Liberação mediante garantia: a apreensão do capitão Kirk

Leonardo Branco

Interessado no público de uma convenção brasileira de cultura pop que vai acontecer no fim do ano, um grupo de empresários encomenda um contêiner repleto de action figures. Os bonecos colecionáveis são variados. Para deleite dos trekkers, há miniaturas da clássica USS Enterprise NCC-1701 da classe Constitution (“No bloody A, B, C, or D!”, como resmungaria o engenheiro Scotty) e dos mais carismáticos personagens criados por Gene Roddenberry, como o vulcano senhor Spock e os humanos James Kirk, Uhura, dr. McCoy, Hikaru Sulu e Pavel Chekov.

Durante o curso do despacho de importação, a Receita Federal, de sua ponte de comando fiscal, percebe que o embarque ocorreu na Província de Guangdong na China antes da data de abertura formal da empresa importadora e, por este motivo, aciona o raio trator e captura para conferência aduaneira pelo canal vermelho o cargueiro que transporta o precioso carregamento da Federação Unida dos Planetas, repleto de representações de andorianos, klingons, romulanos e tellaritas.

O auditor fiscal que capitaneia o procedimento requer esclarecimentos, e os importadores relatam que, por questões burocráticas, o cadastro da pessoa jurídica foi superveniente ao carregamento, motivo pelo qual a empresa retificou a documentação já emitida com o visto do exportador, informações refletidas na declaração de importação.

Não convencida, a autoridade fiscalizadora entende que se trata de um caso de falsidade ideal com ocultação do real comprador, uma vez que parentes próximos dos sócios da empresa recém-constituída tiveram pessoas jurídicas desabilitadas justamente por conta de irregularidades em operações de importação. Após gritar “PetaQ!” no alto e bom idioma de Qo’noS, o auditor lavra auto de infração para apuração da aplicação da pena de perdimento e apreende a mercadoria até o fim do contencioso administrativo (artigo 774 do RA/2009).

Os importadores apresentam impugnação ao auto e rogam pela liberação das mercadorias mediante depósito integral do valor aduaneiro, mas não obtêm resposta em nenhuma frequência de comunicação. O silêncio tem por base a IN RFB nº 1.986/2020, segundo a qual o bem não será entregue ou desembaraçado após ciência do termo de apreensão, mesmo que eventual garantia já tenha sido prestada, hipótese na qual ela deverá ser levantada. O capitão Kirk é enjaulado no recinto alfandegado de Rura Penthe, sem qualquer perspectiva de liberdade.

A instrução normativa de 2020 inovou ao extremar a “retenção” (Capítulo II) da “apreensão” (Capítulo III), definindo regimes e efeitos jurídicos diversos a cada instituto. No caso de “indícios de potencial infração” punível com o perdimento, a mercadoria deve ser retida pelo prazo de 60 dias, prorrogável por igual período, com possibilidade de liberação mediante prestação de garantia. Por outro lado, o texto informa que, diante da “caracterização imediata e inequívoca” da infração, o bem deve ser apreendido, modalidade insuscetível de liberação.

Tanto a retenção como a apreensão são espécies de cautela com objetivo conservatório de garantir uma futura e incerta execução forçada, de um lado, e antecipatório de neutralizar os perigos da mora do devedor, de outro. Ambas as modalidades são ungidas com o óleo da precariedade: a retenção encontrará seu termo final no encerramento da fiscalização, convolando-se ou em liberação, uma vez evanescidas as suspeitas, ou em apreensão da mercadoria, uma vez confirmadas. A apreensão, por seu turno, é dependente da sobrevivência do auto que culminou com a inflição do perdimento.

Aspirar que o consequente da norma seja encontrado “de forma inequívoca e imediata” faz o leitor erguer, entre cético e incrédulo, a sobrancelha direita. Há um consenso doutrinário entre os administrativistas: a aplicação de sanções com base “verdade sabida”, ou seja, “(…) o conhecimento pessoal e direto da infração por parte de quem deva proceder à imposição da sanção, ou a notoriedade de determinado fato” [1] é incompatível com a exigência do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Se é assim, o único sentido possível de “inequívoco” é aquele modalizado pela subordinação restritiva “para a autoridade aduaneira que lavra o auto”, nada muito diferente, portanto, da definição de fato gerador para a legislação tributária, ou seja, a “situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”.

Se os dois institutos, retenção e apreensão, a partir de uma perspectiva funcional, são acautelatórios e estão submetidos a um sistema que garante o contraditório, tendo como uma rota de fuga possível, indistintamente, a liberação do bem no caso de não se comprovar a prática do tipo infracional, por que antes da lavratura do auto o ato regulamentar permite a liberação da mercadoria e depois não?

A resposta “porque a pena de perdimento restou configurada” é, além de insuficiente, incompatível com a exigência da lei aduaneira, que determina o desembaraço desde que “adotadas as indispensáveis cautelas fiscais” (§1º do artigo 51 do DL nº 37/1966). A condição de garantir o cumprimento da pena e prevenir a mora imposta pela lei, em um caso de decretação de perda de bem, resta plenamente satisfeita com o depósito do valor aduaneiro, pois a medida acautelatória deve ser prestada na exata proporção do consequente em disputa.

Por este motivo, caso esta seja a questão controversa, a decisão judicial pode determinar “o desembaraço da mercadoria mediante apresentação de fiança idônea ou depósito do valor das multas, despesas cambiais e pagamento dos tributos devidos” (artigo 165 do DL nº 37/1966).

Ao afirmar que a apreensão torna a mercadoria insuscetível de liberação mediante apresentação de garantia, a IN comete uma ilegalidade. É textual a lei ao determinar expressamente a existência de “cautelas e providências que a Autoridade Aduaneira poderia adotar na ocorrência de apreensão de mercadoria ou veículo sujeita a perdimento”, mencionando os casos em que se admite o depósito e quais as obrigações do depositário (§2º do artigo 151 do DL nº 37/1966). O instituto da apreensão, portanto, diferente do desígnio da IN que induz a uma (inexistente) impossibilidade ontológica, é, nos termos da lei, plenamente passível de liberação mediante prestação de cautela correspondente.

Assim como as diferentes incursões da Frota Estelar à zona neutra caracterizavam violações diretas ao Tratado de Organia na série clássica, a negativa de liberação da carga mediante prestação de garantia implica o descumprimento reiterado da Convenção de Quioto Revisada e do Acordo de Facilitação do Comércio. Enquanto no primeiro caso se obtém um conflito, força motriz da narrativa, no segundo o resultado é a perpetração de uma ilegalidade.

Para se dimensionar a antinomia, a restrição imposta pelas autoridades aduaneiras e pela IN nº 1.986/2020 desrespeita não apenas o DL nº 37/1966, mas também o Decreto nº 9.326/2018 (AFC/OMC) e o Decreto nº 10.276/2020 (CQR/OMA), e, ao fazê-lo, descumpre o artigo 27 da Convenção de Viena e as decisões do STF (como a ADI nº 1.480/DF-MC, de 04/09/1997).

O direito positivo brasileiro determina a obrigação da Administração de autorizar a entrega da mercadoria mediante a prestação das principais informações relativas à remessa acompanhada da “garantia destinada a assegurar a cobrança dos direitos e demais imposições exigíveis”, conforme Artigo 3.41 do anexo geral da CQR.

A persistência na apreensão diante da viabilização do adimplemento de obrigação aduaneira contraria textualmente também os parágrafos 3.2(b) e 3.4 do Artigo 7º do AFC: o país poderá exigir, como condição para a liberação, o pagamento ou a garantia das medidas de fronteira, e “(…) nos casos em que tenha sido identificada uma infração que exija a imposição de penalidades pecuniárias ou multas, a garantia poderá ser exigida para as penalidades e multas que possam ser impostas”.

Audaciosamente indo aonde nenhuma decisão jamais esteve, com o Resp nº 1.516.282/SC, sob a relatoria do ministro Gurgel de Faria, de 19/08/2016, o STJ firmou entendimento de não ser possível à RFB editar ato infralegal regulamentador de forma a ignorar, suprimir ou restringir as hipóteses de entrega das mercadorias importadas quando a legislação a condiciona à possibilidade de prestação de garantia “quando houver indícios de infração punível com a pena de perdimento“.

Tais acordos foram celebrados como uma adequação do Brasil ao benchmark aduaneiro internacional, pois as Administrações Aduaneiras perceberam, ao longo do tempo, que, do ponto de vista dos interesses do Estado, há maior efetividade ao se liberar o bem do que mantê-lo sob guarda da RFB, sem qualquer prejuízo ao potencial sancionatório-penal.

Enquanto o depósito integral correspondente ao valor aduaneiro do bem importado é atualizado, o bem apreendido, pelo contrário, não está protegido dos efeitos de sua depreciação, seja pelo tempo, pela corrosão inflacionária, pela defasagem tecnológica, ou pelos custos de armazenagem, sem contar a desvalorização dos produtos nos leilões disciplinados pela Portaria MF nº 282/2011, que regula os critérios e as condições para destinação de mercadorias objeto de pena de perdimento.

Além disso, é possível se argumentar que os valores depositados serão repassados pela CEF para a Conta Única do Tesouro Nacional (§2º do artigo 1º da Lei nº 9.703/1998 e art. 109 do RA/2009) e, portanto, ficarão à disposição da União independentemente de qualquer formalidade.

A liberação condicionada preserva a efetividade da aplicação da pena de perdimento, equivalência penal reconhecida pelo direito positivo ao dispor sobre a multa equivalente ao valor aduaneiro (§3º do artigo 23 do DL nº 1.455/1976), além de preservar a presunção de inocência no caso de se concluir se tratar de operação legítima, e cuja importância se reafirma diante dos inúmeros casos de acusação de dano ao erário revertidos pelo Carf e pelo Poder Judiciário.

O STJ reconheceu no AI-Resp nº 1.669.790/SC, sob a relatoria do ministro Mauro Campbell, acórdão de 03/05/2018 ser “(…) cabível a liberação das mercadorias importadas quando há prestação de caução em dinheiro, visto que a exigência da garantia é forma de preservar a efetividade da aplicação da pena de perdimento”. Cabe nova menção ao Resp nº 1.516.282/SC: “(…) não se vislumbra ilegalidade na decisão (…) ao assegurar o direito do importador à liberação cautelar das mercadorias importadas mediante apresentação de garantia”.

Se a liberação mediante depósito em moeda corrente é possível, a fiança bancária e o seguro em favor da União também devem sê-lo, porque a fase de retenção contempla essas formas acautelatórias (§4º do artigo 12 da IN RFB nº 1986/2020) e a legislação processual brasileira os equipara para fins de execução fiscal, onde se exercita o direito da Administração (inciso II do artigo 7º da Lei nº 6.830/1980).

No RE nº 1.090.591/SC, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio (Tema nº 1.042) o STF reconheceu a constitucionalidade da vinculação do despacho aduaneiro ao adimplemento dos valores devidos na importação. Segundo o acórdão, não constitui uma sanção política realizar a retenção da mercadoria até que o cumprimento das obrigações aduaneiras esteja plenamente assegurado.

Todo aquele que se dedicar a ler o voto e não cair na tentação de usar o texto do tema de repercussão geral em um salto de fé, cego às motivações determinantes, perceberá rapidamente que o termo “retenção” foi extremado de “apreensão” não nos termos da legislação aduaneira, em que pese a doutrina mencionada em nota de rodapé (isolada e deslocada do racional empregado pelo voto), mas unicamente para afastar o caso sob análise (retenção para o cumprimento dos requisitos do despacho de importação) daquele retratado pela Súmula 323 (apreensão como meio coercitivo para forçar o pagamento de tributos).

Uma vez impetrado o mandado de segurança, é correta a concessão da liminar para, diante da garantia do valor aduaneiro, proceder-se à liberação da mercadoria, salvo nos casos de importação proibida ou com licença de importação vedada ou suspensa, ou, ainda, àqueles bens que não tenham sido objeto de declaração de importação.

Neste momento, os sensores de longo alcance captam uma anomalia no subespaço. A singularidade é identificada como o artigo 1º da Lei nº 2.770/1956, um antigo dispositivo que não sobreviveu à reentrada na atmosfera do texto constitucional. Em suas placas se lê, sob a poeira, a inscrição de estar vedada a concessão da medida liminar nas ações e procedimentos judiciais de qualquer natureza que visem a obter liberação de mercadorias, bens ou coisas de procedência estrangeira.

O tradutor universal adequa o texto aos tempos modernos e, seja por conta da inafastabilidade da jurisdição, ou por superveniência da legislação posterior, é produzida a “interpretação conforme”: a vedação se restringe a bens apreendidos em decorrência de atividades ilícitas, como contrabando ou descaminho, não aplicável a mercadorias relacionadas a despachos de importação ou bagagem, como se dessume do Agravo nº 2005.04.01.046205-1, sob relatoria do desembargador Antonio Albino Ramos de Oliveira do TRF-4, publicado em 11/01/2006.

Por fim, é incabível a lavratura de auto acompanhado de termo de apreensão sem que se oportunize ao importador a possibilidade de apresentação de garantia. Isso porque um distinguishing deve ser feito em relação à Súmula Carf nº 46 (cujas profundas contradições intestinas foram explicitadas no Acórdão Carf nº 3401-003.896, sessão de 27/07/2017, de minha relatoria) segundo a qual o lançamento de ofício pode ser realizado sem prévia intimação ao sujeito passivo, nos casos em que o Fisco dispuser de elementos suficientes à constituição do “crédito tributário”.

Em primeiro lugar, porque sua aplicabilidade se restringe a obrigações tributárias, conforme todos os seus precedentes informadores (quatro de imposto de renda e dois de PIS) e, em segundo lugar, porque o procedimento de fiscalização de combate às fraudes somente pode ser instaurado mediante ciência ao interveniente fiscalizado (artigo 2º da IN RFB nº 1986/2020 e §1º do artigo 41 da IN SRF nº 680/2006).

Uma vez intimado, caso o importador manifeste interesse em apresentar garantia, seu pedido não pode ter como resposta a lavratura do auto que inviabiliza a liberação. Tampouco deve o Poder Judiciário permitir que se surpreenda com a apreensão aquele cuja carga foi parametrizada ao canal vermelho por falta de previsão específica, sobretudo nos casos em que se concluiu por infração punível com o perdimento, por ofensa à isonomia entre operadores em situação de equivalência.

Resgatado de sua prisão, James Kirk cancela o alerta vermelho e, sob ordens para levar a nau capitânia de volta ao estaleiro para ser enfim descomissionada, emula Peter Pan: “segunda estrela à direita, direto ao amanhecer” — a fronteira final.

[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de direito administrativo, São Paulo, SP, Brasil: Malheiros, 2010, p. 858.

Fonte: Conjur

Leonardo Branco

Sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax), doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional", e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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