Decadência e lançamento em pedidos de compensação: a alta costura no PAF
Thais de Laurentiis
As proximidades, intersecções e diferenças entre processos administrativos oriundos de lançamento de ofício (via auto de infração) e de despachos decisórios a respeito de crédito do contribuinte (via pedidos de restituição, ressarcimento ou compensação) não cansam de nos trazer interessante jurisprudência para estudo. Nesta coluna já se apresentou, por exemplo, a problemática da aplicação de limites revisionais típicos dos lançamentos de ofício aos despachos decisórios [1]; bem como a possibilidade de revisão de débitos em declaração de compensação [2].
No texto de hoje, buscar-se-á tratar especificamente das decisões proferidas pelo Carf a respeito: 1) da (des)necessidade de lançamento para a revisão da base de cálculo de tributos, determinada pelo contribuinte, em processos de compensação; e (2) da (in)existência de prazo decadencial aplicável para a revisão da base de cálculo apurada e informada ao Fisco, no contexto dos processos de pedidos de compensação.
O pano de fundo das discussões, que tomaram novo fôlego pelas recentes decisões proferidas pela 1ª Turma CSRF, é a natureza da atividade revisional exercida pela autoridade administrativa quando da verificação de liquidez e a certeza dos créditos tributários em pedidos restituição e compensação [3]. Esse pano de fundo, na realidade, assemelha-se mais a uma colcha de retalhos, formada pelos seguintes pedaços de tecido jurídico: 1) o artigo 9º, § 4º do Decreto nº 70.235/1972; 2) artigos 142, 149 e 150, §4º do Código Tributário Nacional (CTN); e 3) artigo 74, §5º da Lei nº 9.430/1996.
Há obrigatoriedade de lançamento e/ou decadência do direito?
Três acórdãos exarados da 1ª Turma da CSRF ditam as linhas e agulhas usadas na atenta costura sobre o tema, alcançada depois de anos de debates no tribunal administrativo.
O primeiro deles é o Acórdão nº 9101-005.937, de 6 de dezembro de 2021. O caso concreto cuidava de declarações de compensação não homologadas, decorrentes de crédito relativo ao saldo negativo de 2003 (ano-calendário 2002), composto de valores de IRRF, sendo que a empresa teve prejuízo fiscal no ano-calendário 2002, devidamente informado em DIPJ. No despacho decisório, a autoridade fiscal revisou a base de cálculo de IRPJ apurada pelo contribuinte.
Ali ficaram claras as divergências interpretativas sobre o tema.
O voto vencido, da lavra da então conselheira Andrea Duek, afirmara que não se pode aplicar “as normas relativas à constituição do crédito tributário ao instituto da compensação”. Concluiu então que, no exercício da atividade de verificação da certeza e liquidez do crédito tributário (cf. artigo 170 do CTN), não haverá a necessidade de lançamento tributário e tampouco há que se falar em prazo decadencial, uma vez que se aplica para os pedidos de compensação exclusivamente o quanto disposto no artigo 74, §5º da Lei nº 9.430/96, vale dizer, o prazo de homologação tácita da DCOMP a partir de sua transmissão.
De outro lado, o voto vencedor do conselheiro Luiz Tadeu Matosinho pontua que, em casos como o que estava sob apreciação, não se trata somente de verificação do crédito pleiteado pelo contribuinte, mas sim de reexame da base de cálculo apurada e informada em suas declarações. Por constatar omissões ou inexatidões na apuração, a autoridade fiscal procede a reapuração do montante de tributo devido. Tal reapuração ocorre no bojo do processo de compensação, glosando a diferença apurada do crédito pleiteado, sem que se realize lançamento tributário para alterar o crédito tributário confessado.
Daí que aparece a importância de enfrentamento da regra posta no artigo 9º do Decreto nº 70.235/1972, o qual determina a lavratura de auto de infração ou notificação de lançamento, inclusive para os casos “em que, constatada infração à legislação tributária, dela não resulte exigência de crédito tributário”.
Foi em 2009, com a inclusão do parágrafo 4º ao referido artigo 9º do Decreto 70.235/72, por meio da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, que se edificou a regra de emissão de auto de infração e/ou notificação de lançamento para os casos em que se constata infração à legislação tributária, mesmo que dela não resulte exigência de crédito tributário.
Aplicando os métodos de interpretação literal, histórico e teleológico, o voto vencedor consigna que o dispositivo deve ser aplicado ao caso concreto analisado pelo Carf, pois “o dispositivo em questão é a forma determinada pelo legislador para a constituição do crédito tributário, mediante o lançamento de ofício pela autoridade administrativa competente, em sintonia com o que dispõe o Código Tributário Nacional nesta matéria.” Adiciona que somente assim permite-se “ao contribuinte exercer plenamente o seu direito ao contraditório e à ampla defesa”.
Coerentemente, o voto vencedor conclui que não há fundamento para afastar a aplicação dos prazos decadenciais previstos no CTN aos processos de revisão de base de cálculo e do quantum devido pelo sujeito passivo no bojo da análise dos pedidos de restituição e/ou compensação. Inclusive, para tanto, traz à baila o repetitivo do STJ sobre a contagem decadencial (Recurso Especial nº 973.733/SC). Também coerentemente, adverte que tal conclusão não se aplica ao exame das parcelas que compõem o crédito tributário em si, pois para a sua verificação não há que se falar em constituição de crédito tributário e, por consequência, não se aplicam as regras de prazo decadência de tal direito/dever do fisco.
Nesse sentido, pode-se ver o Acórdão nº 9101-007.151, de 05 de setembro de 2024, no qual a unanimidade dos conselheiros da Turma concordou que “a comprovação das parcelas extintivas do crédito tributário que formaram o saldo negativo do IRPJ não estão sujeitas ao prazo decadencial previsto para a revisão da apuração do imposto”; bem como a recente Súmula Carf nº 204.
O segundo acórdão, de nº 9101-006.609, de sessão ocorrida em 11 de maio de 2023, trouxe argumentos adicionais, espelhando as ricas discussões tidas no colegiado a respeito da matéria.
Foi enfrentada a questão de se o entendimento que prevalecera no supracitado Acórdão nº 9101-005.937 poderia representar uma prescrição aquisitiva em benefício do sujeito passivo, não prevista em lei. Afirmou-se, todavia, que o pagamento indevido é sempre apurado com base na diferença entre o tributo efetivamente devido e o montante pago. Ocorre que o poder/dever do Fisco de revisar o lançamento por homologação está limitado por um prazo legal, que independe da existência de pagamento indevido ou em valor maior. Após o decurso desse prazo, os valores apurados e declarados pelo contribuinte tornam-se definitivos e imutáveis. Ademais, lembrou-se que o contribuinte está sujeito ao prazo prescricional de cinco anos, contados da extinção do crédito, para pleitear eventual repetição de indébito (cf. artigo 168 do CTN). Assim, não se trataria de prescrição aquisitiva em favor do contribuinte, mas, sim, da consolidação, com o passar do tempo, dos valores apurados e informados ao Fisco, conforme o prazo decadencial estabelecido para a revisão do lançamento (artigo 149, V do CTN).
Já o terceiro caso, Acórdão 9101-007.104, de 8 de agosto de 2024, de relatoria do conselheiro relator Heldo Jorge dos Santos Pereira Junior, embora verse sobre caso concreto bastante semelhante aos anteriores [4], é representativo de todas as linhas que cosem o tema. Pode-se ali encontrar as declarações de voto trazendo detalhes dos casos concretos que levam a conclusões específicas da 1ª Turma da CSRF. Numa síntese: a conclusão da maioria do colegiado foi de que “é defeso ao Fisco, em processo de restituição ou compensação, alterar base de cálculo de tributo incidente sobre o lucro informado em DIPJ, após o decurso do prazo decadencial”.
Destaque-se ainda que o papel da DIPJ ganhou importância na análise do tema. Embora discordando da conclusão da maioria do colegiado, a conselheira Edeli Pereira Bessa consignou que “apresentação de DIPJ lastreada em escrituração regular, informando a existência de apuração que dispense o sujeito passivo de recolhimento ou de declaração de débito no período, embora não se preste a constituir o direito creditório ao saldo negativo nela descrito, é conduta equivalente à prevista no artigo 150 do CTN, que excepciona a regra decadencial do artigo 173, inciso I, também do CTN, para fins de lançamento suplementar de tributo devido no período”. Esse entendimento, inclusive, pode ser encontrado no Acórdão nº 9101-006.259, de 10/8/2022, especificamente sobre prazo para verificação de existência, suficiência e disponibilidade do saldo negativo.
Não sobraram pontos sem nós.
Há coerência dentro do Carf? Veja-se a Súmula 159
Enquanto toda essa evolução na costura se desenvolveu no âmbito da 1ª Turma da CSRF, em pesquisa sobre o tema perante a 3ª Turma da CSRF, nada pode-se encontrar pelo sítio eletrônico do Carf nos últimos anos. Assume-se que tal fato deve-se à edição da Súmula Carf nº 159, em 2019, segundo a qual “não é necessária a realização de lançamento para glosa de ressarcimento de PIS/Pasep e Cofins não cumulativos, ainda que os ajustes se verifiquem na base de cálculo das contribuições”.
Spacca
Ou seja, há entendimento vinculante no sentido de que mesmo sendo ultrapassada a simples verificação do direito creditório, alcançando-se eventual reapuração de base e aumentando as contribuições a se recolher no passado, com uma realocação de crédito por meio de glosa, não há espaço para uma aproximação com o instituto do lançamento tributário e, pode-se assumir (embora não esteja explícito no texto sumulado), tampouco para contagem de prazo decadencial.
Em se tratando de matéria sumulada, é defesa a interposição de recurso especial à 3ª Turma da CSRF (artigo 18, §3º do Ricarf), responsável pela análise de temas afetos à Contribuição ao PIS e à Cofins (artigo 45, I do Ricarf).
Analisando os acórdãos precedentes que originaram a Súmula Carf nº 159 [5], percebe-se que somente em dois deles é possível encontrar menção à regra estampada no artigo 9º, §4º do Decreto 70.235/72. No Acórdão 3302-01.170, o dispositivo foi mencionado apenas em declaração de voto do então conselheiros Leonardo Mussi, externando sua posição sobre a necessidade de lançamento no caso concreto. Já no Acórdão 3302-002.173, único precedente da Súmula Carf nº 159 cujo voto vencedor enfrenta o teor da aplicação do art. 9º, §4º do Decreto 70.235/72 para processos decorrentes de pedido de compensação, está expresso que somente não se está exigindo o lançamento tributário porque à época da emissão de despacho decisório que promoveu a modificação da base de cálculo apresentada pelo contribuinte, ainda não era vigente a atual redação do dispositivo.
Os demais acórdãos que embasam a Súmula Carf nº 159 afirmam categoricamente que “não há norma” impondo o lançamento tributário para os casos concretos (pedidos de compensação de débitos dos contribuintes com créditos da Contribuição ao PIS e à Cofins)
Um ótimo tema para uma reforma de alta costura no processo administrativo fiscal (PAF)
As questões tratadas no texto de hoje são controversas. A jurisprudência do Carf apresenta entendimentos divergentes entre as turmas ordinárias, além de ser possível notar uma mudança de padrão da CSRF ao longo do tempo. Assim é que, nesta coluna, limitamo-nos às decisões recentes da 1ª Turma da CSRF, para contrapô-las ao entendimento estanque que paira na 3ª Seção (Súmula Carf nº 159), o que já impõe refletirmos sobre a edição de súmulas a respeito matéria tão delicada, inviabilizando sua evolução.
De toda forma, o que não deveria ser controverso é o fato de que decadência é instituto de grande valia para o direito como um todo, à medida que impede a eternização de interesses. Não fosse a existência de limites jurídicos como a decadência, ruiria o princípio da segurança jurídica, além de se tornar impossível a almejada pacificação social, pois a qualquer instante um interessado poderia ir em busca da satisfação de direitos tão antigos que já teriam sido consumidos por uma nova acomodação das relações interpessoais, de modo que a sua implementação não faria nada além de tumultuar o estado de direito reinante.
Por isso é preciosa a observação feita no Acórdão nº 9101-005.937 no sentido que, apesar de o artigo 9º, §4º do Decreto 70.235/72 “ter sido incluído no ordenamento jurídico desde 2009, observa-se que a administração tributária não adota um procedimento uniforme para a revisão da base de cálculo e do crédito tributário apurado durante a análise de solicitações de compensação e restituição, quando tal revisão se faz necessária”.
Já é tempo de melhoria. Desde a edição do Decreto nº 70.235/72 já se passaram mais de 50 anos. Desde o início da evolução do instituto da compensação tributária em âmbito federal, pela Lei nº 8.383/1991, já temos quase 25 anos. Desde a alteração do artigo 9º pela Lei nº 11.941/2009 já se foram mais de 15 anos.
Em época de tantos projetos de reforma para evolução do sistema tributário, buscando segurança jurídica, garantido direito ao contraditório e à ampla defesa, bem como limpando litígios desnecessários, muito evoluiríamos com uma melhor sistematização de limites e forma de a autoridade fiscal proceder a constituição de crédito tributário, via revisão de apuração declarada pelos contribuintes, em processos decorrentes de processos de compensação, com os respectivos direitos dos contribuintes. Isso é alta costura no PAF.
[1] https://www.conjur.com.br/2021-jul-14/direto-carf-limites-revisao-despacho-decisorio-carf-entre-direito-tributario-administrativo/
[2] https://www.conjur.com.br/2020-jul-08/direto-carf-csrf-impossibilita-revisao-debitos-declaracao-compensacao/
[3] Atualmente, a compensação em sede tributária é instituto importantíssimo, tendo em vista a dificuldade cada vez maior que o sistema de restituição de indébitos por meio de expedição de precatórios tem apresentado, além de sua capacidade de dar efetividade à não cumulatividade de determinadas exações, já que permite o ressarcimento de créditos. Nesse sentido, é incontestável que o contencioso administrativo cada vez mais se vê obrigado a lidar com questões atinentes a pedidos de compensação.
[4] Trata-se de declarações de compensação por meio das quais o contribuinte pretendia quitar débitos próprios com saldo negativo de IRPJ apurado no período de 01/01/2002 a 30/06/2002. Em despacho manual, só parte do direito creditório foi reconhecido pela fiscalização. O não reconhecimento da totalidade do direito creditório, se deu porque a fiscalização, revisando as bases do IRPJ apurado naquele período, entendeu que o contribuinte (i) deduziu juros sobre o capital próprio acima do limite legal e (ii) reduziu, por duas vezes, o lucro tributável em razão de determinadas despesas com pessoal. O contribuinte foi intimado do despacho decisório em 29/06/2009.
[5] Acórdão n. 3201-002.449, 3302-002.173, 3302-002.353, 3403-003.591 e 3302-01.170.
Thais de Laurentiis
é advogada, sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com período na Sciences Po/Paris, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, árbitra no CBMA, professora do mestrado profissional do IBDT, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.