2º A alíquota do IRPFM será fixada com base nos rendimentos apurados nos termos do disposto no § 1º, observado o seguinte:
I – para rendimentos iguais ou superiores a R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais), a alíquota será de 10% (dez por cento); e
II – para rendimentos superiores a R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais) e inferiores a R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais), a alíquota crescerá linearmente de zero a 10% (dez por cento), conforme a seguinte fórmula: Alíquota % = (REND/60000) – 10, em que: REND = rendimentos apurados na forma prevista no § 1º.”
Fácil notar que este IRPFM tem como critério material único e exclusivo o que descreve como “todos os rendimentos recebidos”, aplicando-se a alíquota de 10%, com raras exclusões, como, por exemplo, os valores recebidos em contas de depósito de poupança.
Sendo assim, ignora-se, por completo, a efetiva renda auferida, sobretudo, à luz da capacidade contributiva e do não confisco, especialmente, quando tratamos da atividade rural.
Isto porque, este novo tributo, simplesmente, exige o percentual de 10% sobre a receita, ignorando, por completo, que para obtê-la, no exercício da atividade rural, houve, forçosamente, um alto investimento (despesas), podendo, até mesmo, em certo ano calendário, este ser superior ao ingressos no caixa, resultando em prejuízo.
Todavia, o legislador ignorando totalmente este aspecto, exigirá o percentual de 10% sobre tais ingressos (tidos como rendimentos recebidos e tributáveis).
E convenhamos, não precisa ser um grande produtor para se auferir o montante anual de R$ 1,2 milhãoi. E mais grave, ainda, é o fato de que poderá este produtor ter em anos calendários anteriores prejuízo, o que também é desprezado por este novo tributo.
E, mesmo o produtor rural que, de forma facultativa, opte por reconhecer a presunção de 20% como base de cálculo, para fins de tributação da renda, incluir um adicional de 10%, supera em muito a margem de lucro da atividade, onerando-a de forma confiscatória e indevida, dada a imposição constitucional de tratamento diferenciado e favorecido exigido pelo texto constitucional ao setor.
Considerações finais
Embora não se negue a necessidade de ajuste na tributação da renda da população menos favorecida, uma vez que a renda auferida por estes nem mesmo é suficiente para garantir o mínimo existencial com dignidade, a exigência de um novo imposto — IRPFM — sobre o total dos rendimentos (receitas) auferidas pelo produtor rural, além de completamente equivocado, revela uma medida claramente inconstitucional.
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[1] Sobre o tema: LOUBET, Leonardo. Tributação Federal no Agronegócio. 2. Ed. São Paulo: Noeses, 2022. HALAH, Lucas Issa. Tributação da renda no agronegócio. São Paulo: Quartier Latin, 2018.
[2] Sobre o tema: CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação diferenciada no agronegócio não é privilégio. CONJUR. 20/10/2017.; CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023.
[3] “Art. 14. O prejuízo apurado pela pessoa física e pela pessoa jurídica poderá ser compensado com o resultado positivo obtido nos anos-base posteriores. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se, inclusive, ao saldo de prejuízos anteriores, constante da declaração de rendimentos relativa ao ano-base de 1989.”
[4] “Art. 5º A opção do contribuinte, pessoa física, na composição da base de cálculo, o resultado da atividade rural, quando positivo, limitar-se-á a vinte por cento da receita bruta no ano-base. Parágrafo único. A falta de escrituração prevista nos incisos II e III do art. 3º implicará o arbitramento do resultado à razão de vinte por cento da receita bruta no ano-base.”
[5] Os rendimentos entre R$ 600.000,00 até R$ 1.199.999,99, apesar da alíquota de 10%, terão uma complexa fórmula de ajustes para se obter a alíquota efetiva (art. 16-A, § 2º).
Fábio Pallaretti Calcini
é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet, sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.