Varejo deve ir à Justiça contra convênio sobre crédito de ICMS
Por Joice Bacelo — São Paulo
A briga entre Estados e empresas do varejo sobre o ICMS na transferência de mercadorias está longe de acabar. As companhias planejam uma nova leva de ações judiciais mesmo depois de terem vencido a discussão no Supremo Tribunal Federal (STF).
O motivo desse possível retorno ao Judiciário está no Convênio nº 174, publicado nesta semana pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). A norma regulamenta o uso dos créditos de ICMS no caso de mercadorias enviadas de um estabelecimento para o outro, do mesmo contribuinte, mas localizados em Estados diferentes.
Esse convênio, em tese, foi editado em cumprimento à decisão do STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49. Os ministros decidiram, em abril, que os Estados não poderão mais cobrar ICMS sobre essas operações a partir de 2024 e fixou prazo — até o fim deste ano — para a regulamentação do uso dos créditos.
O problema, segundo os advogados das empresas, é que a norma do Confaz — que deverá ser seguida pelos Estados — acabou restringindo a decisão do STF. Vem daí a possibilidade de judicialização.
A nova norma torna obrigatória a transferência dos créditos de ICMS gerados no Estado de origem para o Estado de destino da mercadoria. A lógica é a de que o crédito acompanha o produto.
Uma empresa do varejo, por exemplo, que tem estabelecimento em São Paulo, pagou ICMS ao comprar geladeiras de uma fabricante para revender ao consumidor final. Se enviar a mercadoria para um estabelecimento próprio, mas no Estado do Rio de Janeiro, o crédito gerado pelo ICMS pago em São Paulo deverá ser transferido para o Rio.
Essa sistemática impacta o pagamento do imposto. O regime do ICMS é não cumulativo. Isso quer dizer que o pagamento na etapa anterior, ao adquirir a mercadoria para revenda, serve como crédito para abater na etapa subsequente.
Sem poder fazer a gestão dos créditos — escolher se mantém na origem ou no destino — pode haver um desequilíbrio no fluxo de caixa. É que para algumas empresas não faz sentido transferir o crédito se, no Estado de destino, houver pouco ICMS a pagar e no de origem muito.
Nessas situações, segundo os advogados, vai sobrar crédito em um Estado e faltar em outro, obrigando a empresa a desembolsar mais, em dinheiro, nos pagamentos do imposto.
“Se não existe operação tributável pelo ICMS, deveria ser uma decisão do contribuinte manter o crédito no local de origem”
— Leo Lopes, advogado
Análise
“Da forma como o convênio foi publicado, com a transferência obrigatória, uma aparente boa notícia para os contribuintes, que foi a decisão do STF na ADC 49, na verdade é um tiro no pé”, avalia o advogado Luca Salvoni, do escritório Cascione.
Gabriel Baccarini, da mesma banca, chama a atenção que toda essa discussão em torno do ICMS — que levou à ADC 49 — foi motivada muito mais pela transferência dos créditos do que pela cobrança do imposto. “Porque, pela sistemática do imposto, o pagar quase não existe. O que incidir na transferência da mercadoria gera crédito para a etapa sequente. É como tirar de um bolso e colocar no outro”, diz.
A transferência dos créditos é considerada facultativa pelos advogados por conta de uma jurisprudência de quase três décadas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula nº 166 no ano de 1996. Essa norma — anterior à ADC 49 — diz que o deslocamento de mercadoria para outro estabelecimento do mesmo contribuinte não constitui fato gerador de ICMS.
Por ter efeito vinculante, toda empresa que ajuizava ação, conseguia decisão para não recolher o ICMS e, consequentemente, não transferir o crédito do Estado de origem para o Estado de destino da mercadoria. Resumindo: quem não queria transferir o crédito, entrava com ação, e quem queria não entrava.
“Havia, então, uma situação inicial pela transferência, com a súmula 166 ficou opcional e agora, com o convênio, volta a obrigação. Fizemos um círculo gigante, de mais de 25 anos, para voltar para o começo de tudo, mesmo tendo vencido nos tribunais”, frisa Salvoni.
Para o advogado Maurício Barros, do escritório Demarest, não há outra saída. “O contribuinte que tinha problemas vai ter que judicializar de novo se esse convênio prevalecer.”
Advogados de empresas, em geral, dizem “sobrar” argumentos para essas novas ações. “Se não existe operação tributável pelo ICMS, deveria ser uma decisão do contribuinte manter o crédito no local de origem”, sustenta Leo Lopes, do FAS Advogados.
Pesa contra o convênio, além disso, a forma prevista para operacionalizar a transferência. Será por meio de nota fiscal, com a indicação do valor no campo de destaque do ICMS. “Manda destacar um ICMS declarado inconstitucional. É um acinte”, enfatiza Carlos Eduardo Navarro, do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella.
Na visão dos especialistas, ainda, seria necessária uma lei complementar federal para tratar do tema. Destacam um projeto já aprovado no Senado e, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que define como facultativa a transferência dos créditos.
A regulamentação, da forma como foi feita, diz Guilherme Yamahaki, do Schneider Pugliese Advogados, favorece as empresas que estavam confortáveis com a sistemática de tributação do ICMS nas operações de transferência de mercadorias antes do julgamento da ADC 49.
“Entendemos como ponto positivo a manutenção dos benefícios fiscais concedidos pelo Estado de origem”, destaca. “Havia receio de que a não tributação nas transferências de mercadorias implicasse cancelamento ou diminuição dos benefícios fiscais que levam em conta o imposto devido na saída da mercadoria.”