Reforma tributária: Split payment – a revolução
Eduardo Salusse
Hanna Arendt, que era judia fugida da 2ª guerra mundial, na obra “Sobre a Revolução”, abalada com o rompimento causado pelo conflito, escreveu sobre as revoluções como mecanismos de reconhecer um recomeço ou uma nova ordem jurídica.
Fez comparação entre as revoluções americana e francesa. A revolução americana trouxe a revolução como reconhecimento de nova ordem proposta de forma antecedente, razão que fez Arendt considerá-la bem sucedida. De outro lado, a revolução francesa rompeu o sistema anterior sem uma nova ordem pré-concebida, fazendo com que Arendt a considerasse um exemplo de fracasso.
Traz a ideia de que a mudança é um passo natural. A revolução é a instauração de algo novo e incerto. Há a interrupção de tempo e reinício, permitindo remarcar um novo ciclo ou uma nova direção.
Arendt identifica nas revoluções alguns elementos intrínsecos, como a novidade (busca por algo inovador), a busca pela liberdade, a presença da violência (por vezes manifestada por rupturas ou conflitos, armados ou não) e a irresistibilidade (não pode ser detida).
A instituição do split payment pela Emenda Constitucional nº 132/23, ao comando do disposto em seu artigo 156-A, parágrafo 5º, II, “b”, em fase de regulamentação pelo projeto de lei complementar nº 68/2024 (artigos 27, III; 50 e 51) é uma revolução.
Diz o PLP 68/24 que o arranjo de pagamento que disciplina serviço de pagamento baseado em instrumento de pagamento eletrônico deverá estipular que, nas transações de pagamento relacionadas a operações com bens ou com serviços, haja vinculação entre as informações da transação e os documentos fiscais relativos às operações e, quando for o caso, os valores do IBS e da CBS.
Define ainda que os prestadores de serviços de pagamento participantes dos arranjos de pagamento deverão segregar e recolher aos cofres públicos, no momento da liquidação financeira da transação de pagamento, os valores do IBS e da CBS indicados nos termos da regulamentação (split payment).
Em linhas gerais, o split payment pretender fazer com que o pagamento de todas as transações seja bipartido, de modo que a parte do imposto não quitada pelo fornecedor em conta gráfica (com a compensação de créditos que porventura possua), seja liquidada no ato do pagamento da transação comercial.
Em alguma medida, assemelha-se com as regras que impõem à fonte pagadora à retenção e pagamento direto à Fazenda Pública do imposto devido pelo recebedor do pagamento. No caso do IBS e da CBS há, sem dúvida, um notável incremento de tecnologia e complexidade, mas plenamente exequível.
O que está por trás disso é a necessidade de preservação da higidez do novo regime da tributação sobre o consumo, tentando impedir distorções decorrentes da geração de créditos de imposto sem o efetivo pagamento.
O Comitê Gestor pretende, ideologicamente, trabalhar com a administração de um caixa com saldo zero. Vale dizer, todo o imposto arrecadado deve ter uma destinação específica e imediata: Estados, Distrito Federal e municípios, fundos constitucionais ou a devolução para os contribuintes detentores de créditos acumulados.
É uma ruptura do distorcido e ineficiente mecanismo de crédito atual lastreado apenas na cobrança do imposto na operação anterior, ainda que não tenha sido pago por razão de fraude, inadimplência, créditos presumidos de benefícios fiscais ou outras causas.
Parece evidente que, inexistindo o pagamento do imposto pelo contribuinte devedor (fornecedor do bem ou serviço), não há o ingresso dos valores nos cofres públicos. E, assim ocorrendo, não há origem de recursos para devolver aos contribuintes acumuladores de créditos (ex. exportadores) ou para entregar diretamente os respectivos entes da federação.
Se quisermos o fim dos litígios, a restituição imediata dos créditos acumulados, o fim das fraudes, a segurança dos adquirentes de bens e serviços tomadores de créditos, o restabelecimento da livre e leal concorrência, a paz federativa sem disputas por repasses de recursos, a arrecadação incrementada, a menor carga tributária distribuída entre os demais membros da sociedade e, por fim, a consequente melhoria do ambiente de negócios, temos que nos adaptar a esta transformação, ainda que com alguma resistência inerente às chamadas revoluções.
Há efeitos colaterais? Sem dúvida, para o bem e para o mal, especialmente relacionados com o fluxo de caixa das empresas e pessoas participantes das operações negociais intermediárias.
Mas esta transformação é como uma espécie de obrigação irresistível – com diz Arendt – da qual decorre a sobrevivência do sistema, eliminando uma disfuncionalidade já identificada há tempos.
A correção de rumos não é uma faculdade, mas uma obrigação à luz do princípio jurídico da eficiência.
E, para encerrar, se o split payment é uma revolução inevitável, que seja na linha da revolução americana, menos caótica do que a revolução francesa e com esteio em uma nova ordem já proposta e testada de forma antecedente.
Eduardo Salusse
Sócio fundador do escritório responsável pela área de direito tributário. Responsável executivo de pesquisa no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV DIREITO SP. Professor em direito tributário no IBET, APET, FGV Direito e outras instituições. Conselheiro Honorário e atual Presidente do MDA – Movimento de Defesa da Advocacia. Colunista no Jornal Valor Econômico (Fio da Meada).