Competência julgadora do Comitê Gestor do IBS: impactos no processo administrativo federal
Diego Diniz Ribeiro
Em recentes artigos publicados aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico, tive a oportunidade de fazer uma análise mais ampla a respeito de possíveis reflexos da reforma tributária no contencioso (administrativo e judicial) tributário [1], bem como um exame mais centrado no específico âmbito do contencioso administrativo [2], com foco no Comitê Gestor do IBS (CG-IBS) e seus órgãos de harmonização a partir do arranjo definido pela Lei Complementar nº 214/2025.
Como visto nesses trabalhos anteriores, o papel desenhado para o CG-IBS pela Lei Complementar nº 214/2025 é de um órgão de coordenação e harmonização das normas e interpretações a serem atribuídas para as novas exações, de modo a promover uma unificação interpretativa desses tributos [3], ou seja, uma uniformização no plano abstrato.
Existem, entretanto, outras propostas para o CG-IBS, mais precisamente aquela que está externada no Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 (PLP n.º 108/2024) [4] e que pretende estender a tal Comitê também uma função julgadora, nos termos do artigo 2º, inciso II do PLP nº 108/2024 [5]. É sobre tal projeto que nos debruçaremos aqui, com especial enfoque nos seus impactos para o processo administrativo tributário federal.
Uma breve síntese das propostas do PLP nº 108/2024
Segundo a proposta legislativa em análise, o CG-IBS terá a natureza jurídica de uma entidade pública sob regime especial, dotada de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira (artigo 1º do PLP) e, dentre inúmeras funções, será responsável pelo julgamento do processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do IBS (artigo 65 do PLP).
Ainda segundo o PLP, o procedimento a tramitar perante o CG-IBS teria disposições próprias, com prazos [6], recursos próprios [7] e forma específica quanto a composição das suas turmas julgadoras [8], além de um aspecto peculiar para resolver seus julgamentos em caso de empate [9], disposições essas distintas daquelas previstas no Decreto nº 70.235/72.
A proposta trazida pelo PLP tem um lado bastante positivo: o de convergir o contencioso administrativo tributário do IBS em torno de um único Tribunal Administrativo e sob a égide de um mesmo procedimento. Considerando que a competência do IBS é partilhada entre todos os estados-membros, municípios e o DF, essa unificação é bastante salutar e gera segurança jurídica, além de estar em sintonia com o valor simplicidade, tão enaltecido com a reforma tributária.
Tal solução, por sua vez, não é a ideal, na medida em que está restrita ao julgamento administrativo do IBS, não comtemplando a CBS, cuja competência julgadora continuará sob a responsabilidade do Carf e sob o rito procedimental do Decreto nº 70.235/72 ou de outra disposição legislativa que venha substituí-lo [10]. É exatamente aí que começam os problemas que poderão surgir na hipótese de aprovação do PLP n. 108/2024 no estado em se encontra.
Diferentes caminhos procedimentais para tributos-gêmeos
Como já amplamente divulgado nos mais diferentes fóruns, o IVA-dual aprovado com a reforma tributária deu origem a dois tributos (CBS e IBS) que, embora subordinados a diferentes entes competentes, são considerados tributos-gêmeos, já que apresentam não só a mesma materialidade, mas também a mesma base de cálculo, hipóteses de não incidência e de imunidade, regras de não-cumulatividade e creditamento, dentre outras disposições comuns, o que se deve ao esforço dos reformistas em simplificar o sistema tributário nacional em relação a tributação sobre o consumo.
Spacca
Seria natural e altamente desejável que essa uniformização de índole material também se repetisse no âmbito processual, de modo que esses dois tributos se sujeitassem a único contencioso (administrativo e judicial) [11], pois o esforço em unificar a tributação sobre o consumo no plano normativo pode ser em vão se essa uniformização também não se der no âmbito da sua realização prática.
Acontece que, como visto anteriormente, a proposta de uniformização do contencioso administrativo tributário se restringe ao IBS, sem que, todavia, haja uma extensão dessa integração com a CBS, o que pode gerar situações inusitadas.
Imaginemos que a União, ao fiscalizar um dado contribuinte, promova a sua autuação para a cobrança de CBS, acrescida de multa e juros, oportunidade em que também responsabiliza o sócio administrador da empresa e outras duas pessoas jurídicas pretensamente integrantes de um grupo econômico. Lavrado o Auto de Infração, essas informações são compartilhadas pela União no ambiente eletrônico a ser coordenado pelo CG-IBS, nos termos do artigo 325 da Lei Complementar nº 215/2025 [12]. De posse de tais dados, um Estado-membro e um município, para fins de cobrança das suas respectivas parcelas do IBS, também veiculam suas respectivas autuações contra tais sujeitos passivos, contemplando o mesmo período de apuração indicado na exigência federal.
Uma vez notificado a respeito de tais exigências em diferentes planos, os autuados apresentam suas respectivas impugnações administrativas para os respectivos Tribunais Administrativos, impugnações essas que – diga-se de passagem – sujeitar-se-ão a diferentes prazos e modos de contagem, nos termos do atual PLP nº 108/2024.
Processadas tais defesas, no âmbito do Carf a exigência fiscal é parcialmente provida, por unanimidade de votos, para reconhecer que parcela da base de cálculo eleita pela fiscalização federal não se sujeita à CBS. Em relação ao valor remanescente, a exigência é mantida por voto de qualidade. Por fim, a responsabilidade do sócio e das PJs do eventual grupo econômico é afastada por unanimidade de votos. Já no tribunal do CG-IBS, a autuação é mantida integralmente, tanto para a obrigação tributária, como para as citadas responsabilizações.
Na hipótese acima narrada, no que diz respeito à cobrança da CBS, (1) os responsáveis seriam excluídos do polo passivo da exigência e o contribuinte, por sua vez, teria em seu favor (2) a redução do valor exigido a título de tributo, por se reconhecer que parcela da base de cálculo eleita pelo ente autuante não se sujeita à CBS, bem como (3) contaria com a faculdade de pagar o valor remanescente da exigência sem multa e sem juros, podendo parcelar esse montante em até 12 vezes ou pagá-lo mediante a utilização de prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa, nos termos do artigo 25-A do Decreto nº 70.235/72. Por sua vez, os débitos de IBS, acrescidos de multa e juros, seriam integralmente devidos pelo contribuinte e pelos demais responsabilizados, inclusive com a afirmação de que a totalidade da base de cálculo indicada na autuação está sujeita à incidência do IBS.
Tal exemplo ilustra, de forma bastante didática, os inúmeros problemas oriundos de uma indevida cisão procedimental para processos administrativos frutos de lançamentos de ofício de IBS e CBS.
Proposta de solução
Uma possível solução que se afigura é unificar as regras procedimentais previstas no PLP nº 108/2025 com a regras atualmente contidas no Decreto nº 70.235/72, o que pode se dar com a eventual aprovação do PL nº 2.483/2022, que pretende reformar o contencioso administrativo federal. Tal proposta, todavia, não é suficiente, pois ainda há o risco de se deparar com um mesmo sujeito passivo se subordinando a decisões materialmente díspares para os mesmos fatos geradores do IBS e da CBS, exatamente com imaginado no exemplo alhures delineado.
A solução, portanto, para resolver o problema apontado é óbvia e só pode ser uma: não só unificar as normas procedimentais do contencioso administrativo tributário em torno de uma mesma legislação de caráter nacional, mas também submeter o contencioso administrativo do IBS e da CBS a um único Tribunal Administrativo.
Alguns críticos a tal proposta argumentarão que continuará existindo insegurança com tal modelo, uma vez que os mesmos fatos econômicos poderão se sujeitar primeiramente a uma autuação no âmbito da CBS e, só mais tardiamente, a uma exigência referente ao IBS ou vice-versa, o que daria margem a diferentes processos administrativos para os mesmos fatos econômicos de um mesmo contribuinte, o que, eventualmente, poderia resultar em diferentes decisões dos diversos órgãos julgadores, ainda que de um mesmo Tribunal Administrativo.
Tal ponderação, todavia, não nos sensibiliza e pode ser facilmente resolvida. Se, como no exemplo acima, o processamento da exigência da CBS está temporalmente mais adiantado do que do IBS e não for mais possível a reunião de ambos os processos para julgamento único [13], a solução é prever uma regra que determine a suspensão do processo tardio, para que a decisão definitiva do primeiro caso julgado seja aplicada ao segundo, de modo a tutelar uma uniformidade interpretativa de índole material, i.e., no âmbito de realização prática do direito.
Por sua vez, se a decisão do primeiro processo já transitou em julgado administrativamente quando da lavratura da autuação de IBS, instaurada a instância administrativa para o imposto agora em cobrança, só caberia ao órgão julgador, desde a primeira instância administrativa, invocar a ratio do precedente quanto à CBS para a resolução do caso de IBS. Só haveria a possibilidade de um julgamento diferente na hipótese de a nova impugnação apresentar fundamentos distintos daqueles tratados pelo hipotético precedente de CBS (v.g., uma discussão quanto a decadência parcial da segunda exigência).
Em se tratando de exigências de CBS e de IBS de um mesmo contribuinte, lavradas em diferentes autos de infração e em diferentes momentos temporais, o que se propõe, em suma, é que haja uma vinculação do segundo órgão julgador do Tribunal Administrativo do IBS/CBS aos critérios jurídicos adotados pelo seu primeiro órgão judicante [14]. Tributos-gêmeos para a cobrança de um mesmo contribuinte não podem apresentar decisões divergentes, sob pena de uma brutal insegurança jurídica, além de uma notória complexidade para um modelo que se sujeita ao princípio constitucional da simplicidade.
Por sua vez, é possível que continuem existindo divergências entre os diferentes órgãos desse Tribunal Administrativo único caso eles venham a julgar uma mesma questão jurídica de contribuintes distintos. Nesse caso, a solução para uniformização é a existência de um recurso e de um órgão julgador que tenha por função uniformizar essa interpretação, tal como ocorre atualmente no âmbito do Carf, por intermédio do recurso especial e da função exercida pela sua Câmara Superior de Recursos Fiscais.
A título de arremate é importante ressaltar que a simplicidade almejada com a reforma tributária, para ser efetiva, depende não só da preocupação com esse valor no plano geral e abstrato da CBS e do IBS, mas também no plano de realização prática do direito, o que perpassa não só por uma unidade procedimental, mas exige, em especial, uma uniformidade estrutural das instâncias julgadoras no âmbito administrativo.
[1] Artigo esse escrito em coautoria com o querido amigo Jorge Marquezi: A reforma tributária e o contencioso fiscal: análise crítica.
[2] Qual será o papel do Carf após a implementação da reforma?
[3] Tratando do tema de forma crítica, destaca-se a fala do Professor Danilo Monteiro de Castro: GT12 Contencioso.
[4] O qual, por meio de debates públicos, vem sendo minuciosamente estudado pelo grupo de estudos do Núcleo de Estudos Fiscais da Função Getúlio Vargas, de São Paulo (NEF/FGV-SP), sob a coordenação dos Professores Eduardo Salusse e Talita Pimenta Felix. Nesse sentido: https://youtube.com/@projetotributacaonoseculox4638?si=RjEKA30K3cmHS_c1
[5] Art. 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, de forma integrada, exclusivamente por meio do CG-IBS, as seguintes competências administrativas relativas ao IBS:
(….)
III – decidir o contencioso administrativo.
(…).
[6] Os prazos serão contados em dias úteis e haverá suspensão entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro, exatamente como já prevê o Código de Processo Civil para os processos judiciais.
[7] Além dos recursos de ofício e voluntário, já conhecidos no âmbito do processo administrativo federal, o PLP também prevê o recurso de uniformização (algo similar ao recurso especial) e o pedido de retificação (que faria o papel dos embargos de declaração).
[8] A 1ª instância julgadora será formada por 4 julgadores, sendo 2 deles oriundos dos quadros das Administrações Tributárias do Estado em favor do qual o lançamento tenha sido realizado e outros 2 egressos da Administração Tributária de Municípios integrantes do Estado autuante. Já na 2ª instância julgadora, nas turmas ordinárias, se somará a sobredita composição mais 4 julgadores representantes dos contribuintes e um presidente, que sempre será um representante fiscal e que só terá competência julgadora para promover o voto-desempate, se necessário. A instância uniformizadora, por sua vez, será composta por 4 servidores das Administrações Tributárias dos Estados e do DF e 4 servidores das Administrações Tributárias dos Municípios e do DF, além de um presidente, que só votará em caso de empate.
[9] Em caso de empate o voto de minerva caberá ao Presidente da Turma, o qual só participará da deliberação no julgamento nessa particular circunstância. Tal presidência, segundo a proposta de lei, será exercida de forma alternada entre os representantes dos Estados e dos seus respectivos Municípios.
[10] Existem alguns projetos de Lei com o escopo de repaginar o contencioso tributário, com destaques para o PL 2.481/2022, o PLP 125/2022, o PL 2.483/2022 e o PL 2.488/2022.
[11] A uniformização do contencioso judicial do IBS e da CBS não será abordado no presente texto, o qual propositadamente trata apenas do contencioso administrativo.
[12] Art. 325. A RFB e as administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I – poderão utilizar em seus respectivos lançamentos as fundamentações e provas decorrentes do processo administrativo de lançamento de ofício efetuado por outro ente federativo;
II – compartilharão, em um mesmo ambiente, os registros do início e do resultado das fiscalizações da CBS e do IBS.
[13] Em regra, a reunião para julgamento de dois ou mais processos em razão da conexão pode ocorrer até o advento de decisão que venha a resolver o primeiro processo distribuído. É o que prevê, v.g., o art. 55, § 1º do CPC e o art. 47, § 2º do Ricarf
[14] Defendo algo similar no atual modelo do contencioso administrativo tributário, i.e., pré-reforma, destacamos: DELIGNE, Maysa de Sá Pittondo. Efeitos das decisões no processo administrativo tributário. São Paulo: Fórum, 2021.
Diego Diniz Ribeiro
é advogado tributarista e aduanerista, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutor em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.