O IBS e o processo tributário: é hora de debater a respeito
Carlos Eduardo M. Gasperin, Fernanda Camano
Em 9/11/2023, a Proposta de Emenda Constitucional 45, que trata da reforma tributária no país, foi aprovada no Senado sem modificação da sistemática de tributação em sua essência: unificação dos tributos sobre o consumo, com a criação de um IVA-dual consubstanciado em um imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre estados, municípios e o Distrito Federal — o IBS —, calcado no princípio do destino e com administração e gestão centralizada, e uma contribuição sobre bens e serviços a cargo da União (CBS), gerida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Para além das muitas questões que o mérito da proposta desperta na sociedade brasileira, é preciso ter em mente que apesar de seu foco principal se relacionar às regras de ordenação da arrecadação tributária, haverá incontáveis impactos no processo tributário.
É verdade que os idealizadores da reforma sugerem, em um mundo ideal, que o contencioso tributário será reduzido, havendo até quem afirme que deixará de existir, ante as simplificações e unificações do sistema.
Como todo texto normativo sofre da inescapável indeterminação de seu conteúdo de significação, demandando interpretação que será feita por interesses antagônicos (fisco x contribuinte), especialmente no que dispõe sobre regimes diferenciados para a tributação de bens e serviços, há potencial gerador de litígio em torno dos tributos criados. Nesse contexto, uma série de dúvidas sobre a solução de eventuais conflitos estão escapando ao debate nacional.
De acordo com o último texto aprovado, o IBS será administrado e gerido por um Comitê Gestor (CGIBS), anteriormente nominado de Conselho Federativo, composto por representantes dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, ao qual caberá, dentre outras atribuições, regulamentadas em lei complementar, arrecadar o imposto, uniformizar a interpretação e a aplicação da respectiva legislação e decidir o contencioso administrativo.
Uma das primeiras questões processuais suscitadas a partir do texto original da Câmara era saber quem teria competência para lavrar autos de infração do IBS: o agora Comitê, ou as autoridades fiscais locais. O texto do Senado enfrentou esse tema assegurando a autonomia de fiscalização, lançamento, cobrança e representação administrativa ou judicial do imposto às administrações tributárias e procuradorias dos estados, municípios e do Distrito Federal. Contudo, vinculou essas atividades à coordenação do Comitê para que haja maior integração entre os entes federados.
Parece-nos que, apesar disso, o texto é insuficiente. É fato que os órgãos regionais e locais promoverão o lançamento do IBS (podendo o município lançar a parcela do estado e vice-versa), mas quem garantirá o contraditório ao contribuinte autuado? Ou seja, quem julgará impugnações e recursos administrativos? As estruturas municipais e estaduais, independentemente, ou o próprio Comitê, eleito como responsável por “decidir o contencioso administrativo” e coordenador das atuações dos órgãos fazendários locais? Ou, ainda, este órgão nacional terá apenas uma função uniformizadora de entendimento, servindo como uma espécie de “Câmara Superior” ou “Órgão Plenário” dos tribunais locais?
O mesmo dispositivo que garante a autonomia das administrações e procuradorias dos entes subnacionais também permite que haja delegação e compartilhamento de competências entre elas, tudo coordenado pelo Comitê. Não está claro o que isso significa.
Poderá a autoridade tributária de um Estado autuar seu contribuinte, mas cobrando parcela do IBS devido ao Estado de origem, em favor desse? Se sim, contra quem o contribuinte poderá se insurgir administrativa e judicialmente: contra a autoridade que autuou ou contra aquela para quem deve pagar? Além disso, nessa linha, poderá a procuradoria do estado/município de origem executar seu contribuinte cobrando tributo que é do estado de destino? Como ficam as competências processuais definidas na legislação?
A necessidade de respostas a essas perguntas são de impacto prático relevante, não só sobre como contribuintes e fiscos atuarão no processo administrativo fiscal, mas, também, quanto à eventual competência judicial para discussão de auto lavrado e confirmado no contencioso administrativo. Contra quem o autuado poderá impetrar mandado de segurança, por exemplo? Se a decisão final for dada pelo tribunal local ou regional, certamente o writ tramitará na Justiça estadual, mas e se prolatada pelo Comitê, será a Justiça Federal a competente? E no caso das execuções fiscais desses débitos? Teremos hipótese de procuradorias locais atuando ativamente na Justiça Federal em litisconsórcio ou em foro de outro estado?
As questões não param por aí.
Sendo o IBS um imposto único nacional, gerido por um Comitê centralizador, mas fiscalizado, cobrado e defendido pelas administrações locais e regionais, aos Tribunais de Justiça ou aos Tribunais Regionais Federais, a depender da definição de competência acima apontada, competirá emitir as ordens de pagamento de precatórios: aos estados, aos municípios ou à União? Ou será o Comitê, já que o texto garante “independência orçamentária” custeada com os próprios recursos do imposto arrecadado? Lembremos que não houve alteração no artigo 100, da Constituição, que cuida do regime dos precatórios.
A redação da PEC aprovada no Senado parece que também não deixa claro quem será competente para lançar mão de instrumentos de composição de litígios entre fisco e contribuintes, em um cenário de inadimplência fiscal. Quem será a autoridade responsável para conceder parcelamentos ou processar transações tributárias? As autoridades locais, agora autônomas para a cobrança, ou o Comitê Gestor, autoridade máxima da gestão e arrecadação do tributo?
O texto que vem do Senado, também, não encaminha a contento o problema de uniformização de entendimento entre IBS e CBS, já que aquele teria seus julgamentos em órgãos locais/regionais ou pelo Comitê, enquanto a contribuição seria de atribuição de tribunal administrativo de órbita federal.
Ao invés de ser assertivo, o texto aprovado preferiu usar de normas programáticas [1] ao apontar que o Comitê Gestor e os órgãos da administração tributária federal envidarão esforços para uniformizar os entendimentos, podendo implementar “soluções integradas para tanto”. Quais seriam esses esforços e soluções, não se sabe ao certo. Então, será possível que dois tributos que compartilham o mesmo fato gerador e a mesma base de cálculo tenham sua regra matriz de incidência interpretada de forma distinta por órgãos julgadores diversos, correndo-se o risco de termos um IVA-dual conflitante? Como fica o primado da uniformização e simplificação, que permeiam a reforma?
Todos os pontos aqui elencados e muitos outros que se retiram da prática processual tributária são consequências da alteração relevante que se está propondo no sistema tributário nacional, sem que a PEC-45 tenha sobre eles se atentado com a profundidade que o tema está a merecer.
Basta ver que, por meio de breve pesquisa aos termos utilizados na PEC-45, constata-se que o texto tem um dispositivo aludindo ao termo “processo administrativo fiscal” e dois referindo-se ao “contencioso administrativo”; em ambos os casos relegando à lei complementar a regulamentação, mas silente quanto às questões processuais antes apontadas.
Sabe-se que a PEC não é o veículo adequado para tratar de detalhes da jurisdição administrativa ou judicial, contudo, é sim instrumento legislativo próprio para dar as diretrizes sobre as competências fiscalizatória, arrecadatória, jurisdicional e financeira; o que nos parece deveria ser feito de forma mais clara pelo Congresso Nacional, sem prejuízo de tratamento mais cuidadoso na legislação complementar ou em outras normas ordinárias esparsas que sejam necessárias, como a legislação processual civil.
Tal atenção é necessária não só para conciliar o ordenamento processual à nova realidade material tributária que se pretende implementar no país, mas, principalmente, para que os ideais de simplificação e redução do contencioso tributário perseguidos pela reforma dos tributos sobre o consumo não sejam obstados pela ausência de ferramentas adequadas para a materialização de tais fins.
[1] Normas programáticas estabelecem programas para atuação do Fisco e dos contribuintes, sem veicular comando expresso no sentido de permitir, obrigar, proibir diretamente comportamentos.
Carlos Eduardo M. Gasperin, Fernanda Camano
Carlos Eduardo M. Gasperin
é advogado, doutorando em Direito Processual e Constitucional Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito Tributário pela FGV/Direito e pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.
Fernanda Camano
é advogada, pós-doutora pela Faculdade de Direito da USP, professora do curso de Especialização do Ibet, professora do curso de extensão Processo Tributário Analítico do Ibet e pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do Ibet.