Processo de aplicação administrativa da pena de perdimento: Here I go again!
Rosaldo Trevisan
O leitor já deve estar se acostumando às ecléticas trilhas sonoras recomendadas nesta coluna Território Aduaneiro, que vão do hard rock à música popular brasileira [1].
O fundo musical que sugerimos para acompanhar a coluna de hoje é um dos maiores clássicos da banda Whitesnake, composto pelo vocalista David Coverdale, em um momento de dificuldade, de confusão e busca por um novo caminho [2]. Embora a música tenha conteúdo relacionado ao fim de um romance, é frequentemente encarada — e assim o será aqui — como uma mensagem de inspiração para os desafios a serem enfrentados.
O complexo tema da evolução do rito processual de aplicação administrativa da pena de perdimento, no Brasil, a exemplo da música de fundo, também poderia servir de trilha para vários filmes [3]. O rito processual para a aplicação da “pena de perda” de mercadoria ou de veículo já constava no Decreto-Lei no 37/1966. No caso de fatos puníveis com a perda de mercadoria ou veículo (v.g., os relacionados nos artigos 104 e 105 do Decreto-Lei no 37/1966), a apreensão se estenderia até a decisão administrativa definitiva (conforme art. 131 do Decreto-Lei no 37/1966).
Com a reforma administrativa de 1967 (Decreto-Lei no 200/1967), e a sua implantação na Direção-Geral da Fazenda Nacional, foi criada a Secretaria da Receita Federal (Decreto-Lei no 63.659/1968), com estrutura na qual a Aduana já não era visível no desmembramento em Coordenações-Gerais (de Tributação, de Fiscalização e de Arrecadação) [4]. E sucedeu-se a isso um contencioso administrativo (Decreto no 70.235/1972) no qual a invisibilidade dos temas aduaneiros foi igualmente encampada, aparentemente por mera convicção de que estava compreendida nos temas tributários.
O Decreto no 70.235/1972, originalmente mero regulamento do Decreto-Lei no 822/1969, reproduz vários artigos do Decreto-Lei no 37/1966, como o referente a nulidades (artigo 119), e registra, em sua ementa, que dispõe sobre “o processo administrativo fiscal” (tomando de empréstimo a expressão usada no Decreto no 37/1966, que também adota como título do Capítulo I). Mas, em seu artigo 1o, o mesmo Decreto no 70.235/1972 afirma que “rege o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal” (sendo mais fiel a sua base legal, o Decreto-Lei no 822/1969).
Passava, assim, todo o contencioso administrativo de matéria tributária (nessa designação entendidas como incluídas as matérias de competência do extinto Conselho Superior de Tarifa: classificação, valor, contrabando “e quaisquer outras decorrentes de leis ou regulamentos aduaneiros” — terminologia usada no Decreto no 24.036/1934) a ser regido pelo Decreto no 70.235/1972.
Mas um tema especificamente aduaneiro logo ficaria de fora desse contexto: o referente a “perdimento de bens por danos causados ao erário”, para o qual a Emenda Constitucional no 1/1969, em seu artigo 153, §11, demandou a edição de norma de estatura legal, que veio a ser publicada somente na década seguinte: o Decreto-Lei no 1.455/1976 [5].
O referido Decreto-Lei no 1.455/1976 passou a tratar, assim, de uma segunda espécie de contencioso administrativo, específico para a área aduaneira: o referente à aplicação da pena de perdimento de mercadorias e veículos. E o rito adotado no artigo 27 do Decreto-Lei no 1.455/1976 foi bem diferente do estabelecido no Decreto no 70.235/1972, seja pelo prazo de impugnação de 20 dias, ou pelo julgamento em instância única [6].
A legislação aduaneira remeteu penalidades posteriores a um desses ritos. As multas por falta de recolhimento de direitos antidumping e compensatórios (artigo 7o, §5o, da Lei no 9.019/1995), v.g., acabaram submetidas ao rito do processo administrativo fiscal/tributário (Decreto no 70.235/1972). E o perdimento de moeda (Medida Provisória no 2.158-35/2001, artigo 89), por seu turno, utilizou a segunda espécie de contencioso administrativo aqui descrita (prevista no Decreto-Lei no 1.455/1976).
O rito em instância única presente no Decreto-Lei no 1.455/1976, reiteradamente reconhecido como constitucional em decisões judiciais, embora sempre debatido pela doutrina, foi objeto de várias propostas de alteração nos últimos anos (em mais versões do que as da música de fundo desta coluna [7]), e que se intensificaram após a adesão brasileira à Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA) [8], que estabeleceu, em seu Anexo Geral, Capítulo 10, disposições sobre o direito de recurso, cabendo destacar a norma 10.5: “Quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira”.
O Brasil é membro da CQR/OMA desde 05/09/2019, data de depósito de seu instrumento de ratificação, e deveria implementar as disposições do Anexo Geral, que não admite reservas, até 05/12/2022 (no caso de normas), conforme artigo 13 do Corpo da Convenção, salvo em caso de prorrogação (por um ano) solicitada ao Comitê de Gestão da CQR/OMA [9].
Na legislação aduaneira brasileira existem, hoje, 41 condutas puníveis com o perdimento, sendo 33 de perdimento da mercadoria, 7 de perdimento do veículo transportador e 1 de perdimento de moeda [10]. A todas elas se aplica o rito previsto no artigo 27 do Decreto-Lei no 1.455/1976, aqui já apresentado.
O leitor atento (assim como a própria Administração Pública) percebeu que esse rito administrativo de instância única é impactado pela norma 10.5 da CQR/OMA [11]. E, buscando compatibilizar a legislação brasileira ao tratado internacional, foi apresentado ao Congresso Nacional, em 28/04/2023, o Projeto de Lei no 2.249/2023, que altera o Decreto-Lei no 1.455/1976, a Lei no 10.833/2003 e a Lei no 14.286/2021, para “dispor sobre a aplicação e o julgamento da pena de perdimento de mercadoria, veículo e moeda”.
O Projeto, já aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, seguiu para sanção presidencial em 04/08/2023, onde se encontrava até a redação desta coluna. De seu texto, percebe-se que a disciplina processual referente ao perdimento (de mercadoria, veículo transportador e moeda) é alterada, nitidamente com o objetivo de adaptação à CQR/OMA.
Pela redação final, antes da sanção presidencial: a) o prazo de impugnação é mantido em 20 dias da ciência da autuação; b) a intimação ao autuado passa a ser efetuada de forma pessoal, por via postal, por meio eletrônico, ou por edital, sem ordem de preferência; c) passa a ser possível a destinação de mercadorias e veículos após declaração de revelia ou decisão de primeira instância desfavorável ao autuado; e d) passa a existir duplo grau de jurisdição administrativa para o contencioso referente a perdimento de mercadoria, veículo e moeda, em rito e conforme competências a serem ainda definidos em ato do ministro da Fazenda.
As medidas tratadas no Projeto de Lei no 2.249/2023, conforme dispõe seu artigo 4o, não serão aplicadas aos processos referentes a autos de infração formalizados até a entrada em vigor da nova disposição legal. Tais autos pretéritos serão apreciados e julgados na sistemática anterior, em instância única.
Em relação ao tratamento brasileiro para o perdimento de mercadoria, veículo transportador e moeda, ainda há que se aguardar, assim, a edição de portaria ministerial para que esclareça efetivamente quais serão os órgãos julgadores de primeira e segunda instância.
Para dar efetividade e celeridade a tal espécie de contencioso, tendo em conta que as mercadorias estarão apreendidas, ao menos até a decisão de primeira instância, o que pode comprometer a capacidade de armazenamento dos depósitos nas unidades aduaneiras, ou a própria integridade das mercadorias, é recomendável que as instâncias de julgamento tenham estrutura e procedimentos substancialmente mais céleres do que os que encontramos, por exemplo, hoje, no rito do Decreto no 70.235/1972 [11].
Não sabemos ao certo como será a regulação infralegal do “novo processo de perdimento”, e nem se solucionará totalmente as inquietudes hoje candentes, mas conhecemos a realidade atual de forma suficiente para saber onde já estivemos e o que não queremos mais. Coverdale estava certo:
“I don’t know where I’m going
But I sure know where I’ve been
Hanging on the promises in songs of yesterday
And I’ve made up my mind
I ain’t wasting no more time
Here I go again”
[1] Por exemplo, em “Um guia na selva aduaneira: o papel do despachante aduaneiro”, ao som de Welcome to the Jungle (https://www.conjur.com.br/2022-out-25/territorio-aduaneiro-guia-selva-aduaneira-papel-despachante-aduaneiro), em Direito Aduaneiro e “revis㔑: “o pop não poupa ninguém!”, ao som de O Papa é Pop (https://www.conjur.com.br/2022-nov-08/territorio-aduaneiro-direito-aduaneiro-revisao-pop-nao-poupa-ninguem), e em “Amanhã vai ser outro dia: o Direito Aduaneiro Sancionador”, ao som de Apesar de você (https://www.conjur.com.br/2022-set-27/territorio-aduaneiro-amanha-outro-dia-direito-aduaneiro-sancionador).
[2] A música Here I go again documenta o fim do primeiro casamento de Coverdale com Julia Borkowski, e foi escrita por Coverdale, em Portugal, em 1981, com a colaboração do ex-guitarrista do Whitesnake, Bernie Marsden, fazendo parte do álbum Saints ‘n’ Sinners, de 1982. A música fez tanto sucesso que foi reeditada em versão hard rock no ano de 1987, no álbum Whitsnake, sendo número um na Billboard Hot 100 naquele mesmo ano, além de ser considerada a 17ª maior canção os anos 1980 pela VH1. A música aparece como 9ª em Top 10 de listas de melhor Metal Song de todos os tempos (v.g., na enquete de leitores da Rolling Stone, em 2012), e entre as 21 melhores Power Ballads de todos os tempos (Daily Telegraph) – Disponível em: https://www.songfacts.com/facts/whitesnake/here-i-go-again. Entre as diversas versões disponíveis, recomendo como pano de fundo para esta coluna a de 1987, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WyF8RHM1OCg.
[3] De fato, a música Here I go again esteve pelo menos na trilha de 5 filmes: Man Up (2015); Rock Of Ages (2012); Adventureland (2009); Old School (2003); e I Still Know What You Did Last Summer (1998).
[4] EZEQUIEL, Márcio da Silva. Receita Federal:50 anos (1968-2018). Brasília: Receita Federal, 2018, p. 148-150. A invisibilidade da Aduana nos dois primeiros escalões da Secretaria da Receita Federal (embora a Aduana estivesse presente em subdesmembramentos da fiscalização e da tributação) perdurou até 1985, quando foi criada a Coordenação-Geral de Administração Aduaneira – (TREVISAN, Rosaldo. Direito Aduaneiro e Direito Tributário – Distinções Básicas. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas atuais de Direito Aduaneiro. São Paulo: Lex, 2008, p. 42-43.
[5] Sobre o processo legislativo, inclusive constitucional, referente à pena de perdimento, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo; FAZOLO, Diogo Bianchi; VALLE, Maurício Dalri Timm do. Considerações sobre o Perdimento Aduaneiro de Bens na Legislação Brasileira. Revista Direito Tributário Atual, nº 51, 4.quad. 2022, p. 174-196.
[6] A Lei no 10.833/2003 (artigo 76) cria ainda uma terceira espécie de contencioso administrativo, específico para matéria aduaneira, referente a sanções administrativas aplicadas a intervenientes em operações de comércio exterior. Essa terceira espécie herda, v.g., o prazo de impugnação de 20 dias do Decreto-Lei no 1.455/1976, embora preveja duplo grau de jurisdição.
[7] O Whitesnake gravou ao menos quatro versões oficiais da música: a de 1982 e a de 1987, já citadas aqui, uma versão radio-mix, ainda em 1987, e uma acústica em 1997.
[8] A Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), em vigor internacional desde 03/02/2006, conta com 134 membros. Sobre a CQR/OMA, remete-se a: BASALDÚA. Ricardo Xavier. El Convenio de Kyoto Revisado: Antecedentes y Principios Aduaneros Involucrados. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 81-120; e MORINI, Cristiano. A Convenção de Quioto Revisada e a Modernização da Administração Aduaneira. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Lex, 2015, p. 163-198.
[9] No Brasil, o texto da CQR/OMA foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 56, de 18/06/2019, e promulgado pelo Decreto n. 10.276, de 13/03/2020. A CQR entrou em vigor para o Brasil em 05/12/2019, conforme artigo 18.2 do Corpo da Convenção, e, portanto, as normas do Anexo Geral deverão ser aplicadas no Brasil em 36 meses a partir de tal data (artigo 13.1). Antes de esgotado tal prazo, poderá ainda ser solicitada ao Comitê de Gestão da CQR uma prorrogação, que será concedida apenas em circunstâncias excepcionais, e por prazo máximo de um ano (artigo 13.4). Como informado no sítio web da OMA, a prorrogação solicitada pelo Brasil, referente ao Capítulo 10 do Anexo Geral, foi autorizada em março de 2023. Disponível em: https://www.wcoomd.org/en/media/newsroom/2023/march/the-rkc-mc-kicks-off-discussion-on-the-draft-revisions-to-the-rkc-guidelines.aspx.
[10] Para uma visão integral do universo infrações e penalidades aduaneiras, no Brasil, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630.
[11] Recordo que a incompatibilidade do rito brasileiro de instância única à CQR/OMA não é plena, pois a própria Convenção, no artigo 3o de seu Corpo, estabelece que as disposições “…não constituem obstáculo à aplicação da legislação nacional no que se refere a proibições ou restrições aplicáveis a mercadorias sujeitas a controle aduaneiro”. Portanto, caso o perdimento se referisse, v.g., a mercadorias de importação/exportação proibida ou restrita, não haveria a necessidade de observância do Anexo Geral da CQR/OMA. Tal disposição, no entanto, parece não ter sido levada em conta pelo Projeto de Lei no 2.249/2023, que tem por âmbito de aplicação todas as hipóteses de perdimento.
[12] De 2017 a 2020, o tempo médio de julgamento nas DRJ variou de 32,4 meses a 30,8 meses, mantendo-se sempre acima de 30 meses (aproximadamente 900 dias). E, no Carf, variou de 43,7 meses a 42,3 meses, mantendo-se sempre acima de 40 meses (aproximadamente 1200 dias), conforme Serpa, Sandro de Vargas. Uma análise econômica do contencioso tributário brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília (UnB), 2021, p. 29. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/42310/1/2021_SandrodeVargasSerpa.pdf. Em julho de 2023, o tempo médio de julgamento nas turmas ordinárias do Carf era de 1307 dias (Carf. Dados Gerenciais do Carf. Jul/2023. Disponível em: Dados Abertos — Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (fazenda.gov.br). Tais prazos médios, que, em sua soma, excedem seis anos, seriam flagrantemente incompatíveis com a celeridade exigida para o rito de perdimento.
Rosaldo Trevisan
Doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da Receita Federal, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).