Consignação em pagamento de tributo, coisa julgada e precedente divergente
Paulo Cesar Conrado
Uma das formas mais peculiares de conflituosidade tributária — e que ainda é de possível verificação no campo prático — nos remete à figura (nem tão comum quanto outras) da consignação em pagamento.
“Pagar por consignação” não deixa de ser “pagar”, destacando-se apenas pela adição de interposto depósito — que, no ambiente tributário, é sempre judicial, requisitando a instauração de ação própria, justamente a chamada ação de consignação em pagamento.
Soa estranho que alguém, no ambiente material de que falamos (o tributário, reitere-se), tenha que se utilizar desse extravagante instrumento, sendo francamente contraintuitiva a ideia de “pagamento por consignação” no lugar da do “pagamento ordinário” quando o credor é a Fazenda.
Como sugerido de início, porém, casos há em que o sujeito passivo, vendo-se obstado de efetivar o tal “pagamento ordinário”, é impelido a instaurar demanda para viabilizar a extinção do crédito devido, fazendo-o pela alternativa via da consignação.
Assim ocorre, precipuamente, quando um mesmo tributo — o ISS parece ser o exemplo mais emblemático nesse contexto — é reclamado por duas ou mais Fazendas.
O estado de dúvida quanto à titularidade do crédito em situações desse timbre é o que mobiliza o demandante e, sendo esse estado por si mesmo insuficiente para fazer desaparecer o vínculo obrigacional (afinal, nenhum contribuinte se desobriga de cumprir a obrigação derivada do fato imponível porque dois mais sedizentes credores se apresentam), a saída avistada pelo sistema processual tributário é, de fato, a consignação.
Até aí, nenhuma novidade, devemos assentir.
A questão sobre a qual queremos chamar a atenção de nosso leitor está relacionada a um efeito, digamos, “colateral” da consignatória derivada de dúvida sobre o sujeito ativo do tributo.
É que, em seus desdobramentos procedimentais, referida ação vai além da viabilização da extinção da obrigação (via depósito-consignação), permitindo a adicional construção de um juízo de certeza de ordem prospectiva, especificamente relacionado à definição do efetivo credor.
Usando outros termos: a demanda consignatória dilui, com potencial definitividade, a dúvida sobre a titularidade do crédito (fato gerador, em última ratio, de sua propositura), “declarando”, dentre as Fazendas disputantes, qual a credora.
O viés prospectivo a que nos referimos está, pelo que se nota, não na extinção do crédito presente, mas na “declaração” (o uso da palavra é proposital) sobre quem seria o sujeito ativo (definição naturalmente encaminhada para o porvir) e que serve de suporte para o cumprimento de obrigações tributárias com contornos análogos que venham a surgir no futuro jurídico.
Consideremos, frente a tais constatações, outro elemento: estamos atualmente mergulhados num ambiente processual em que determinadas decisões contam com força vinculativa. Essa situação nos faz pensar: se, em recurso definido depois da coisa julgada derivada da consignatória, o STJ ou o Supremo, redefinirem a tese-base, dizendo coisa diferente quanto à titularidade do crédito focalizado na consignação já julgada, o que fazer? Estarão o contribuinte e as municipalidades (no caso mais comum do ISS) eternamente vinculados ao que foi decidido na consignação anterior ou, a partir do precedente, o tributo deverá ser pago nos termos definidos pelo julgado vinculante?
Cruzemos essas questões com um dado pragmático-financeiro: se a solução avistada pelo STJ ou pelo Supremo indicar uma Fazenda que cobre tributo em menor valor, o contribuinte terá um evidente estímulo para querer se afastar da coisa julgada pretérita — parece razoável assim supor.
Mas e o contrário, também valeria? Se a solução derivada do precedente apontar a titularidade do crédito em favor de uma Fazenda que cobra mais, o estímulo operará na contramão? Ou valerá, nessa hipótese, a narrativa que invoca a ideia de imutabilidade da coisa julgada em suposta homenagem à noção de segurança?
Mesmo que sob pretexto diverso, note-se que essas indagações repristinam o “problema” que agita o debate sobre eventual descontinuidade da coisa julgada em matéria tributária, debate esse que, em nosso sentir, parece muito afinado com os efeitos patrimoniais dele derivados — aspecto usualmente oculto nas narrativas teórico-abstratas; damos esse tom à questão, porque, no fundo no fundo, nos parece que quem discute o tema quer resolver muito mais um “senão” de ordem econômica, diretamente relacionável à sua organização financeira, do que aspectos jurídicos “puros”.
Nessa senda de ideias, lembremos: sentenças que contenham efeito declaratório [1] são sentenças que escrevem o futuro jurídico em projeção a priori indefinida, justamente o que ocorre nas demandas tributárias preventivas usuais (declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária e mandado de segurança preventivo), permitindo que tanto Fisco quanto contribuintes organizem suas pautas orçamentárias-financeiras.
Pois assim também é, mesmo que colateralmente, com a consignação relacionada à dúvida sobre a titularidade do crédito. Não recusamos, por certo, que essa categoria processual (a das consignatórias) tem, em sua essência, uma tipologia muito mais complexa do que aquelas outras demandas — as preventivas “genéricas”. Há, no entanto, um ponto que lhes é comum (o que é igualmente inegável): no que se refere à sua prospectividade, todas estão sujeitas ao intercurso de um precedente em sentido divergente.
Pensando a partir daí — vale dizer: com foco no ponto de comunhão, não nos de distinção —, parece razoável, pois, que as possíveis soluções construídas para os casos (mais frequentes) de confronto entre “preventivas gerais” e precedente sejam extensíveis aos virtuais confrontos entre consignação e precedente.
Assim, se pensarmos que decisões do STJ ou do Supremo (as vinculativas) podem redefinir ex nunc o panorama sobre determinadas questões, inclusive as que foram previamente assentadas em coisa julgada, talvez esse seja o destino a ser atribuído nos casos de consignatória. Por outro lado, se pensamos na absoluta intocabilidade da coisa julgada nas “demandas comuns”, devemos o mesmo admitir para as consignatórias — o que valeria, por coerência, tanto para os casos financeiramente mais vantajosos para o Fisco como os que o seriam para o contribuinte.
Sem fechar questão sobre o rumo que as coisas devem tomar — a despeito da opinião que possamos ter em nosso espírito —, o que desejamos é provocar nosso leitor sobre as consequências projetadas por suas opções interpretativas, valendo a reflexão, especialmente para os enamorados pela tese da irrevisibilidade da coisa julgada por superveniente decisão em sentido diverso: se essa decisão reconhecer que o credor do tributo previamente consignado for Fazenda outra, que não a anteriormente “declarada”, representando tal mudança potencial pagamento a menor, continuará o contribuinte submisso à definição exposta na coisa julgada?
[1] A respeito do efeito das ações declaratórias remetemos à leitura dos seguintes artigos:
https://www.conjur.com.br/2021-mar-02/paulo-conrado-processo-tributario-instrumentalidade
https://www.conjur.com.br/2021-mai-16/processo-tributario-acoes-tributarias-antiexacionais-preventivas
https://www.conjur.com.br/2021-mar-30/castro-spina-mandado-seguranca-materia-tributaria
https://www.conjur.com.br/2021-mai-30/processo-tributario-mandado-seguranca-preventivo-vs-acao-declaratoria-negativa
Paulo Cesar Conrado
juiz federal em São Paulo, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito SP, professor do curso de especialização do Ibet, professor e coordenador do curso de extensão "Processo Tributário Analítico" do Ibet e coordenador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.