Tema 1.237/STJ: o inusitado salto quântico parcial tributário ou de quando o acessório não segue o principal

Marcos Aurélio Pereira Valadão, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, Phillip Handow Krauspenhar

Pode-se imaginar uma estrutura dinâmica ao redor da qual orbitam partículas (ou conceitos), com órbitas principais que determinam certas propriedades e atraem certas incidências, como as tributárias. Essas órbitas são delimitadas por diversos conceitos inerentes ou “estados de energia”, criando uma analogia com uma estrutura atômica. Em alguns casos, porém, ocorre um deslocamento para estado de energia diferente — como no caso de um elétron — assumindo, assim, novas características em resposta a fatores externos, como inputs energéticos. Esse fenômeno se denomina, em geral, de salto quântico. Mas veja-se para que isto ocorra é necessário que haja um fator de intervenção na natureza da partícula que “saltou”, passando ter outro papel em níveis diferentes da estrutura.

No contexto da incidência tributária, a natureza do fato gerador é determinada pelo aspecto material da incidência e do seu objeto, e é condicionado por características subjetivas e objetivas que não permitem, de regra, sua recaracterização, a menos que haja uma interveniência externa. Um exemplo é a indedutibilidade de um ativo classificado como fringe benefit, (o veículo de uso pessoal do diretor, por exemplo), que, por alguma circunstância superveniente, passa a ser um ativo operacional, e daí ser dedutível, e passa ser dedutível como um todo, ainda que tenha acessórios de luxo sem função operacional . Da mesma forma, uma receita que não é tributável (a qual é composta do principal e acessórios, diga-se, juros), para que seja considerada tributável, há que ser reclassificada, mas como um todo e não apenas parcialmente.

Porém, e isto é incontornável, a natureza da coisa não muda, assim como não muda o liame do acessório da coisa à parte principal da coisa, no sentido de que o acessório sempre segue o principal, aplicado desde o direito romano (accessio cedit principali).

Mas qual a razão dessa digressão analógica entre esses dois mundos (o da física e o do direito)? Faz parte da demonstração do equívoco de um recente posicionamento do STJ ao julgar cinco recursos especiais, no que diz respeito especificamente à tributação pelo PIS/Cofins dos juros incidentes sobre a restituição de tributos. Esses julgados tratam também de outros aspectos, os quais não são objeto deste artigo, que se refere unicamente e exclusivamente à tributação pelo PIS/Cofins dos juros incidentes sobre a restituição de tributos.

Os valores da restituição representam os elétrons, enquanto os juros Selic funcionam como os inputs energéticos, que promoveriam o salto quântico desses elétrons — aumentando a sua energia e, portanto, seu valor, de forma analógica. Esse acréscimo é intrínseco ao próprio valor da restituição, pois possui a mesma natureza, e, do ponto de vista fenomenológico, é a mesma coisa, i.e., ou tornou-se a mesma coisa. Mas o STJ ao decidir que se tributa os juros, mas não se tributa o principal promoveu um salto quântico inusitado, pois é como se, com o acréscimo decorrente da anergia (ou seja, dos juros), o elétron se transmutasse em uma nova partícula, um tipo “elétron-pi”. Nesse novo estado, mesmo circulando em uma órbita não tributável, uma parte desse “elétron” — agora denominada “elétron-ômega”, torna-se tributável, porém transitando na mesma órbita onde transitam as partículas (fatos geradores) intributáveis.

Pois bem, vamos aos casos. Em 20 de junho de 2024 a 1ª seção do STJ exarou uma decisão em matéria tributária, consubstanciada nos Recursos Especiais nº 2.065.817, 2.068.697, 2.075.276, 2.109.512 e 2.116.065, na sistemática dos recursos repetitivos, Tema 1.237 [1], no sentido de que incidem o PIS e a Cofins sobre a Selic (juros) aplicada em recuperações monetárias dos contribuintes. Essa interpretação apresenta três linhas principais de resultado, conforme expresso nas ementas dos recursos especiais mencionados, que são idênticas entre si. Assim, segundo o entendimento do STJ, o PIS/Cofins incide sobre:

1 – Juros remuneratórios: categoria que abrange os juros Selic incidentes na devolução dos depósitos judiciais.

2 – Juros moratórios: recebidos em face de repetição de indébito tributário — categoria que abrange os juros Selic incidentes na repetição de indébito tributário.

3 – Juros moratórios: auferidos nas demais hipóteses de inadimplemento — categoria que abrange os juros incidentes sobre os pagamentos efetuados por clientes em atraso.

Ainda que a primeira situação mereça comentários mais específicos em face da natureza do depósito judicial [2], bem como a terceira situação, a segunda, com o devido respeito à decisão do STJ, apresenta diversos problemas em sua fundamentação que, conforme veremos adiante, deveria ter tido sorte diversa no julgamento, para o bem do direito brasileiro. Veja-se o que diz o item 5 da ementa dos julgados mencionados ao tratar deste tema:

REsps 2.065.817, 2.068.697, 2.075.276, 2.109.512 e 2.116.065

“5. A condição dos juros de mora na repetição do indébito tributário como verba indenizatória a título de dano emergente – Temas nsº 808 e 962 da Repercussão Geral do STF, RE nº 855.091 e RE nº 1.063.187 e Tema nº 505/STJ, Juízo de Retratação no REsp. n. 1.138.695 / SC – pode lhes retirar a natureza jurídica de renda ou lucro, relevante para o IRPJ e para a CSLL, mas não lhes retira a natureza de Receita Bruta a qual é determinante para o deslinde da causa para as contribuições ao PIS/PASEP e Cofins.”

Observe-se que em relação ao Tema 962 o trânsito em julgado da decisão do STF (RE 1.063.187/SC) foi em 10/06/2022. Porém quando julgado em 27/09/2021, foi fixada a seguinte tese para o Tema nº 962 de repercussão geral: “É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário”. No juízo de retratação Tema Repetitivo 505 o STJ assumiu/reconheceu a posição do STF, exonerando os juros Selic sobres as restituições do IRPJE/CSLL, mas erroneamente reafirma se tratar de “lucros cessantes” [3]. Veja-se que a própria ementa RE 1.063.187/SC do destaca que os juros Selic se configuram como danos emergentes (e não como lucros cessantes), confira-se:

“RE 1.063.187/SC

3. Os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão da repetição de indébito de tributos visam, precipuamente, a recompor efetivas perdas (danos emergentes). A demora na restituição do indébito tributário faz com que o credor busque meios alternativos ou mesmo heterodoxos para atender suas necessidades, os quais atraem juros, multas, outros passivos, outras despesas ou mesmo preços mais elevados.” (Destacou-se)

‘Salto quântico’ do entendimento
Observe-se também que todas as decisões citadas como paradigmas do STJ para o item 2 da Ementa (Juros moratórios recebidos em face de repetição de indébito tributário — categoria que abrange os juros Selic incidentes nas restituições) foram exaradas após a decisão do STF no Tema 962, de forma que aparentemente teriam cotejado a decisão do STF e feito o competente distinguishing. Mas, pasme-se, não foi o que ocorreu. Isto porque todas as decisões do STJ mencionadas como paradigma citam as decisões do próprio STJ, anteriores à decisão modificativa do STF (Tema 962) [4] e, pronto, temos uma espécie de “salto quântico” do entendimento que, efetivamente, nunca, em sede de construção de precedentes, enfrentou a decisão do STF.

Assim, desse salto quântico resulta que a decisão em sede de repetitivo é baseado em decisões do STJ pós-decisão do STF (mas que a afrontam, como demonstrado), e que são fundamentadas em decisões anteriores à decisão do STJ (com as quais se alinhavam então). Uma verdadeira prestidigitação jurisprudencial, como um passe de mágica (“typical sleight of hand”). Observe-se que todos os precedentes citados do STJ são decisões tomadas em sede de agravo interno que tiveram efeitos infringentes, com o objetivo de uniformizar o entendimento entre as turmas do STJ, mas sempre com base em decisões anteriores do STJ (i.e., que não consideraram o Tema 962, porque lhes é superveniente).

Spacca
Dito de outra forma, o STF, ao decidir o Tema 962 da Repercussão Geral, consolidou o entendimento de que os juros de mora incidentes sobre a repetição de indébito tributário possuem natureza de dano emergente (natureza indenizatória), afastando sua qualificação como renda ou lucro para fins de incidência do IRPJ e da CSLL. Por outro lado, o STJ, ao julgar os recursos no Tema 1.237, considerou que esses mesmos juros de mora possuem natureza de lucro cessante, reconhecendo-os como receita bruta, sujeita à incidência das contribuições ao PIS/Pasep e à Cofins, conforme disposto nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003. Essa divergência conceitual evidencia uma aplicação diferenciada dos institutos jurídicos tributários entre os tribunais, especialmente no que concerne ao enquadramento jurídico dos juros e à definição da base de cálculo dos tributos em questão, demonstrando o impacto das distintas concepções de “renda” e “receita” no tratamento tributário das mesmas verbas.

O conceito de receita é, por natureza, mais amplo do que o de renda, uma vez que a renda corresponde, grosso modo, à receita subtraída das despesas. Contudo, na legislação, o conceito de receitas que geram renda tributável é mais amplo do que o das receitas sujeitas à tributação pelo PIS e pela Cofins, a teor do § 3º do artigo 1º das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 (regime não cumulativo dessas contribuições) , e mais ainda no que se contém nos artigos 2º e 3º da Lei nº 9.718/1998. O julgado, no entanto, tratou a questão de maneira contrária, ignorando que tal distinção não se baseia em um rationale, mas em uma disposição legal expressa.

A base de cálculo do PIS e da Cofins é composta pelas receitas consideradas rendas tributáveis, correspondendo ao acréscimo patrimonial positivo após a dedução das despesas, como uma série de exclusões, que são computadas na base do IRPJ/CSLLL A legislação prevê a exclusão de determinadas receitas da tributação, seja por razões de política tributária (no caso do regime cumulativo), seja para manter coerência com as despesas que geram créditos no regime não cumulativo. Como já mencionado, de forma geral, a abrangência das receitas que compõem a base de cálculo do IRPJ/CSLL é mais ampla do que a do PIS e da Cofins.

A decisão que do STJ no Tema 1.237 adotou a interpretação de que, na situação em julgamento, o acessório não segue o principal. Porém, essa premissa é altamente questionável e conduz a uma análise tautológica. O fundamento para essa crítica também encontra respaldo no inciso VIII do § 3º do artigo 1º da Lei nº 10.637/2002 e inciso VII do § 3º do artigo 1º da Lei nº 10.833/2003, que expressamente exclui da base de cálculo do PIS e da Cofins as receitas financeiras decorrentes do ajuste a valor presente, quando relacionadas a receitas já excluídas da base de cálculo das contribuições.

Esse dispositivo legal exemplifica de forma clara a aplicação do princípio de que o acessório segue o principal no campo tributário. Se a receita principal está excluída da tributação, quaisquer acréscimos ou ajustes a ela relacionados, como no caso das receitas financeiras decorrentes do ajuste a valor presente, também devem ser excluídos. No contexto da decisão do STJ, no entanto, ao admitir a tributação dos juros Selic (acessórios) incidentes sobre a repetição de indébito tributário (principal), contrariou-se esse racional lógico e legalmente previsto.

A justificativa do STJ, de que os juros de mora possuem natureza autônoma para fins de incidência do PIS e da Cofins, carece de um fundamento jurídico sólido e parece ignorar o fato de que tais juros decorrem diretamente da restituição do tributo pago indevidamente, que, por sua vez, não é receita tributável. Separar a tributação do acessório do principal, ao arrepio da legislação que expressamente regula casos análogos, equivale a criar um critério novo, dissociado do próprio texto normativo, e com resultado hermeneuticamente assistemático.

Essa posição não apenas contraria o princípio da unidade lógica do sistema tributário, mas também resulta em uma argumentação tautológica: considera-se que os juros de mora são receita tributável pelo simples fato de serem considerados como tal, sem enfrentar adequadamente o argumento de que sua natureza acessória deveria vincular-se à do principal. O “salto quântico” interpretativo promovido pelo STJ, portanto, ignora o racional normativo que estabelece que, se o principal não compõe a base de cálculo do tributo, o acessório tampouco deve integrá-la.

Essa crítica reforça que o entendimento do STJ, além de estar em desacordo com o disposto no inciso VIII do § 3º da legislação mencionada, desconsidera a coerência sistêmica necessária na aplicação das normas tributárias, criando uma distinção artificial e contrária à lógica jurídico-tributária.

Este tema, aparentemente assentado no STJ, posto que julgado como recurso repetitivo, merece rediscussão, ainda que no STF, visto tem como consequência a violação da capacidade contributiva (tributação de recomposição de danos emergentes), e mesmo efeito confiscatório, pois tributa o intributável (o efeito é de confisco) — e esses aspectos afetam o tema ao STF — que poderá alinhá-lo- à sua jurisprudência, neste ponto contrariada pelo STJ (embora os recursos especiais em comento ainda estejam pendentes de EDs quando este artigo foi concluído).

[1] A tese firmada foi: “ Os valores de juros, calculados pela taxa SELIC ou outros índices, recebidos em face de repetição de indébito tributário, na devolução de depósitos judiciais ou nos pagamentos efetuados decorrentes de obrigações contratuais em atraso, por se caracterizarem como Receita Bruta Operacional, estão na base de cálculo das contribuições ao PIS/PASEP e COFINS cumulativas e, por integrarem o conceito amplo de Receita Bruta, na base de cálculo das contribuições ao PIS/PASEP e COFINS não cumulativas.” Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1237&cod_tema_final=1237

[2] Ver e.g., VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira Valadão; BASTOS, Ricardo Victor Ferreira; KRAUSPENHAR,. Phillip. A Não Incidência do IRPJ e da CSLL sobre os Valores Atinentes à Taxa Selic Incidentes Sobre Depósitos Judiciais. In CARBONAR, Alberto. F. T. S.; MUNIZ, Ana Vitória; AMPESSAN, Thomas (Coord.) Temas Atuais da Política Tributária no Brasil: Tributação & Democracia. São Paulo: Dialética, 2024.

[3] STJ. Tema Repetitivo 505. Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=505&cod_tema_final=505

[4] Por exemplo, as decisões do AgInt no REsp. n. 2.078.075/PR, EDcl no REsp 1.912.090/RS, AgInt no REsp 1.973.486/RS, e AgInt nos EDcl no REsp 1.949.800/SC, AgInt no REsp n. 1.983.647/RS, AgInt no REsp 1.906.715/RS: AgInt no REsp 1.938.511/RS; AgInt nos EDcl no REsp 1.848.930/SC; AgRg no REsp 1.271.056/PR, AgInt no REsp 1.920.229/SC; AgInt nos EDcl no REsp n. 1.949.800/SC.

Marcos Aurélio Pereira Valadão, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, Phillip Handow Krauspenhar

Marcos Aurélio Pereira Valadão
é doutor em Direito pela SMU (EUA), mestre em Direito pela UnB, professor da FGV, membro do Subcomitê de Preços de Transferência da ONU, ex-presidente da 1ª Seção e da 2ª Turma da 3ª Seção do Carf, sócio da FRN Advogados e consultor tributário.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Phillip Handow Krauspenhar
é mestrando Direito Tributário Internacional pela Universidade Católica de Brasília, especialista em Contratos Empresariais e graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e sócio tributarista no HD Advogados.

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