Impacto da reforma tributária na advocacia: visão propositiva
Melina Rocha, Leonardo Alvim, Vanessa Rahal Canado, Eduardo Fleury, Maria Carolina Gontijo, Breno Vasconcelos
A aprovação da reforma da tributação do consumo (PEC 45/19) na Câmara dos Deputados, na madrugada de 6 para 7 de julho, trouxe uma grande reação no debate público, tanto com avaliações amplamente positivas acerca dos potenciais impactos econômicos como também com críticas e preocupações com relação ao texto aprovado.
O debate público é bem vindo e parte essencial do processo democrático. Por isso, gostaríamos de apresentar considerações sobre os efeitos práticos da reforma sobre o setor da advocacia, do qual todos nós, subscritores, fazemos parte, com atuação atual ou pretérita, no setor público ou privado.
Neutralidade tributária do IVA
Para a avaliação do impacto do Imposto sobre Valor Adicionado [1] no setor da advocacia, é preciso se considerar que o IVA tem como um dos seus pressupostos interferir o mínimo possível no funcionamento da atividade econômica. Ele faz isso permitindo o crédito sobre todas as aquisições em que houve o pagamento do IVA [2], seguido da compensação com débitos do imposto cobrado nas operações de venda de bens ou prestação de serviços. Na ausência de tais débitos, o crédito é ressarcido em dinheiro, com agilidade.
Essa mecânica de crédito e débito visa atender ao princípio da neutralidade tributária — o qual consta expressamente da redação do inciso VIII do artigo 156-A da Constituição, na PEC. O empresário será livre para tomar as suas decisões, sem que o desenho da tributação do consumo interfira em suas escolhas. O efeito prático é a desoneração das operações no meio da cadeia, pois qualquer IVA pago é devolvido na forma de créditos.
Conforme se demonstrará a seguir, a maior parte dos serviços de escritórios e advogados que estão fora do Simples são prestados a empresas e, neste caso, tanto os escritórios quanto as empresas serão beneficiados com a reforma. Isso porque as empresas que contratam serviços advocatícios passarão a tomar crédito dos tributos incidentes sobre os serviços, o que hoje não ocorre. Além disso, os escritórios e advogados igualmente terão diminuição de custos com a possibilidade de creditamento total dos tributos incidentes sobre suas despesas, tais como locação do imóvel, softwares de gestão, computadores, energia elétrica e serviços de telecomunicação, por exemplo.
Prestação de serviços advocatícios para empresas
Vamos pensar na situação de uma empresa que requeira expertise jurídica. Esta empresa pode ser de qualquer setor – infraestrutura, serviços financeiros, indústria, tecnologia, imobiliária, meios de pagamento etc. — e efetua vendas a consumidores finais. Ela tem duas opções:
a) formar um departamento jurídico interno;
b) contratar um escritório de advocacia de médio ou grande porte;
O IVA não impactará essa decisão porque:
a) ao usar serviços internos, a empresa arcará com gastos com a folha de pagamentos, que não estarão sujeitos ao IVA e por isso não gerarão crédito de IVA;
b) ao contratar serviços externos de escritórios no lucro real ou presumido, a empresa pagará IVA (suponhamos, a uma alíquota de 25%) sobre o preço dos serviços contratados e terá direito a um crédito no exato montante de IVA pago.
Em quaisquer das opções acima o efeito final para a empresa tomadora dos serviços é o mesmo: pagará zero de IVA na aquisição de serviços advocatícios. Caso haja incidência de qualquer alíquota de IVA sobre os serviços advocatícios tomados, a empresa terá direito a crédito no exato montante do imposto cobrado sobre os serviços, de modo a suportar zero de IVA.
Se incidir R$ 25, terá R$ 25 de crédito, de modo que R$ 25 – R$25 = 0 (opção “b”); se não incidir IVA, não terá crédito (opção “a”). O crédito é uma devolução do IVA no exato montante que foi pago pela empresa na tomada de serviços advocatícios. É indiferente se os serviços são internos ou externos.
Com relação ao IVA incidente nas operações de venda de bens ou prestação de serviços pela empresa (cliente do escritório), não é ela que arca com este imposto, mas os seus consumidores finais. Os débitos de IVA são suportados pelos consumidores finais dos produtos e serviços da empresa e acrescidos ao preço cobrado por ela. A empresa somente coleta o valor dos adquirentes e, após deduzir os créditos do IVA incidente nas suas aquisições, recolhe a diferença aos cofres públicos. Se ela pagou R$ 25 de IVA pelos serviços advocatícios, vai descontar R$ 25; se não pagou nada, não vai descontar nada.
Nesta lógica, os créditos devem ser pensados como reembolso do que foi pago na aquisição de serviços e, em razão disso, o preço de venda que a empresa pratica com os consumidores finais e o valor correspondente ao débito do IVA não mudam a depender de como ela estruturou a sua contratação de serviços jurídicos. Considerando que os créditos equivalem exatamente ao IVA pago nas suas aquisições, qualquer que seja, o saldo final das entradas e saídas de caixa da empresa, em ambas as possibilidades acima mencionadas, será rigorosamente o mesmo.
Caso a empresa não tenha débito de IVA porque não tem saída tributada (por exemplo, está em fase de investimentos intensivos em capital ou é uma empresa exportadora), o IVA pago nas suas aquisições de insumos, máquinas, equipamentos e restante do Capex gerará um crédito para a empresa, que, na ausência de débitos suficientes de IVA em operações de saída, será ressarcido em dinheiro, integral e imediatamente [3].
O fornecimento de serviços advocatícios para a empresa nessa situação, apesar de estar sujeito ao IVA, gerará um crédito que será ressarcido em dinheiro para ela. Nessa situação, o desembolso de caixa de R$ 25 no meio da cadeia é temporário. A empresa paga, mas recupera integralmente. O efeito prático é o valor do dinheiro no tempo entre a data do pagamento do IVA na aquisição e da sua devolução. Por isso, esse prazo precisa ser o menor possível (como 60 dias ou, idealmente, menos).
IVA elimina cumulatividade na contratação de serviços e diminui os custos para empresas contratantes
Já vimos, portanto, que o IVA é neutro sob a perspectiva da escolha do empresário entre se organizar internamente para obter a expertise jurídica que necessita ou contratar serviços externos. Como o crédito é calculado pelo exato montante pago do IVA na cadeia e como o débito de IVA da empresa não muda, tanto faz se há crédito zero, R$ 25 ou um valor menor, pois só será devolvido o que a empresa desembolsou.
Em virtude da neutralidade do IVA, há que se considerar também que o custo das empresas na contratação de serviços de terceiros, em relação ao modelo que temos hoje, tende a diminuir. Hoje, quando contratam serviços advocatícios, as empresas têm dificuldade para se creditar de PIS/Cofins. Pela lei, o crédito só está disponível para as empresas no regime não-cumulativo e depende de uma análise subjetiva se aquele serviço é um insumo para a empresa, ponderando-se o risco de questionamento da autoridade fiscal. Para os serviços jurídicos, geralmente não há crédito, porque são enquadrados genericamente na categoria de “back-office”.
Além do PIS/Cofins, os escritórios de advocacia também recolhem ISS pelo regime uniprofissional, em que o imposto é cobrado em um valor fixo por advogado. Por ser cumulativo, o valor de ISS não é recuperado pelos contratantes dos serviços de advocacia e é suportado como custo da atividade. O regime de ISS para advogados independe do valor cobrado pelos serviços e, por isso, é um sistema claramente regressivo porque quanto maior a receita por advogado, menor o valor de ISS recolhido.
O IVA vai trazer uma economia para a empresa ao permitir um crédito ao qual antes ela não tinha direito, além de acabar com problemas de determinação sobre o que gera crédito e os riscos de contencioso. Tanto o PIS/Cofins quanto o ISS deixarão de ser um custo da operação, abrindo a possibilidade para as empresas incorporarem esta diferença na sua margem ou reduzirem o preço ao consumidor final. Por isso, não é correto se comparar as alíquotas nominais de PIS/Cofins e ISS aplicadas hoje com a alíquota do futuro IVA para fins de determinação dos impactos da reforma para os escritórios de advocacia.
Para que essa análise seja realista é preciso também se considerar todo o impacto da eliminação dos resíduos tributários de toda a cadeia anterior e da diminuição de custos ligados à apuração dos impostos, insegurança jurídica (discussões sobre o que gera e o que não gera crédito), além do contencioso a que as empresas estão hoje sujeitas.
Escritórios de advocacia não serão prejudicados por terem poucos créditos de IVA
Outra afirmação comum no debate dos impactos da Reforma sobre os advogados é a de que “a categoria seria prejudicada por não ter muitos créditos de IVA”. Conforme ressaltamos acima, o crédito do IVA é uma mera devolução do tributo que incidiu e foi pago nas etapas anteriores da cadeia. Caso uma indústria, por exemplo, apure um montante significativo de crédito, isto não significa que ela é beneficiada pelo sistema do IVA; pelo contrário, significa que teve que pagar um montante expressivo de tributo nos seus insumos e o crédito só representa a devolução do tributo pago nas suas aquisições.
Da mesma forma, se um escritório de advocacia tem pouco insumo e pouco crédito, significa que teve que suportar um valor baixo de tributo para exercer a sua atividade e, portanto, terá uma devolução menor. O crédito diminuirá o valor a recolher ao ser deduzido do débito de IVA (imposto incidente na saída), mas isso ocorre só porque foi anteriormente suportado pelo escritório e está sendo devolvido em forma de crédito. Lembrando que o tributo de saída é pago pelo adquirente dos serviços advocatícios (e não pelos advogados e escritórios).
O IVA não incentivará a pejotização
Outro argumento recorrente no debate é o de que o IVA vai incentivar a terceirização e a pejotização, porque as empresas teriam um incentivo para contratar pessoas jurídicas prestadoras de serviços para “gerarem mais crédito de IVA”.
Conforme já explicado, não é possível a criação de créditos de IVA sem o correspondente pagamento anterior. Crédito é IVA pago pela empresa ao seu fornecedor que é devolvido. Se a empresa optar por terceirizar seus funcionários por meio da contratação de pessoas jurídicas, terá que pagar IVA sobre estes serviços e depois receber de volta este IVA pago na forma de crédito. Novamente, o resultado final (IVA incidente nas aquisições — crédito de IVA) é igual a zero, pois não se cria crédito sem incidência e pagamento anterior [4].
Escritórios que prestam serviços para pessoas físicas
O impacto do IVA em relação aos serviços prestados às pessoas físicas por escritórios que estão no Simples será bastante reduzido, podendo inclusive haver redução dos custos, preservando os pequenos e médios escritórios. De acordo com a redação da PEC 45/19 aprovada na Câmara, os optantes do Simples poderão continuar apurando o IBS e a CBS pelo regime simplificado e, neste caso, a situação ainda melhora, pois poderão transferir crédito no montante dos tributos apurado pelo Simples para as empresas tomadoras do serviço.
Os escritórios no Simples poderão ainda optar pela apuração de IBS e CBS conforme o regime normal de créditos e débitos, hipótese na qual poderão tomar crédito dos tributos incidentes sobre suas aquisições e transferir crédito pela alíquota cheia aos seus tomadores. Com esta possibilidade, os escritórios de advocacia podem calcular e avaliar qual opção será mais benéfica para o seu caso específico.
Restaria, então, um número muito reduzido de situações em que a prestação de serviços é realizada a consumidor final por escritórios de advocacia fora do Simples, ou seja, que têm um faturamento anual acima de R$ 4,8 milhões anuais. Essa situação, de fato, provavelmente estará sujeita a impacto na carga tributária, a ser suportado pelo cliente, mas, no agregado, os escritórios serão beneficiados pois a redução de custos nos serviços prestados para empresas e em razão do creditamento dos tributos das etapas anteriores mais que compensam eventuais efeitos de aumento dos serviços prestados para pessoas físicas.
Novamente, para calcular o impacto nessa situação específica, não basta comparar alíquota nominal dos atuais tributos com alíquota nominal do IVA. É necessário considerar que os tributos hoje incidentes em todos os gastos do escritório são custos que se incorporam ao preço dos serviços. Com o creditamento pleno, estes tributos deixam de ser custo e serão devolvidos ao escritório, na forma de créditos, o que possibilita uma diminuição do preço praticado às pessoas físicas.
Por exemplo, o escritório se creditará sobre a despesa de locação do imóvel, muitas vezes o segundo maior custo dos escritórios, hoje não creditado no regime cumulativo de PIS/Cofins, de todo o tributo incidente sobre equipamentos, como computadores, softwares e impressoras, além de despesas com energia elétrica e serviços de telefonia e internet. Com isso, os preços dos serviços praticados a pessoas físicas podem ser reduzidos, mitigando o impacto da incidência de uma alíquota maior.
Esse efeito, novamente, somente na situação específica de escritório fora do Simples prestando serviço para pessoa física — decorre do inescapável efeito distributivo da reforma tributária entre pessoas e setores. No sistema atual, há bens e serviços — inclusive essenciais — com uma oneração muito maior do que os serviços advocatícios. Além disso, como a reforma tributária manterá a carga tributária atual agregada sobre consumo, qualquer redução na tributação de um bem ou serviço específico será compensada pelo aumento da tributação dos demais bens e serviços, de forma a manter a tributação total que os cidadãos brasileiros pagam hoje.
Por fim, também há uma questão relativa a contratos antigos (como o patrocínio de ações judiciais, que se estendem por longo prazo, e têm honorários de êxito contratados), que nem sempre preveem que os impostos incidentes serão adicionados ao preço dos serviços. Com a reforma, o escritório fora do Simples deverá aplicar o IVA sobre os valores cobrados aos clientes — tanto empresas como pessoas físicas. Economicamente, o escritório terá que ajustar o valor contratado (a base de cálculo do IVA) de modo a excluir deste valor os antigos tributos — PIS/Cofins/ISS — embutidos no preço e, idealmente, também os tributos incidentes sobre os custos, que passarão a gerar crédito ao escritório.
Em tese, a base do IVA, (preço dos serviços) deveria diminuir com a exclusão dos tributos sobre os custos, que passarão a gerar crédito, e essa diminuição do preço tende a compensar, ao menos em parte, os efeitos da incidência da alíquota cheia do IVA às pessoas físicas. Na prática, sabemos que as renegociações dos valores já contratados poderão ser complicadas, em especial quando se estiver tratando com cliente pessoa física, mas é o certo a ser feito e a PEC 45/19 poderia eventualmente prever o repasse automático dos novos tributos para que os escritórios possam cobrar dos seus clientes.
Para concluir, uma visão propositiva
Cada um de nós deve refletir e avaliar, de modo republicano, a reforma tributária como um todo e seus efeitos para a coletividade além do impacto para cada setor em particular.
Na advocacia, para os serviços prestados no meio da cadeia, a reforma será positiva e na verdade diminuirá os custos tanto para o tomador dos serviços quanto para os próprios escritórios. Para os escritórios no Simples, nada mudará. E para os escritórios fora do Simples que prestam serviços a pessoa física, é preciso calcular corretamente qual será o impacto na carga tributária e seu potencial impacto no preço, considerando não apenas a diferença entre as alíquotas nominais, mas também que a nova base de cálculo será menor que a anterior, em razão da eliminação dos resíduos tributários na cadeia.
Em última instância, precisamos refletir, de forma mais ampla, sobre qual é o desenho de sistema tributário que queremos para o nosso País e qual é o impacto de eventuais regimes específicos e exceções no desenho final deste modelo.
[1] Para fins didáticos, utilizamos a designação do IVA, o qual será composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em nível federal, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), em nível subnacional, ambos com os mesmos fatos geradores, bases de cálculo, direitos de crédito e regimes de tributação, dentre outras características. Todos os nossos comentários aplicam-se igualmente à CBS e ao IBS.
[2] Ressalvados os bens e serviços destinados ao uso e consumo pessoal de sócios, empregados ou diretores.
[3] Hoje, os créditos sobre Capex são gerados com base no prazo de depreciação ou em prazos regulados pela legislação de PIS/Cofins e ICMS, como em quatro anos (1/48 avos por mês).
[4] Curiosamente, são as regras atuais que geram esse incentivo. Empresas sujeitas ao PIS/Cofins não-cumulativo podem tomar crédito na aquisição de serviços de prestadoras optantes pelo Simples Nacional, conforme ratificado pela RFB no ADI nº 15/2007. Ou seja, atendidas determinadas condições explicadas acima, gera-se um crédito de 9,25% sobre a nota emitida, mas o PIS/Cofins efetivamente pago pela empresa prestadora optante do Simples foi de, no máximo, 2,25%.
Melina Rocha, Leonardo Alvim, Vanessa Rahal Canado, Eduardo Fleury, Maria Carolina Gontijo, Breno Vasconcelos
Melina Rocha é consultora internacional, especialista em IVA e diretora de cursos na York University.
Leonardo Alvim é procurador da Fazenda Nacional, assessor do advogado-geral da União para questões tributárias e pesquisador do Insper.
Vanessa Rahal Canado é coordenadora do Núcleo de Tributação do Insper.
Eduardo Fleury é economista, advogado tributarista, sócio do FCR Law e consultor do Banco Mundial.
Maria Carolina Gontijo é advogada, sócia da Detax Consultoria Estratégica, professora e palestrante.
Breno Vasconcelos é advogado, doutorando em Direito e Desenvolvimento na Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV e do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper.