Neste novo ano, podemos começar a falar em um processo administrativo aduaneiro?
Liziane Angelotti Meira
Nos últimos meses, houve alterações substanciais nas regras de processo administrativo aplicáveis à matéria aduaneira, especialmente mudanças importantes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e criação e início do funcionamento do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul). Voltando-nos a essas novidades, mas considerando também normas que permaneceram estáveis, o propósito deste artigo é refletir sobre o processo ou os processos administrativos aplicados às contendas aduaneiras e perquirir se haveria alguma padronização ou harmonização que prenunciasse um processo administrativo aduaneiro.
No comércio exterior, são exigidos os tributos aduaneiros, os tributos federais incidentes na importação com base no princípio do tratamento nacional, algumas taxas, bem como as respectivas multas de mora e de ofício. Em relação a esses tributos e multas, é aplicado o processo administrativo fiscal (PAF), previsto no Decreto nº 70.235/1972 [1]. Ou seja, os tributos federais incidentes na importação e as respectivas multas, da mesma forma que os demais tributos federais e suas multas, em caso de lide, ficam submetidos, em primeira instância, à Delegacia de Julgamento e, em segunda, ao Carf.
Regime jurídico próprio e o rito do PAF
Isso parece lógico, mas gera algumas dúvidas, tendo em conta que os tributos aduaneiros são extrafiscais e foram concebidos para corresponderem à dinâmica e aos valores a serem velados no comércio exterior. Assim, esses tributos possuem um regime jurídico próprio, que destoa da regra geral, não estando sujeitos ao princípio da legalidade estrita e aos princípios da anterioridade geral e nonagesimal [2].
Os questionamentos se multiplicam quando se aventa que não somente os tributos e as respectivas multas aplicados na importação e na exportação seguem o rito do PAF, mas também todas as outras multas aduaneiras, muitas sem qualquer relação com os tributos [3].
Ademais, são exigidas na importação as medidas de defesa comercial, a saber – direitos antidumping, direitos compensatórios e de salvaguarda – e as respectivas multas de mora ou de ofício. Vale lembrar que as discussões são antigas, mas não se logrou ainda no Brasil definir a natureza jurídica desses direitos (penalidade, tributo, instrumento não tributário de intervenção no domínio econômico ou instituto sui generis) [4]. Contudo, mesmo sem essa definição, a exigência desses direitos e das multas pelo seu não recolhimento estão também submetidas ao PAF [5].
Spacca
Lembremos que as sanções aduaneiras são as seguintes: perdimento do veículo, perdimento da mercadoria, perdimento de moeda, multa e sanção administrativa [6].
Criação de rito administrativo específico
O procedimento administrativo aplicado à exigência das penas de perdimento foi intensamente criticado, especificamente pela falta de previsão de recurso e também porque a decisão final não pertencia a uma autoridade independente da autoridade aduaneira. Com a adesão do Brasil à Convenção de Quioto Revisada (CQR), as críticas se acirraram, pois essa convenção exige a existência do direito de recurso em matéria aduaneira à autoridade independente da Administração Aduaneira [7].
Esse impasse foi alterado em 2023, com a edição da Lei nº 14.651, de 23 de agosto de 2023 [8], que trouxe a dupla instância para os processos administrativos relativos à pena de perdimento de mercadoria, veículo e moeda, e da multa ao transportador, de passageiros ou de carga, em viagem doméstica ou internacional, que transportar mercadoria sujeita à pena de perdimento. A lei também atribuiu ao Ministério da Fazenda a competência para regulamentar o rito administrativo de aplicação e as competências de julgamento da pena de perdimento de mercadoria, de veículo e de moeda.
O que ainda faltava veio logo em seguida: foram publicadas a Portaria Normativa MF nº 1.005, de 28 de agosto de 2023, e a Instrução Normativa RFB nº 348, de 4 de setembro de 2023, criando o Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul) e estabelecendo sua estrutura e funcionamento. Dessa forma, foi definido em 2023 e está em pleno funcionamento um rito administrativo específico, com a criação de órgão especializado e independente da Aduana, com o intuito de tratar de modo mais técnico, rápido, coerente e harmonizado das penalidades de perdimento [9]. Alguns ainda continuam críticos, defendendo que o recurso deveria ser a autoridade não somente independentemente da Aduana, mas também da Receita Federal [10].
As novidades no Carf
Passemos agora a examinar as recentes e significantes alterações que sofreu o Carf, com impactos sobre a matéria aduaneira.
A primeira mudança que merece ser mencionada é a Portaria Normativa MF nº 1.360, de 1º de novembro de 2023, que trata de ação afirmativa de gênero para o preenchimento de vagas de conselheiros no Carf, determinando que esse conselho seja composto por, no mínimo, 40% de cada gênero nas vagas de conselheiros. A expectativa é que essa medida traga uma representatividade feminina mais adequada, que resulte em decisões mais alinhadas com as aspirações da sociedade.
A segunda mudança examinada é o voto de qualidade [11]. Apesar de um pequeno percentual dos julgamentos serem decididos por voto de qualidade, de acordo com a os dados disponibilizados pelo Carf [12], sabemos que são os temas mais intrincados e que envolvem valores significativos. Assim, o voto de qualidade certamente afeta o julgamento das matérias aduaneiras.
Vale ter presente que, em termos processuais, o afastamento do voto de qualidade efetivado em 2020 gerava mais vitórias ao contribuinte e, considerando que somente este tem direito de recorrer à Justiça depois de vencido no processo administrativo, essa situação implicava um decréscimo de processos judiciais tributários. Contudo, mister lembrar que justamente essa possibilidade de recurso ao Judiciário ostentada pelo contribuinte e não pelo Fisco constitui importante fundamento para manutenção do voto de qualidade.
Assim, a Lei nº 14.689/2023, reintroduziu o voto de qualidade, mas trouxe consigo outras matérias, algumas afeitas ao tema, como questões relacionadas à transação tributária, autorregularização de débitos, exclusão de juros de mora e multas no caso de decisão do Carf por voto de qualidade, outras nem tanto, como apuração de lucro tributável e retroatividade das penalidades tributárias das pessoas jurídicas que atuam na multiplicação de sementes, tributação de atos cooperados.
Lei tem textos ambíguos, mas estimula a celeridade
A lei parece ter sido produzida, costurada e redigida de forma bastante apressada, diante das dificuldades políticas encontradas no início do novo governo. Dessa forma, ela acabou por carregar textos ambíguos e pouco técnicos, o que tem gerado muita dúvida e profundas discussões na interpretação. Entretanto, creio que, independentemente da amplitude dada à previsão legal de exclusão de multas e juros de mora no caso de decisão do Carf por voto de qualidade, há uma consequência realmente positiva: a lei estimula maior celeridade do processo administrativo fiscal. Isso porque, se o processo continuar levando muitos anos, até décadas, para ser decidido, esse afastamento dos juros de mora no caso de decisão por voto de qualidade vai provocar grande defasagem do valor do crédito tributário, que não está sujeito a outro tipo de correção monetária.
A maior celeridade do processo administrativo e judicial tributário é imprescindível para que se fixem as leis e suas interpretações consideradas adequadas e constitucionais. Pois, para empresários, empreendedores e investidores, pior do que uma carga tributária alta é a indefinição; esta não lhes permite planejar corretamente seus negócios e investimentos, desestimulando-os. A celeridade é ainda mais relevante para as matérias aduaneiras, tendo em conta que o comércio exterior é muito ágil e dinâmico. Qualquer demora não prevista pode gerar prejuízos, valores excessivos a título de depósito ou demurrage, e mesmo perecimento ou defasagem tecnológica ou comercial da mercadoria importada [13].
Os destaques do novo Ricarf
Nesse mesmo sentido de celeridade, cabe considerar o novo Ricarf, aprovado pela Portaria MF nº 1.634/2023, que traz mudanças importantes para o processo administrativo fiscal. O próprio Carf especificou os quatro pilares do novo regimento: diminuição da temporalidade dos processos aguardando julgamento; celeridade na publicação dos acórdãos; maior produtividade e especialização dos conselheiros e ampliação do direito de defesa do contribuinte e maior transparência nos julgamentos [14].
Vamos indicar as mudanças mais importantes para o processo administrativo fiscal, que logicamente, têm impacto sobre o processo aduaneiro.
O tempo máximo de mandato para os conselheiros do Carf foi estendido em 4 anos. Um conselheiro pode então ficar 8 anos e, se assumir presidência ou vice-presidência de câmara ou turma, até 12 anos [15]. Essa medida é importante, tendo em conta que esses profissionais demoram a se formar e que a experiência e especialização no contencioso administrativo fiscal são imprescindíveis tanto para a celeridade quanto para a qualidade do trabalho.
Também houve alteração do número de conselheiros por turma, que passaram de oito para seis [16]. Acredita-se que assim as discussões continuarão técnicas e profundas, mas serão mais ágeis, trazendo celeridade para o julgamento.
Outra mudança interessante foi aumentar o valor para os julgamentos das turmas extraordinárias de 60 salários mínimos para 2.000 salários mínimos [17]. Essa, da mesma forma, veio com o objetivo de trazer celeridade sem comprometimento da qualidade e nem da ampla defesa.
O novo Ricarf também disciplina as modalidades de sessões. Assim, o regimento [18] passou a prever reuniões síncronas — presenciais e não presenciais —, híbridas e assíncronas. As reuniões assíncronas ocorrerão por meio do plenário virtual, que ainda depende de regulamentação por ato do presidente do Carf.
Na mesma esteira, simplificou-se a aprovação das Súmulas do Carf, que pode ocorrer no âmbito das Seções do Carf; além disso, as Súmulas passaram a subordinar as Delegacias de Julgamento da Receita Federal. O que traz uniformização e celeridade.
Especialização de Câmaras e Turmas
Todas essas medidas impactam os processos aduaneiros submetidos ao Carf, contudo, há uma que engendrou uma expectativa mais específica para os aduaneiros: a possibilidade de especialização de Câmaras e Turmas [19]. Essa previsão, apesar de não se dirigir exclusivamente aos temas aduaneiros, surgiu diante de uma percepção de que seria importante que algumas turmas se dedicassem precipuamente à matéria aduaneira, o que atrairia especialistas em matéria aduaneira e certamente mais especialização, tecnicidade e qualidade para as decisões do Carf.
Falta ainda mencionar aqui o processo administrativo aplicado às sanções aduaneiras não pecuniárias, indicadas no Regulamento Aduaneiro como sanções administrativas aos intervenientes nas operações de comércio exterior. Sobre estas, a Lei nº 10.833, no seu artigo. 76, §§ 8º e 9º, determina que serão submetidas a processo administrativo próprio, com recurso, dentro da estrutura da Secretaria da Receita Federal.
Três ramos
No presente artigo, pudemos verificar que os tributos, direitos, multas, perdimentos e sanções não pecuniárias aduaneiras não seguem rito único nem padronizado para sua exigência, mas foram alocados de acordo com as semelhanças encontradas entre si e com os tributos federais. Na verdade, encontramos três ramos.
Do primeiro, constam os valores relativos a tributos federais exigidos na importação ou na exportação e as multas pertinentes, que foram colocados juntamente com o processo relativos aos demais tributos federais. Nessa mesma posição ficaram os direitos relativos às medidas de defesa comercial e suas multas. Ainda se juntam a esse grupo as multas aduaneiras pecuniárias. Portanto, conforme pudemos examinar, nesse processo administrativo houve importantes mudanças nos últimos meses, com impacto na matéria aduaneira e se tem ainda muita expectativa, mormente em relação à criação de turmas especializadas dentro do Carf.
No segundo ramo, estão as penalidades de perdimento. Observou-se, a partir do segundo semestre de 2023, especialização e também a criação de um recurso à autoridade independente da Aduana para as penas de perdimento aduaneiras de veículos, mercadorias e moedas, como a criação e início do Cejul. Além de cumprir exigência da Convenção de Quioto Revisada, o escopo foi trazer mais especialização, celeridade, tecnicidade e ampla defesa.
Em um terceiro ramo, que não sofreu alterações importantes recentemente, estão as sanções aduaneiras não pecuniárias, que seguem um rito específico, que se desenvolve entre diferentes autoridades da Secretaria da Receita Federal do Brasil, dependendo da sanção aplicada.
Nesse sentido, vislumbramos que a exigência de tributos, direitos, multas e sanções não pecuniárias aduaneiros, apesar de suas características comuns e da necessária especialização no seu tratamento e exigência, não está sujeita a um único processo administrativo, mas a três tipos de processo administrativo, dos quais dois foram aprimorados recentemente, entretanto, os três continuam diversos e isolados.
[1] Com base no art. 1º do Decreto nº 70.235/1972, que menciona os créditos tributários.
[2] Ao leitor que se interesse pelo tema da tributação do comércio exterior, recomendo a leitura de um artigo desta coluna de minha autoria: “Um Carnaval tributário na Aduana” (Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024). Aos que desejem se aprofundar mais, sugiro o livro “Tributos sobre o Comércio Exterior”, São Paulo: Editora Saraiva, 2012, também de minha autoria.
[3] As multas aduaneiras constam dos artigos 702 e seguintes do Regulamento Aduaneiro. Indica-se como exemplo a multa de 30% do valor aduaneiro pela falta de licenciamento na importação, prevista no art. 706, I, “a” do Regulamento Aduaneiro.
[4] Sobre o tema, recomendo o meu livro “Tributos sobre o Comércio Exterior”, São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 225-263.
[5] O 7º, § 5º, da Lei nº 9.019, de 1995, determina expressamente que o PAF deve ser observado em relação ao direitos antidumping e aos direitos compensatórios. Quanto aos direitos de salvaguarda, é o Regulamento Aduaneiro, no seu art. 769, que determina que deve ser aplicado o PAF.
[6] As sanções aduaneiras estão consolidadas no art. 675 do Regulamento Aduaneiro.
[7] A Convenção de Quioto Revisada (CQR) foi promulgada pelo Decreto nº 10.276/2020, e em seu capítulo 10, prevê o direito de recurso a uma autoridade independente da Administração Aduaneira.
[8] A nova Lei alterou o Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, e também as Leis nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, e 14.286, de 29 de dezembro de 2021.
[9] Sobre o CEJUL, sugere-se leitura de artigo da Chefe da CEJUL, Andrea Duek: “Cejul traz novo modelo de consensualismo para a pena de perdimento” (Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024).
[10] Aqueles que têm acompanhado esse assunto há muitos anos e estavam na expectativa da dupla instância administrativa com recurso para autoridade independente muito antes da adesão brasileira à CQR, sabem da dificuldade para os importantes desenvolvimentos alcançados em 2023 e da importância dessas conquistas. Contudo, as críticas são imanentes à democracia e servem para reflexão e revisão por partes dos formuladores de políticas públicas.
Essa celeuma tem aparecido constantemente nesta Coluna em excelentes artigos publicados por meus colegas: “Processo de aplicação administrativa da pena de perdimento: Here I go again!” de Rosaldo Trevisan (Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024); “A ciranda de violações do novo regime recursal da pena de perdimento”, de Leonardo Branco e Oswaldo Gonçalves de Castro Neto (Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024); “Novo processo de perdimento de bens e a cortina de fumaça jurídica: o que esperar?”, de Fernanda Kotzias e Diogo Fazolo (Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024); e “Convenção de Quioto revisada: juntos e ‘shallow now’?”, de Rosaldo Trevisan (Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024).
[11] Conforme recente artigo de minha autoria, o voto de qualidade foi introduzido no sistema jurídico brasileiro em 1934, tendo alçado a hierarquia de lei em 2008; no ano de 2020, em um panorama político ultraliberal, o voto de qualidade foi afastado, por meio da Lei nº 13.988; no início do governo Lula, o voto de qualidade foi reintroduzido por Medida Provisória, que perdeu a vigência em 15 de junho de 2023; em 5 de maio de 2023, foi apresentado em regime de urgência o Projeto de Lei nº 2.384, que propôs o restabelecimento do voto de qualidade e tratou de outras matérias. O PL foi aprovado, mas foi objeto de 25 vetos presidenciais; em 20 de setembro de 2023 entrou em vigência a Lei nº 14.689. Em dezembro do mesmo ano, o Legislativo 5 dos 25 vetos presidenciais. (“Lei 14.689/2023: no retorno do voto de qualidade, como ficaram as multas?” , Disponível em . Acesso em: 04.fev.2024).
[12] Conforme divulgados pelo CARF e disponíveis em . Acesso em: 04.fev.2024
[13] Por exemplo, se adereços para o carnaval previstos para chegar ao mercado brasileiro em novembro chegarem em março, certamente terão um valor comercial muito menor. Sobre os impactos do tempo na importação de tecnologia e de bens perecíveis, nem precisamos exemplificar.
[14] Conforme consta do sítio do CARF, em . Acesso em: 04.fev.2024.
[15] Conforme art. 80, § 2º, do Ricarf.
[16] Conforme art. 64 do Ricarf.
[17] Conforme art. 65 do Ricarf.
[18] Conforme art. 92 do Ricarf.
[19] Conforme art. 46, II, do Ricarf.
Liziane Angelotti Meira
professora, pesquisadora, coordenadora do Grupo de Pesquisa Capes "Família e Políticas Públicas: Projeção Econômica das Famílias", doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre e especialista pela Universidade Harvard.