A Receita Federal e o licenciamento de software de não residente
Sergio André Rocha
Nesta terça-feira (4/7) participo de um webinar organizado pelo grupo Mulheres no Tributário, com a ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), cujo tema central será a recente posição da Receita Federal sobre a tributação da licença de software junto a não residente. Divido a tela com as amigas Ana Cláudia Utumi, Camila Tapias e Doris Canen. Aproveitei a preparação deste encontro para escrever a coluna desta segunda-feira.
Os aspectos tributários relacionados à licença de software são diversos. Desta forma, é importante destacarmos desde já que o foco deste artigo será a interpretação formalizada na Solução de Consulta Cosit nº 107, de 6 de junho de 2023 (SC 107).
Em breve síntese, a SC 107 tratou de situação onde a pessoa jurídica consulente informou às autoridades fiscais ser uma fabricante de notebooks, celulares e smartphones, sendo que, no curso regular de suas atividades, contrata, de fornecedores localizados no exterior, licenças e atualizações de programas de computador não customizados.
Além da licença de software, informou a empresa consulente que o fornecedor não residente também prestava alguns serviços de suporte técnico, os quais não tinham custo especificamente discriminado no contrato de licença do programa de computador.
Após apresentar a descrição dos fatos objeto da consulta, a consulente manifestou sua posição no sentido da não incidência, sobre os pagamentos, créditos, empregos, entregas e remessas para o exterior em decorrência da licença e dos serviços conexos, do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), do PIS-Importação, da Cofins-Importação e da Cide-Remessas.
Passando para a análise da posição da Cosit, as autoridades fiscais ressaltaram, logo no início, que sua interpretação seria apresentada considerando as especificidades da legislação de cada um desses tributos, o que, de fato, é o que se impõe dado que cada um deles possui sua própria regra de incidência.
Em relação ao IRRF, a Cosit reconheceu que, em algumas oportunidades, tinha se manifestado pela sua não incidência sobre o licenciamento de software não customizado transferido via download, partindo do entendimento de que esta seria uma operação com bens e, portanto, fora do âmbito de incidência do IRRF. Nada obstante, as autoridades fiscais apontaram que este entendimento havia sido alterado desde a Solução de Consulta Cosit nº 75, de 31 de março de 2023 (SC 75).
Com efeito, na SC 75 a Cosit firmou o entendimento no sentido de que os “os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residente ou domiciliado no exterior, pelo usuário final, para fins de aquisição ou renovação de licença de uso de software, independentemente de customização ou do meio empregado na entrega, caracterizam royalties e estão sujeitos à incidência de Imposto sobre a Renda na Fonte (IRRF), em regra, sob a alíquota de 15%”.
Podemos adiantar que esta posição nos parece refletir corretamente a qualificação da remuneração pelo licenciamento de software na legislação tributária federal. Estamos, nesses casos, diante da cessão do direito de uso, gozo e fruição de um intangível, de modo que de um royalty se trata. Portanto, estamos de acordo com a interpretação manifestada pela Cosit na SC 75 — salvo quando o licenciamento é feito pelo próprio desenvolvedor do programa, por força do disposto no artigo 22, “d”, da Lei nº 4.506/1964.
Após estabelecer esta premissa e declarar, expressamente, que a SC 75 seria aplicável aos fatos descritos na SC 107, as autoridades fiscais passaram longos parágrafos analisando a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.659/MG, na qual se examinou a incidência do ICMS ou do ISS sobre o licenciamento de software.
A partir daí, ficou bastante confusa a manifestação da Cosit. Afinal, os debates travados no STF sobre a incidência do ICMS ou do ISS sobre a licença de software se deram no contexto da dicotomia entre mercadorias e serviços que pauta esses dois tributos, a qual é estranha à legislação tributária federal, que há muitas décadas reconhece o pagamento de royalties como um fato econômico independente e com disciplina fiscal própria.
O mais estranho é que a leitura dos parágrafos 25 a 49 da SC 107 dá a impressão de que as autoridades fiscais iriam adotar posição no sentido de que o licenciamento de software não customizado transmitido via download teria a natureza de prestação de serviços, adotando posição alinhada àquela acolhida pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir que tais atividades de licenciamento estariam sujeitas à incidência do ISS. Contudo, na conclusão desta parte da SC 107 a Cosit reiterou o entendimento no sentido de que:
” … no âmbito do Imposto de Renda, as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a residente ou domiciliado no exterior pela licença de uso de software, independentemente do meio empregado na aquisição, incluindo a aquisição de versão de atualização do software, através de nova licença ou prorrogação do prazo da licença original, caracterizam-se como remuneração de direitos autorais, enquadrada pela legislação como royalties e, portanto, sujeitas à incidência do IRRF à alíquota de 15% (quinze por cento), nos termos do art. 767 do Anexo do Decreto nº 9.580, de 2018 (RIR/2018).”
Após examinar a incidência do IRRF, a Cosit se dedicou ao exame do tratamento da licença de software na legislação da CIDE-Remessas. A conclusão, neste caso, foi simples, já que a legislação desta contribuição explicitamente estabelece a sua não incidência sobre o licenciamento de software. Conforme a posição das autoridades fiscais, “extrai-se que a Cide não incide sobre a remuneração pela licença de uso de programa de computador (software), incluindo a aquisição de versão de atualização do software, através de nova licença, salvo quando envolver a transferência da correspondente tecnologia (§ 1º-A do artigo 2º da Lei nº 10.168, de 2000)”.
A Cosit fez uma ressalva, contudo, destacando que havendo a contratação de “serviço técnico de manutenção pela atualização da versão do próprio software, desde que não origine novo licenciamento, incide a Cide sobre a remuneração a residente ou domiciliado no exterior, à alíquota de 10%, nos termos do artigo 2º, § 2º, da Lei nº 10.168, de 2000”.
Não vemos reparos nas posições da Cosit sobre o tratamento da remuneração pelo licenciamento de software na legislação da Cide-Remessas.
Se em relação ao IRRF e à Cide-Remessas a posição das autoridades fiscais se mostrou coerente, com o devido respeito não se pode dizer o mesmo em relação à interpretação relativa à legislação de regência do PIS-Importação e da Cofins-Importação, cuja elasticidade hermenêutica trouxe uma contradição que creio ser insuperável para a fundamentação da própria SC 107.
A posição adotada pela Cosit em relação à incidência do PIS-Importação e da Cofins-Importação sobre o licenciamento de software talvez explique os longos parágrafos dedicados à posição do STF sobre a celeuma ISS versus ICMS sobre as mesmas transações, quando da análise do IRRF na primeira parte da fundamentação da SC 107.
As autoridades fiscais iniciaram registrando que a Cosit tinha posicionamento consolidado no sentido de que as contribuições em questão não incidiriam sobre pagamentos, créditos, remessas, empregos ou entregas de recursos para não residente em decorrência da licença de software não customizado transferido via download, citando a Solução de Consulta Cosit nº 303, de 14 de junho de 2017.
Mais adiante, destacou-se que a Cosit já havia se manifestado no sentido de que os “rendimentos decorrentes de adesão a contrato de licença de uso de software são considerados ‘royalties’, nos termos definidos pelo art. 22 da Lei nº 4.506, de 1964”. Consequentemente, por ser tratada como royalty a contraprestação pelo licenciamento de software estaria fora do campo de incidência do PIS-Importação e da Cofins-Importação. Esta posição havia prevalecido na Solução de Consulta COSIT nº 71, de 10 de março de 2015 (SC 71).
Veja-se que esta interpretação, sustentada na SC 71, é a única coerente com a interpretação apresentada na própria SC 107 em relação ao IRRF. Com efeito, a não ser que tenha sido objeto de uma definição explícita divergente em dois sistemas normativos, não há como se sustentar que um mesmo fato econômico — licenciamento de software — seja um royalty para fins da incidência do IRRF e uma prestação de serviços no que tange à legislação do PIS-Importação e da Cofins-Importação.
Contudo, por mais que esta interpretação fosse a mais correta e a única intrinsecamente coerente com a própria SC 107, as autoridades fiscais a abandonaram, em homenagem a uma equivocada aplicação da interpretação do Supremo sobre o ICMS e o ISS às aludidas contribuições.
O entendimento sustentado pela Cosit foi, basicamente, no sentido de que o STF teria definido que o licenciamento de software configuraria um serviço para fins da legislação do ISS e, portanto, como tal deveria ser considerado para fins da incidência do PIS-Importação e da Cofins-Importação. Veja-se o seguinte trecho da SC 107, que bem resume a posição das autoridades fiscais:
“Portanto, por todo o exposto em relação ao julgado do STF, em virtude da publicação do acórdão proferido na ADI nº 1.945/MT e na ADI nº 5.659/MG, conclui-se que, a partir da referida decisão, reconhece-se que na adesão a contrato de licenciamento de uso de softwares a obrigação de fazer está presente no esforço intelectual, seja a aquisição por meio físico ou eletrônico, o que configuram contraprestação por serviço prestado os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a beneficiário residente ou domiciliado no exterior como remuneração decorrente dessa adesão, incidindo a Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e a Cofins-Importação sobre tais valores, nos termos do inciso II do art. 7º c/c o inciso II do art. 3º da Lei nº 10.865, de 2004.”
Devemos sempre ter cuidado ao afirmar que posições interpretativas são “certas” ou “erradas”. Naturalmente, considerando os termos das decisões do Supremo, seria possível a adoção de uma posição — com a qual não concordamos — de que os licenciamentos de software deveriam ser qualificados como serviços para fins da legislação tributária federal. Contudo, ao adotar qualificações distintas para um mesmo fato econômico parece-nos que, de fato, a Cosit incorreu em um erro. O licenciamento de software não pode ser, ao mesmo tempo, remunerado por royalties ou tratado como prestação de serviço.
Ao adotarem essa posição, contraditória e incoerente, as autoridades fiscais expuseram sua a interpretação a forte crítica, já que parece que estamos diante de um esforço hermenêutico para levar à maior incidência tributária possível sobre o licenciamento de programas de computador.
Desde que o Supremo firmou sua posição pela incidência do ISS sobre licenciamentos de software temos defendido que há que se ter muita cautela no transplante dessa interpretação para o contexto da legislação federal. Afinal, como já apontamos, esta não está presa à dicotomia binária mercadorias/serviços.
O que a Cosit fez na SC 107 foi o seguinte: primeiro, definiu que, por natureza, a contraprestação pelo licenciamento de software não customizado tem natureza de royalty. Daí, como a legislação do IRRF tem uma disciplina específica para este fato econômico, foi simples. Concluiu que seriam aplicáveis as regras que tratam da incidência do IRRF sobre pagamentos, créditos, entregas, empregos ou remessas de royalties.
Ao passar à análise da legislação do PIS-Importação e da Cofins-Importação, as autoridades fiscais encontraram uma realidade distinta. Afinal, neste campo não há uma previsão de incidência sobre royalties — razão pela qual a Cosit sempre se manifestou pela não tributação de tais fatos econômicos.
Tendo se deparado com a realidade binária do PIS-Importação e da Cofins-Importação, as autoridades fiscais não tiveram dúvida: se aqui não há uma previsão para tributação de royalties então, neste caso, de royalties não se tratam! É uma prestação de serviços.
Ora, salta aos olhos a contradição lógica. Um mesmo fato econômico não pode simultaneamente ser e não ser um pagamento de royalty, ou ser e não ser uma prestação de serviços, salvo se, como já mencionamos, tivesse sido objeto de uma definição legal, explícita e específica, no contexto da regulação de cada tributo.
Contudo, não é isso o que se passa aqui. Tanto o conceito de royalty quanto o conceito de prestação de serviços foram construídos pela Cosit na SC 107 a partir de dispositivos e precedentes genéricos, não relacionados ao IRRF, ao PIS-Importação ou à Cofins-Importação. Logo, resta injustificável a qualificação do mesmo fato econômico de forma divergente, salvo pela aparente intenção de se assegurar a maior incidência sobre os licenciamentos de software transfronteiriços.
Ao longo desse texto fizemos referência ao licenciamento de software não customizado. Contudo, nada do que afirmamos aqui se alteraria caso o licenciamento recaísse sobre um software elaborado sob encomenda. Essa distinção entre software customizado e não customizado sempre foi um grande equívoco. Em ambos os casos o que se tem é o pagamento de um royalty.
Se contrato alguém para me prestar um serviço de programação e desenvolver um software, tenho uma prestação de serviço de programação, mas não um licenciamento. Se em decorrência do contrato a propriedade do software for do programador e ele me licenciar o programa — que originalmente foi criado por encomenda — tenho o pagamento de um royalty — salvo se concluirmos pela aplicação do artigo 22, “d”, da Lei nº 4.506/1964. Logo, a remuneração pelo direito de uso de um programa de computador será sempre um royalty, independentemente de o software ser customizado ou não customizado.
Outra questão relevante, e que aparece na SC 107, é a existência de prestações de serviços conexas. A existência de serviços que são contratados juntamente com o licenciamento não pode ter a força de converter todas as obrigações em prestações de serviços. Pelo contrário, os serviços são acessórios em relação ao licenciamento do software, de modo que cada obrigação de desempenho deve ter sua própria incidência tributária — desde que tenham sido precificadas de forma independente no contrato, como já decidiu a própria Cosit inúmeras vezes.
Por fim, mesmo que não seja objeto deste texto, temos que o meio de disponibilização do programa de computador também não deve alterar a natureza da remuneração pelo licenciamento. Menciono aqui toda a controvérsia que envolve a utilização frouxa da expressão software as a service (SaaS). Não é porque determinado contrato tem por objeto SaaS que, necessária e obrigatoriamente, estaremos diante de uma prestação de serviços. Mesmo nesses casos a natureza do fato econômico subjacente somente poderá ser determinada a partir de uma análise caso a caso do contrato e do que foi efetivamente contratado e entregue pelas partes.
Percebe-se, portanto, que a saga da definição dos tributos incidentes sobre o licenciamento de software ainda está na sua segunda temporada. Há muitas questões em aberto e controvérsias que vão surgir, as quais certamente irão requerer novas manifestações das autoridades fiscais e, eventualmente, do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e do Poder Judiciário).
Sergio André Rocha
Professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.