Da limitação da transação tributária às empresas em recuperação judicial
Juarez Casagrande
O Código Tributário Nacional previu a transação tributária desde sua edição em 1966, através da Lei nº 5.172, mas o legislador ordinário regulamentou o referido instituto depois de 54 anos de vigência por meio da edição da Medida Provisória nº 899/2019, no plano hipotético, pois carecia de lei prevendo as condições para que o crédito tributário fosse extinto através da transação, sendo que em 14/4/2020, houve a publicação da Lei nº 13.988/20, sancionando integralmente o texto da Medida Provisória nº 899/2019.
Em que pese o legislador ter regulamentado a referida Medida Provisória, o tempo despendido entre 1966 até sua regulamentação prejudicou inúmeras empresas que necessitaram da transação e não obtiveram a beneficiação, justificando a possibilidade da transação para empresas que não possuem dívida ativa.
Tal entendimento advém do disposto no artigo 171 do CTN, que infirma:
“A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso”
Ocorre que, logo após a regulamentação, o legislador deixou de regulamentar as dívidas que estão inscritas na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, ferindo inversamente o princípio da isonomia ao deixar de aplicar princípio constitucional que rege matéria tributária, nos termos do artigo 150, II:
“Instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.”
Por conseguinte, embora beneficie o contribuinte que tem dívida ativa com processo junto a PGFN, cabe à Receita Federal regulamentar a forma do procedimento da transação.
Nestes termos, a Lei nº 13.988 de 14 de abril de 2020, dispõe sobre o tema:
“DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º — Esta Lei estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária.
§ 4º. Aplica-se o disposto nesta Lei:
I – aos créditos tributários não judicializados sob a administração da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia;”
Como se observa, a lei incluiu a possibilidade de inclusão na transação, os créditos não judicializados, e mais, buscou destacar quais princípios deveriam sempre serem observados, tais como, os princípios da isonomia, da capacidade contributiva, da transparência, da moralidade, da razoável duração dos processos e da eficiência.
De igual forma, a mesma lei dispôs sobre o desconto nas multas, nos juros de mora e nos encargos legais relativos a créditos irrecuperáveis e de difícil recuperação, que poderiam ser alcançados pela proposta de transação, vejamos:
“Art. 11. A transação poderá contemplar os seguintes benefícios:
I – a concessão de descontos nas multas, nos juros de mora e nos encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade fazendária, nos termos do inciso V do caput do art. 14 desta Lei;”
E, no §5º do mesmo artigo, o legislador elegeu como crédito irrecuperável, àqueles cujos contribuintes estejam em recuperação judicial:
“§ 5º. Incluem-se como créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação, para os fins do disposto no inciso I do caput deste artigo, aqueles devidos por empresas em processo de recuperação judicial, liquidação judicial, liquidação extrajudicial ou falência.”
Por outro lado, a Receita Federal do Brasil, através da Portaria RFB nº 247 de 16 de junho de 2020, aparentemente regulamentou os dispositivos contidos na Lei nº 13.988/2020, porém, ao que se percebe o fez de forma limitada, quando constou que estava regulamentando somente os arts. 21 e 23 da lei e deixou de constar a transação dos créditos de contribuintes que estejam em recuperação judicial.
Vejamos:
“O ministro de Estado da Economia, no uso da atribuição que lhe foi conferida pelo inciso II, parágrafo único do art. 87, da Constituição, e considerando o disposto nos artigos 21 e 23 da Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, resolve:
Art. 1º. Esta Portaria disciplina os critérios e procedimentos para a elaboração de proposta e de celebração de transação por adesão no contencioso tributário:
I – de relevante e disseminada controvérsia jurídica; ou,
II – de pequeno valor.”
Por outro lado, a Procuradoria da Fazenda Nacional, ao contrário do contido na Portaria ME nº 247/20, regulamentou a situação das empresas que estão em recuperação judicial, quando editou a Portaria nº 9.917 de 14 de abril de 2020 e estabeleceu os descontos que seria possível para empresas em recuperação judicial:
“Art. 41. Sem prejuízo da possibilidade de adesão à proposta de transação formulada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, nos termos do respectivo edital, os sujeitos passivos em recuperação judicial poderão apresentar, até o momento referido no art. 57 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, proposta de transação individual, observadas as seguintes condições:
I – o prazo máximo para quitação será de até 84 (oitenta e quatro) meses, sendo de até 145 (cento e quarenta e cinco) meses na hipótese de empresário individual, microempresa, empresa de pequeno porte, instituições de ensino, sociedades cooperativas e demais organizações da sociedade civil, quando for o caso, em recuperação judicial;
II – o limite máximo para reduções será de até 50% (cinquenta por cento), sendo de até 70% (setenta por cento) na hipótese de empresário individual, microempresa, empresa de pequeno porte, instituições de ensino, sociedades cooperativas e demais organizações da sociedade civil, quando for o caso, em recuperação judicial;
III – possibilidade de concessão de diferimento, pelo prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contados da formalização do acordo de transação e do pagamento da entrada convencionada.
Parágrafo único. Além das obrigações e exigências previstas, respectivamente, nos arts. 5º e 7º desta Portaria, o sujeito passivo em recuperação judicial se obriga a demonstrar a ausência de prejuízo ao cumprimento das obrigações contraídas com a celebração da transação em caso de alienação ou oneração de bens ou direitos integrantes do respectivo ativo não circulante.
Art. 42. Quando o processo de recuperação judicial estiver em fase posterior ao momento de que trata o art. 57 da Lei nº 11.101, de 2005, fica permitida, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da publicação desta Portaria, a apresentação de proposta de transação individual pelo sujeito passivo, observado o disposto neste Capítulo.”
A própria lei que trouxe a previsão da transação estabeleceu princípios a serem seguidos, e nesse caso, o da isonomia é o principal. Por outro norte, sabe-se que a intenção do legislador foi sempre no sentido de auxiliar a recuperação da mola propulsora da sociedade, quando concede benefícios para empresas em recuperação da sociedade.
A situação de muitos contribuintes por um lado seria simples, bastaria desistir dos parcelamentos administrativos junto a RFB e aderir a transação junto a PGFN, no entanto, não existe a certeza de que os débitos seriam encaminhados a PGFN em tempo hábil para se realizar a inscrição e análise junto com a proposta de transação com os débitos que já se encontram no âmbito da PGFN.
Somasse a isso o fato de que diante do quadro da pandemia, que ainda gera reflexos, a própria RFB e a PGFN editaram normas para suspender os procedimentos de cobrança e envio para dívida ativa, conforme se tem verifica no site da PGFN, através Portaria do Ministério da Economia nº 103, de 17 de março de 2020 e pela Portaria PGFN nº 7.821, de 18 março de 2020, com prazo prorrogado pela Portaria PGFN nº 18.176, de 30 de julho de 2020.
Por outro norte, temos que a Lei nº 9.784/1999, em seu artigo 2o, menciona os seguintes princípios: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, estes, para que o contribuinte alcance o que lhe é garantido por lei e pelas normas infra legais.
É preciso insistir também no fato de que a lei deve prezar pelo princípio da isonomia, tratando os iguais em igualdade e os desiguais em desigualdade, surgindo discrepância do seu real propósito, impedindo que os débitos que não estão na dívida ativa sejam também feitos a transação acima dos 60 salários mínimos; ainda que o objetivo fosse recuperar as “dívidas perdidas”, deve-se regulamentar para os que encontram-se em recuperação judicial, e não somente de pequeno valor, pois, ao olharmos para as bases fundamentais para a origem da Constituição, temos os princípios de liberdade e igualdade, que, analisando a referida regulamentação da Receita Federal, nos deixam dúvidas se a falta de regulamentação de dívidas que estão na PGFN foi um esquecimento fático ou estratégico.
Prevê a Constituição Federal do artigo 150, II:
“Instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.”
É exatamente o caso em análise.
CONTRIBUINTES que se encontram em situação EQUIVALENTE (dívida) — mas somente uma classe pode aderir a transação com descontos de juros e multas.
O Supremo Tribunal Federal, já se manifestou que uma norma que crie uma diferenciação entre pessoas é antijurídica quando as discriminações em seu conteúdo encerram “distinções não balizadas por critérios objetivos e racionais adequados (…) ao fim visado pela diferenciação”. (RE 640.905, relator ministro Luiz Fux, 12/12/2016.)
Tal situação, em que pese ter demorado 54 anos, poderia ter evitado uma verdadeira catástrofe olhando para à falência de diversos negócios, onde milhares de pessoas foram afetadas por um longo período.
O que se trata agora não é somente a possibilidade de receber “dívidas perdidas”, mas que os contribuintes que estão na PGFN sejam tratados como igualdade, e que possam evitar um futuro talvez de dívidas sem conseguir um bom acordo de transação.
Sendo assim, uma oportunidade de observar o princípio contido na Constituição surge e depende da Receita Federal no ato de regulamentar através da Portaria RFB nº 247 de 16 de junho de 2020, os dispositivos contidos na Lei nº13.988/2020, de forma ilimitada, regulamentando não somente os artigos nº 21 e 23 da lei, mas também, a transação dos créditos de contribuintes que estejam em recuperação judicial.
Juarez Casagrande
Advogado, professor, escritor, pós-graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público de Brasília, pós-graduado em metodologia do ensino superior pelo Instituto Brasiliense de Direito Público de Brasília, pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Paranaense, pós-graduando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, sócio-diretor do escritório Juarez Casagrande Advogados e autor de artigos diversos publicados pela Revista dos Tribunais, em especial, artigo na revista vol. 920, de aniversário de 100 anos da editora.