Tributação da morte e os serviços de saúde na reforma tributária

Heleno Taveira Torres

Não há dúvidas de que a reforma tributária trará uma grande transformação da economia, com mudanças reais nos modos de fazer negócios e na conduta dos agentes de mercado. Um passo fundamental da nossa história constitucional, tanto pela promessa de simplificar as relações tributárias, quanto por propiciar uma ampla renovação do pacto federativo. Isso, porém, não nos afasta do dever de apontar equívocos pontuais nas propostas de leis que estão a chegar no Congresso.

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Há um tabu na sociedade para se falar da morte. A superstição sempre leva as pessoas a evitarem análises sobre sua repercussão. Ao supor que são todos eternos e que a gestão dos mortos não parece um serviço desejável e necessário. Da saúde segue-se a morte, pois este é o destino de todos os vivos. Quer por perda da saúde ou por infortúnios. Daí que os “serviços de saúde” serão sempre aqueles de prevenção ou de recuperação de danos à saúde.

A instituição das leis complementares que irão “regulamentar” a Emenda à Constituição nº 132/2023 deve dar cumprimento à diferenciação de tratamento dos serviços de saúde, na forma do artigo 196 da CF. Contudo, nestes não foram incluídos os custos funerários, de cremação e de embalsamento, tampouco os planos funerários, serviços que decorrem de continuidade dos serviços de saúde (até porque são forma relevante de saúde pública), a autorizar a inclusão da NBS nº 1.2603.00.00 no Anexo III do PLP nº 68/2024.

A regra do artigo 135 do PLP nº 68/2024, como sabido, reduz em 60% “as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre o fornecimento dos serviços de saúde humana”, dispostos em seu Anexo III, com a correlação de sua Nomenclatura de Bens e Serviços (NBS), que guardam nítida identidade com o setor cemiterial e seus serviços e concessões afeitos.

Os cemitérios modernos foram projetados para prover higiene e respeito ao sentimento religioso da pessoa humana. [1] Entrementes, o modelo de concessão eterna das sepulturas atingiu rápida saturação, de modo a tornar urgente a flexibilização do setor e o desenvolvimento de novas tecnologias de conservação de jazigos e fornecimento de serviços funerários privados, de modo a balancear o carregamento da esfera pública. [2]

E o Supremo Tribunal Federal já decidiu, no RE nº 578.592-9/BA, que os cemitérios “consubstanciam extensões de entidades de cunho religioso”, de forma a atrair a imunidade prevista no artigo 150, VI, “b”, da CF, para os “templos de qualquer culto”, e, assim, dinamizar a atividade privada. [3]

Cabe ainda observar que “[p]ode-se considerar as cerimônias fúnebres como uma vertente do direito à saúde, pelo aspecto dos parentes que ficaram vivos, tendo em vista a saúde mental e emocional destes familiares e a forma como os sentimentos de perda podem ser expressos”, na expressão de M. Vital Rocha et al. [4]

A conexão entre os serviços cemiteriais, crematórios e funerários e os cerimoniais religiosos é incontestável. Segundo o Anexo A, da Portaria nº 108/2019, da Secretaria Nacional de Segurança Pública, é considerado “local religioso e velório” todas “as Igrejas, capelas, sinagogas, mesquitas, templos, cemitérios, crematórios, necrotérios, salas de funerais e assemelhados”, em evidente reconhecimento do caráter religioso dos espaços cemiteriais ou que fornecem serviços funerários.

O período de Covid-19 resultou no fechamento de inúmeros cemitérios por ausência de sepulturas, entrave que ainda não se esvaiu por completo. [5] Como resultado, viu-se aumento considerável dos custos de sepultamento e na redução dos serviços gratuitos. Questões graves de saúde pública, como estas, além das manifestações de fé e religião, não podem escapar aos debates legislativos da reforma tributária.

Não obstante, os serviços relacionados com o destino dos mortos — que nada mais são do que a continuidade dos serviços de saúde — parece não gerar interesse nem da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária — Sert e nem do Congresso, que remanescem em completa inércia, [6] ao considerarem estes serviços submetidos ao regime geral do IBS e da CBS, sem qualquer flexibilidade, com enorme impacto de alíquotas, a olvidar que os serviços de saúde devem ser providos com preços acessíveis e segundo o princípio de universalidade. [7]

Conforme o recente julgamento da ADI nº 5.869/DF, o Supremo Tribunal Federal confirmou a constitucionalidade da incidência do ISSQN em cessão de espaços para sepultamentos. [8]

Neste sentir, a passagem de incidência do ISSQN para o sistema IBS/CBS, de certo, só atende aos anseios arrecadatórios, sem qualquer sensibilidade sobre a gestão dos mortos na sociedade e a necessidade de diminuição de elevados custos dos serviços cemiteriais, crematórios e funerários.

Daí a relevância da proposta do senador Wilder Morais ao incluir o § 2º no artigo 125 do PLP nº 68/2024, que insere na redução de alíquotas “a cessão de uso de jazigo e os planos funerários”, com a equivalência necessária com o regime especial dos serviços de saúde.

Nisto, portanto, não se tem qualquer privilégio, mas simples continuidade de um regime especial integrado entre os custos da saúde e o fim da vida, pela morte, destino de todos os seres humanos.

O direito à saúde, típico direito público subjetivo, está pautado pelas premissas de universalização e igualdade, típicas garantias que balizam o mínimo de eficácia do Estado democrático de Direito.

Na redação dos artigos 197 e 199, da CF, ademais, os serviços de saúde podem ser complementados e prestados por entidades privadas, a justificar a emenda ao PLP nº 68/2024, para conferir tratamento especial de redução de alíquotas do IBS e da CBS típico do direito à saúde, extensivo aos serviços de “cessão de uso de jazigo e os planos funerários”.

Necessário esclarecer, pois, que Resolução RDC nº 33/2011 da ANS contém parâmetros específicos para tutelar o transporte de urnas funerárias contendo restos mortais humanos, incluídas àqueles referentes à sua armazenagem ou guarda temporária até a sua destinação final.

Nesta equiparação nada há de extravagante
O Anexo I, da Resolução nº 62/2020, do comitê para gestão da rede nacional para a simplificação do registro e da legalização de empresas e negócios, estabelece que a gestão e manutenção de cemitérios se classifica como médio risco para fins de segurança sanitária, ou seja, é uma atividade econômica que comporta “vistoria posterior ao início do funcionamento da empresa, de forma a permitir o exercício contínuo e regular da atividade econômica, sendo que para essas atividades será emitido licenciamento sanitário provisório pelo órgão competente” (artigo 4º, II).

Assim também preveem os Anexos nº II e I da Instrução Normativa nº 66/2020 da ANS, e 24/2011 do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, respectivamente.

Com efeito, cabível que o PLP nº 68/2024 possa equiparar aos serviços de saúde aqueles serviços cemiteriais, crematórios e funerários, ainda pendentes de inclusão em seu Anexo III, sob a NBS nº 1.2603.00.00.

Pouco surpreende que o artigo 3-J, § 1º, XX, da Lei 13.979/2020, tenha considerado profissionais essenciais ao controle de doenças e à manutenção de ordem pública “coveiros, atendentes funerários, motoristas funerários, auxiliares funerários e demais trabalhadores de serviços funerários e de autópsias”, tudo a confirmar a relação intrínseca entre os serviços cemiteriais, crematórios e funerários e o cuidado com a saúde pública.

Não só
O artigo 17 da Resolução Conama nº 316/2002 insere a classificação dos cemitérios como potenciais poluidores e usuários de recursos ambientais, ao ponto de demandar sua constante supervisão pela Coordenação-Geral de Gestão da Qualidade Ambiental (artigos 1º a 9º, da Instrução Normativa nº 13/2021, do Ibama).

Em conclusão, justifica-se a inclusão dos serviços cemiteriais, crematórios e funerários, sob a NBS nº 1.2603.00.00, no Anexo III do PLP nº 68/2024, como forma de reduzir os custos da gestão dos mortos no sistema de saúde, etapa na qual não há sequer créditos relevantes para serem compensados, muito menos serviços que possam “circular”.

A continuidade do regime geral do IBS/CBS é um franco desestímulo à atividade de “cessão de uso de jazigo e os planos funerários”, sem aquela comunicação com o regime especial de saúde, pois levará os cemitérios privados a assumirem custos elevados e a uma concorrência prejudicada em face dos cemitérios de entidades religiosas ou de entes municipais, que estarão submetidos aos regimes de imunidade tributária.

____________________________

[1] VAN GENNEP, A. The Rites of Passage. Trad. esp. de Monika B. Vizedom e Gabrielle L. Caffee. London: Routledge-Kegan Paul, 1960, p. 31-32; e LORENZ, K. Fundamentos de Etologia. Trad. Port. de C. C. Alberts e P. M. Cruz. São Paulo: Editora da Unesp, 1995, p. 432; e LAUWERS, Michel. O Nascimento do cemitério: Lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente Medieval. Campinas: Editora da Unicamp, 2015, p. 9-10.

[2] WORPOLE. Last landscapes: the architecture of cemetery in the West. London: Reakition Books, 2008, p. 122-131.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. RE nº 578.562-9/BA. Relator Ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 21/05/2008, DJe 12/09/2008.

[4] ROCHA, Maria Vital da et al. O direito ao sepultamento e as mudanças advindas da COVID-19 em face dos direitos da personalidade. Revista Eletrônica de Direito, n. 43, p. 57-72, jan./abr. 2021, p. 60.

[5] MACHADO, Lívia; RODRIGUES. Segundo maior cemitério de São Paulo suspende enterros por falta de vagas, dizem funcionários. G1. Disponível em: Acesso em 22. ago. 2024.

[6] KRUSE, Túlio. Preços de serviços funerários em SP sobem mais de 400% para quem não tem direito a gratuidade. Folha de São Paulo. . Acesso em 22 ago. 2024.

[7] Para assegurar o direito fundamental à Saúde, os entes políticos devem carrear esforços para prover meios a preço acessível. (BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. n. 46, p. 46-47).

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. ADI nº 5.869/DF. Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 22/02/2023, DJe 02/03/2023.

Heleno Taveira Torres

professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP, presidente da ABDF e advogado.

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