Lei nº 14.740 e a possibilidade de quitar tributos federais com uso de prejuízo fiscal
Matheus Mendes Nunes
Desde muito cedo se aprende na faculdade de direito que, a despeito de existirem diversos métodos interpretativos, a interpretação literal deve ser, sempre, o ponto de partida de um estudioso bem-intencionado [1]. Isso porque quando o legislador usa uma determinada expressão linguística, os termos por ele empregados costumam possuir um significado pré-existente, que, naturalmente, deve orientar a interpretação do novo texto legal (e as consequências que dele se possa exprimir) [2].
Isso se dá porque a compreensão/inteligibilidade das palavras adotadas pela lei é o requisito mínimo para que um texto legal possa ser corretamente interpretado e aplicado. Do contrário, a lei seria qualquer coisa que o leitor quiser que ela seja, e não aquilo que foi democraticamente prescrito pelo Poder Legislativo.
É por isso, portanto, que onde a lei diz que “é proibido”, o intérprete não pode concluir que está dito “é permitido”; ou mesmo que “é proibido”, mas para hipóteses não previstas na própria lei. Fazê-lo seria o mesmo que violar/ignorar a interpretação literal daquele dispositivo, inovando no ordenamento jurídico — o que, como se sabe, não é permitido nem mesmo ao chefe do Poder Executivo, que somente pode editar regulamentos para garantir a fiel execução das leis (artigo 84, inciso IV, da Constituição).
A digressão feita acima é relevante para este texto, pois na coluna de hoje nós vamos analisar a literalidade da Lei nº 14.740/2023, que instituiu o “programa de autorregularização incentivada”, permitindo que o contribuinte quite até 50% do principal de débitos federais, utilizando do prejuízo fiscal de IRPJ (e da base de cálculo negativa de CSLL) que tiver acumulado ao longo dos anos [3].
Tais benefícios, vale dizer, não são extensíveis a quaisquer tipos de tributos federais. Pelo contrário, eles somente podem ser aplicados aos créditos não constituídos até a data de publicação da Lei nº 14.470/2023 (ou seja, até 1º de dezembro de 2023); e aos créditos que forem constituídos entre a publicação da referida lei e o termo final do prazo de adesão àquele programa de autorregularização (ou seja, entre 1º de dezembro de 2023 e 1º de abril de 2024 [4]).
É o que se extrai, a propósito, da literalidade do artigo 2º, da Lei n.º 14.740/2023, in verbis:
“Art. 2º O sujeito passivo poderá aderir à autorregularização até 90 (noventa) dias após a regulamentação desta Lei, por meio da confissão e do pagamento ou parcelamento do valor integral dos tributos por ele confessados, acrescidos dos juros de que trata o § 1º do art. 3º desta Lei, com afastamento da incidência das multas de mora e de ofício.
§ 1º. O disposto no caput deste artigo aplica-se aos:
I – tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil que ainda não tenham sido constituídos até a data de publicação desta Lei, inclusive em relação aos quais já tenha sido iniciado procedimento de fiscalização; e
II – créditos tributários que venham a ser constituídos entre a data de publicação desta Lei e o termo final do prazo de adesão.”
Do dispositivo supratranscrito se extrai a conclusão de que apenas não podem ser incluídos no bojo da autorregularização incentivada (1) os tributos federais que já tenham sido constituídos antes de 1º de dezembro de 2023 e (2) os tributos federais que não forem constituídos entre aquela data de 1º de abril de 2024.
Especificamente para o “item ii” indicado acima, vale destacar que há muitos anos existe a Súmula nº 436/STJ, que expressamente diz que, em se tratando de tributos sujeitos ao lançamento por homologação, “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.
Isso significa dizer que de acordo com a literalidade da Lei nº 14.740/2023, conjugada com a literalidade da Súmula nº 460/STJ, podem ser incluídos no programa de “autorregularização incentivada” todos os tributos federais sujeitos ao lançamento por homologação, como é o caso do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins que tenham sido definitivamente constituídos, entre 1º de dezembro de 2023 e 1º de abril de 2024, por meio da entrega de DCTF.
Isso porque essa é a declaração acessória que, nos termos dos artigos 2º e 3º, da Instrução Normativa nº 2.005/2021, deve ser transmitida mensalmente pelos contribuintes, a fim de constituir, pela confissão, todos os créditos tributários federais que dela constarem. Logo, se o contribuinte entregar a sua DCTF, entre dezembro de 2023 e 1º abril de 2024, mas porventura deixar de quitar os tributos federais nela confessados (por insuficiência de recursos, por exemplo), estarão preenchidos todos os requisitos necessários para que o débito seja incluído no bojo do programa da “autorregularização incentivada”.
Não caberia, portanto, à Receita Federal, rejeitar o pedido de anistia/remissão do contribuinte sob qualquer outra justificativa que não estivesse prevista na literalidade da Lei nº 14.740/2023.
No entanto, não é isso que tende a ocorrer. Conforme o recente arquivo “Perguntas e Respostas” [5], divulgado pela Receita Federal em 9 de janeiro de 2024, o Fisco federal tornou pública a sua pretensão de desrespeitar a literalidade da Lei nº 14.740/2023, estabelecendo condições não previstas naquele ato normativo para que um débito possa ser incluído no programa da “autorregularização incentivada”.
Está claro, do arquivo divulgado pela Receita Federal, que a Receita Federal não pretende conceder os benefícios daquele programa aos débitos cujo vencimento original tenha ocorrido após 30/11/2023, mesmo que eles tenham sido constituídos entre 1º de dezembro de 2023 e 1º de abril de 2024.
Na prática, a Receita Federal está impedindo que a Lei nº 14.740/2023 produza todos os seus efeitos jurídicos ao restringir, de modo ilegal e inconstitucional, o sentido literal unívoco que se pode extrair do artigo 2º, § 1º, inc. II, daquela lei. Afinal, se a Lei nº 14.740/2023 não tomou a data de vencimento do tributo federal como parâmetro para a sua inclusão no programa de autorregularização incentivada (apenas a data da sua constituição), tampouco pode o Fisco federal fazê-lo para mitigar, ainda mais, as restritas hipóteses em que os benefícios daquela lei podem ser concedidos.
O entendimento recentemente exarado pela RFB trata de um nítido ato coator, o qual pretende restringir a aplicação da legislação tributária em sentido estrito, a despeito de todas as autoridades federais estarem plenamente vinculadas a ela (conforme artigo 3º e artigo 142 § único do CTN).
É recomendável, pois, que os contribuintes avaliem ajuizar medida judicial tendente a assegurar o seu direito de usufruir de forma plena dos benefícios da Lei nº 14.740/2023, já que o programa de autorregularização incentivada é uma excelente oportunidade para aqueles contribuintes, com prejuízo fiscal e base de cálculo negativa de CSLL, quitarem os seus tributos federais correntes, sem maiores dispêndios de caixa.
Tal medida é recomendável em caráter preventivo, pois ainda que os contribuintes consigam requerer a inclusão de débitos federais correntes (com vencimento posterior a 30/11/2023), ainda assim subsistirá o risco de indeferimento desse pedido, com base no entendimento equivocado manifestado pela Receita Federal, no arquivo “Perguntas e Respostas”, de 9 de janeiro de 2024. Logo, este é um tema que tende a gerar contencioso tributário, mesmo após se exaurir o prazo de adesão previsto na Lei nº 14.740/2023.
[1] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 480-490.
[2] ÁVILA, Humberto. Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 50 a 52.
[3] Art. 3º, § 2º, do Lei n.º 14.740/2023.
[4] A IN RFB n.º 2.168/2023, que regulamentou a Lei n.º 14.740/2023, foi publicada em 28 de dezembro de 2023. Daí a data limite estabelecida pelo legislador ser 01º de abril de 2024.
[5] Disponível em: . Acesso em 21/01/2024.
Matheus Mendes Nunes
Advogado de Tax no escritório William Freire Advogados, pós-graduando em Direito Tributário pelo Ibet e Graduando em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).