Contagem do prazo decadencial, solidariedade e voto de qualidade
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira
Com a edição da Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023, que restabeleceu o voto de qualidade, muitos recorreram ao Poder Judiciário na tentativa de impedir o julgamento de processos no âmbito do Carf, enquanto as modificações trazidas na MP não sejam definitivamente apreciadas pelo Congresso Nacional. Escorados em rumores de que não haveria quórum suficiente para retomar o desempate pelo voto de qualidade, carregam a certeza de que com a postergação do julgamento – com a consequente aplicação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 [desempate pró-contribuinte] –, teriam melhores chances de êxito no afastamento da exigência tributária. Ocorre que, como Benjamin Franklin há muito nos lembrou, certeza mesmo só temos de duas coisas nesta vida: da morte e do pagamento de tributos [1].
Nunca é excessivo rememorar que, embora nos coloquemos favoráveis ao restabelecimento do voto de qualidade por melhor se coadunar ao processo administrativo fiscal brasileiro, a acachapante maioria dos litígios devolvidos ao Carf, segundo dados extraídos de seu próprio sítio eletrônico, são decididos sem a necessidade de utilização de critérios de desempate – seja ele o voto de qualidade ou aquele em favor do contribuinte [2]. E, no caso de aplicação do voto de qualidade, ainda não foram disponibilizados dados que indiquem se o desempate, ultimado pela presidente ou pelo presidente de Turma, integrante dos quadros da Receita Federal, foi contrário ou a favorável ao contribuinte.
Feitos esses breves registros, passemos ao tema duplamente palpitante de hoje: a contagem do prazo decadencial relativamente aos devedores solidários. Dizemos isso porque, em primeiro lugar, o tema é tão intrigante que foi, há um par de anos, objeto desta mesma coluna (aqui). De lá para cá constatamos estar a querela longe de ser pacificada. O segundo motivo, a seu turno, repousa na inusitada configuração da votação da temática no âmbito da 2ª Turma da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf: pelo voto de qualidade dado provimento ao recurso da responsável solidária para reconhecimento da decadência, vencidos todos os conselheiros não-fazendários, que negaram provimento ao recurso [3]. Daí o porquê de termos ressaltado que poucas são as certezas que a vida pode albergar.
A pergunta que merece ser respondida é a seguinte: como é aferido o transcurso (ou não) do prazo decadencial quinquenal no tocante aos responsáveis solidários? Duas são as vertentes formadas no âmbito do Carf: a primeira, que considera que o termo a quo é a data de cientificação do lançamento pelo sujeito passivo, sendo irrelevante a de notificação dos solidários; e, a segunda, que impõe a aferição da decadência em apartado, para cada um dos responsáveis.
Os filiados à primeira corrente sustentam que, por implicar a solidariedade em unidade de objeto com pluralidade de sujeitos, o débito seria uno. Assim, “o lançamento regularmente cientificado ao contribuinte resta perfectibilizado por força do artigo 145 do CTN, daí surgindo a relação jurídica obrigacional entre o particular e a Fazenda Pública” [4]. Com arrimo no inciso III do artigo 125 do CTN, conclui-se que “a data de ciência do responsável solidário não repercute na eventual decadência da relação obrigacional já estabelecida em sua plenitude quando da cientificação do contribuinte, mas sim no prazo conferido para que o solidário exerça seu direito à ampla defesa, que naquela data tem seu termo inicial” [5]
De bom alvitre pontuar que o inciso III do artigo 125 do CTN, ao tratar dos efeitos da solidariedade, assevera que “a interrupção da prescrição, em favor ou contra um dos obrigados, favorece ou prejudica aos demais”. Decadência e prescrição são institutos díspares [6]; entretanto, para os defensores da corrente, “mesmo que o inciso III não mencione expressamente o instituto da decadência, é certo que também o abrange, considerando a similitude dos efeitos dos institutos da decadência e da prescrição e também o fato de o artigo 156 do CTN prever a decadência como uma das causas de extinção do crédito tributário, juntamente com o pagamento, a remissão e a prescrição, todos abarcados pelo artigo 125 do CTN” [7].
A doutrina, corroboraria a argumentação esposada, porquanto “cuida o art. 125 dos efeitos da interrupção da prescrição nas obrigações solidárias (item III), estabelecendo que esses efeitos atingem todos os obrigados, ainda que o evento causador da interrupção tenha ocorrido em relação a um deles apenas (v. CC/2002, artigo 204, §1º). Isso significa que o ato de reconhecimento da dívida (artigo 174, parágrafo único, IV), feito por um dos devedores solidários, implica a interrupção da prescrição também em relação aos demais devedores solidários. Embora se fale em ‘prescrição’, o princípio informador da norma deve aplicar-se aos prazos extintivos em geral; por exemplo, no que respeita às normas sobre decadência, se o sujeito ativo notifica um dos codevedores, nos termos do artigo 173, parágrafo único, e, com isso, dá início ao curso da decadência do direito de lançar, esse prazo deve entender-se aplicável também em relação aos demais devedores solidários” [8].
Já para os que aderem à segunda corrente, em se tratando de responsáveis solidários, “a decadência deve ser aferida relativamente a cada um deles em separado, sem que a ciência do devedor principal ou de qualquer outro configure causa interruptiva do prazo dos demais, por ausência de disposição legal expressa” [9]. Argumenta-se que “a relação jurídica no caso é individual, para cada sujeito passivo; se o crédito tributário somente é constituído a partir da ciência do lançamento” [10]. Caso o responsável solidário somente tenha tomado ciência do lançamento quanto fulminado o prazo para tanto, extinta a exigência quanto a ele.
Frisado, pelos que aderem à vertente, que a “não notificação de algum dos responsáveis por qualquer razão, por exemplo, porque não foi localizado, ou a notificação a destempo (decadência) de um deles também não interfere na higidez do lançamento em relação àqueles que foram notificados a tempo. E se é assim, o efeito da decadência em relação a algum dos responsáveis alcança apenas este, livrando-o da ação do Fisco. De outro modo, o próprio conceito de solidariedade e seus efeitos estariam sendo violados” [11]. Calha mencionar que, nos termos do verbete sumular de nº 71 do Carf, “todos os arrolados como responsáveis tributários na autuação são parte legítima para impugnar e recorrer acerca da exigência do crédito tributário e do respectivo vínculo de responsabilidade”.
A solidariedade passiva, por encerrar uma pluralidade de sujeitos, faz com que “cada um dos codevedores solidários mantêm vínculo autônomo com o credor público, estando unidos entre si exclusivamente pelo nexo do adimplemento: o pagamento realizado por um libera os demais. (…) É justamente por conta dessas razões jurídicas que entendemos indefensável a teoria que atribui eficácia erga omnes aos atos constitutivos do crédito tributário nas hipóteses de solidariedade. O codevedor não pode sofrer os efeitos indiretos de um lançamento do qual não foi notificado. Desta forma, não está obrigado ao lançamento e tampouco a administração está investida de um direito subjetivo de cobrança no seu confronto” [12].
Refutando a aplicação da analogia e também da interpretação extensiva, sustentam que o inciso III do artigo 125 do CTN é hialino ao dispor que somente a prescrição – e não a decadência – é interrompida quando diante de situações em que configurada solidariedade. Por carência de previsão legal, portanto, vedada atribuição de tal efeito quando sequer definitivamente constituída a exigência.
As controvérsias que pairam acerca da aferição da decadência robustecem o que há muito sabemos: o Direito não é uma ciência exata. Tampouco são suas leis oriundas da natureza. Que os debates, cada vez mais amadurecidos e devidamente fundamentados, façam com que a uniformidade, a previsibilidade e a segurança sejam alcançadas, a fim de que o Carf caminhe rumo à realização de sua visão de futuro – isto é, a de ser reconhecido pela excelência no julgamento dos litígios tributários.[13]
Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
[1] Em correspondência, ao tratar da promulgação da Carta Constitucional norte-americana, disse o seguimte: “Nossa nova Constituição foi agora estabelecida e tem sua aparência promete permanência; mas, neste mundo, nada pode ser dito como certo, exceto morte e tributos”. (FRANKLIN, B. [carta], 13 nov. 1789, Filadélfia, [para] Le ROY, M. On the affairs of France. In: FRANKLIN, B. The works of Benjamin Franklin; containing several political and historical tracts not included in any former edition and many letters official and private not thitherto published with notes and a life of the author. Filadélfia: Childs & Peterson, 1840, v. 10, p. 409-410, p. 410.)
[2] Os Dados Gerenciais do Carf, cuja última atualização ocorreu em 24 de fev. p.p, estão disponíveis em: . Acesso em: 31 mar. 2023. Na citada plataforma não existem dados que indiquem o montante (mantido ou exonerado) com a aplicação dos critérios de desempate adotados.
[3] CARF. Acórdão nº 2202-009.570. Cons. rel. SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º fev. 2023 (voto de qualidade).
[4] CARF. Acórdão nº 2202-008.510. Cons. Rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 11 ago. 2021 (unanimidade).
[5] Idem.
[6] Prazo decadencial é o que precisa observar a Fazenda Pública para a constituição do crédito tributário pelo lançamento, ao passo que o prazo prescricional está atrelado à cobrança do crédito tributário definitivamente constituído.
[7] CARF. Acórdão nº 9303-010.944. Cons. Rel. RODRIGO DA COSTA PÔSSAS, sessão de 10 nov. 2020 (maioria).
[8] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015 [e-book].
[9] É importante ressaltar que, neste caso, a Câmara Baixa tinha declarado a decadência com relação a todos os coobrigados, exclusivamente porque a cientificação do último coobrigado ocorrera passado o prazo decadencial quinquenal. Cf. CARF. Acórdão nº 9202-010.093. Cons. rel. MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 22 nov. 2021 (unanimidade).
[10] CARF. Acórdão nº 2202-009.570. Cons. rel. SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º fev. 2023 (voto de qualidade).
[11] CARF. Acórdão nº 9202-008.814. Cons.ª Rel.ª RITA ELIZA REIS DA COSTA BACCHIERI, redator designado PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, sessão de 27 jul. 2020 (maioria).
[12] DARZÉ, Andréa Medrado. Responsabilidade Tributária: Solidariedade e Subsidiariedade. São Paulo: Noeses, 2010, p. 332.
[13] Na aba “Perguntas Frequentes” no sítio eletrônico do Carf é possível conhecer um pouco da história do Conselho, missão, objetivos, etc.: . Acesso em: 2 abr. 2023.
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira
Doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.