Coisa julgada e efeitos prospectivos da mudança de orientação jurisprudencial
Fernando Campos Scaff
Retorno aos Temas 881 e 885, julgados pelo STF (Supremo Tribunal Federal (em fevereiro de 2023, no mérito por unanimidade, e por maioria de 6 a 5 no sentido de não modular seus efeitos, o que já tratei em outros textos (aqui, aqui e aqui). O foco deste artigo é a questão do overruling, isto é, a mudança de orientação jurisprudencial e seus efeitos temporais.
Retornemos de forma breve ao caso concreto.
Em 1992 algumas empresas obtiveram decisões para não pagar a CSLL, através do controle difuso de constitucionalidade, tornando-se coisa julgada material, isto é, tornou “imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (artigo 502, NCPC).
O artigo 5º, XXXVI, da Constituição estabelece que a lei não prejudicará a coisa julgada, e impede que qualquer juiz decida “novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença” (artigo 505, I, NCPC).
Decisões transitadas em julgado podem ser desfeitas através de ações rescisórias (artigo 966, NCPC), cujos requisitos têm por pressupostos a existência de irregularidades, e deve ser interposta no prazo de dois anos, “contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo” (artigo 975, NCPC). No caso concreto as ações rescisórias não foram interpostas.
Em 2007, o STF julgou a ADI 15, declarando que a exigência de CSLL era constitucional. Tal decisão, por ter sido proferida em controle concentrado, produz “eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, conforme determina a Constituição (artigo 102, §2º).
Ocorre que os contribuintes amparados pela coisa julgada ocorrida em 1992 não estavam obrigados a pagar a CSLL, em face da colisão de princípios, que analisei neste texto acima referido.
A exigência de interposição de ação rescisória, ou ação equivalente, era um requisito estabelecido pelo próprio STF, tanto que, em decisão unânime proferida em maio de 2015 no julgamento do Tema 733, resultou a seguinte tese: “A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, artigo 495)”, cujo relator foi o ministro Teori Zavascki.
Recentemente, em fevereiro de 2023, o STF decidiu os Temas 881 e 885 — cujo acórdão ainda não foi publicado — tendo sido aprovado e divulgado oficialmente o seguinte texto, como resultado do julgamento: “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.
Tal decisão, que não foi modulada pelo STF, estabelece de forma cristalina, dentre outros aspectos, que: (1) as decisões em ADI “interrompem automaticamente os efeitos temporais” da coisa julgada, isto é, torna-se desnecessária a interposição de ações rescisórias ou assemelhadas, e (2) respeitada a irretroatividade, isto é, esta interrupção automática da coisa julgada não pode retroagir.
Uma vez que o texto do acórdão ainda não foi publicado, diversas interpretações têm surgido acerca do pouco que foi divulgado oficialmente acerca do julgamento. Tentando ser didático na exposição desse tema complexo, e para facilitar o entendimento, passa-se a fazer uma espécie de FAQ (Frequently Asked Questions), ou Perguntas Feitas Frequentemente, à luz de uma singela linha do tempo:
1992 2007 2015 2023
Pergunta-se: com base no que foi acima exposto, a decisão ocorrida em 2023 pode desfazer a coisa julgada ocorrida em 1992? Sim, pois, a partir de fevereiro de 2023 as decisões em controle concentrado podem desfazer a coisa julgada que lhe for contrária, sem a necessidade de interposição de ações rescisórias, em face da expressão “interrompem automaticamente seus efeito”.
Com base no texto já publicado, é juridicamente sustentável afirmar que a coisa julgada obtida em 1992 é válida até 2007, quando o STF declarou que a exigência de CSLL é constitucional? Sim, pois os efeitos da coisa julgada estavam plenos.
Da mesma forma, é juridicamente sustentável que a coisa julgada obtida em 1992 permaneceu válida após 2007, tendo em vista que nesta data o STF declarou constitucional a exigência de CSLL? Sim, pois a Constituição amparava a força da coisa julgada, que só poderia ser desfeita através de ações rescisórias, consoante reafirmado em 2015 pelo STF no julgamento do Tema 733.
Na mesma linha, é juridicamente sustentável que a coisa julgada obtida em 1992 permanecerá válida após 2023, em razão do julgamento dos Temas 881 e 885? Não, em razão da mudança de entendimento do STF tornando desnecessária ação rescisória para desfazer a coisa julgada, que terá seus “efeitos temporais” automaticamente interrompidos.
A partir de quando as empresas que não pagavam a CSLL por força da coisa julgada obtida em 1992 devem voltar a fazê-lo? Janeiro de 2024, em razão do princípio da anterioridade nonagesimal.
Existe alguma outra decisão do STF que acarrete modificação das respostas anteriores? Não. A Súmula 239, que estabelece ser “indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”, poderia ser considerada, mas seu entendimento não alcança a situação em apreço, como se vê no ARE 704.846 ED, relatado pelo ministro Dias Toffoli em 2013, quando foi afirmado que “declarada a inconstitucionalidade da norma tributária, seu efeito perdura enquanto não ocorrerem alterações nas circunstâncias fáticas ou jurídicas existentes quando prolatada a decisão”. Decisões semelhantes podem ser encontradas no ARE 861.473, relatado pelo ministro Roberto Barroso em 2015 e no AI 791.071 AgR-ED, de relatoria do ministro Dias Toffoli em 2014.
Muitas outras perguntas poderiam ser feitas, que acarretariam respostas mais complexas, porém este é um texto com pretensões didáticas, e não acadêmicas, logo, paro por aqui.
Retornando ao início, o que se têm no presente caso é um overrruling, isto é, uma mudança de orientação jurisprudencial do STF, que finalmente estabeleceu um mecanismo para articulação entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade, o concentrado e o difuso. Os efeitos temporais dessa articulação é que estão causando todo o problema.
O CPC de 2015 (artigo 927) estabelece as regras para o overrruling, indicando uma série de medidas que poderiam ter sido adotadas pelo STF no presente caso, dentre elas a realização de audiências públicas, o que não ocorreu. Porém o overrruling foi realizado em concreto e não pode trazer efeitos retrospectivos, mas prospectivos, senão até o passado se tornará incerto.
Espera-se pela publicação do acórdão, que deve trazer em seu bojo a expressa modificação do entendimento jurisprudencial e a indicação de seus efeitos temporais, independentemente da modulação, a qual já foi descartada.
Fernando Campos Scaff
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogado e árbitro.