Mudanças de normas e julgamentos vão afetar setor aduaneiro em 2022

Rosaldo Trevisan

O início de ano sempre vem acompanhado de previsões nos mais variados setores. Quem nunca ouviu que perderíamos no próximo ano um artista famoso (tendo em conta a quantidade hodierna de artistas famosos essa probabilidade é considerável), ou que o Brasil venceria uma importante competição internacional (o que é também probabilisticamente razoável afirmar).
Tendo em conta que as previsões genéricas, como as citadas, podem ser apoiadas em estatísticas, ou até em interpretação do conteúdo das palavras “famoso” e “importante”, os poderes reais de clarividência seriam restritos às específicas.

E, nas específicas, remete-se à anedota do cético que, depois de convencido pelos amigos, decidiu ir ao consultório de uma vidente e, ao bater na porta, ouviu: “… quem é?”. Diante da resposta, fez meia-volta e nunca mais retornou. Afinal de contas, que credibilidade mereceria uma vidente que sequer sabe quem bate à sua porta?

Longe do terreno da clarividência, o presente texto está inserido no “Território Aduaneiro”, e busca, como a história, o estudo do passado para compreender o presente e razoavelmente imaginar o que possa ocorrer no futuro.

O cenário mundial, afetado pela pandemia da Covid-19, que exigiu medidas e produziu consequências aduaneiras, tributárias e econômicas,1 soma-se ao ambiente nacional, em 2022, com componente eleitoral, excepcionalmente antecipado à Copa do Mundo (um daqueles fatores não racionais que afetam o humor geral da população, ao menos no Brasil — a “pátria de chuteiras” rodrigueana). Todos esses elementos comprometem a exatidão das previsões, mas não nos impedem de envidar esforços buscando delimitá-las.

Começamos pelas “previsões aduaneiras” para 2022 que são meras consequências de compromissos previamente assumidos.

Em 05/09/2019 o Brasil ratificou junto à Organização Mundial das Aduanas (OMA) a Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros (Convenção de Quioto Revisada — CQR), aderindo ao Corpo da Convenção, ao Anexo Geral e a cinco Capítulos de Anexos Específicos.2

Recorde-se que tanto o Anexo Geral da CQR quanto os Anexos Específicos — aos quais o Brasil aderiu sem reservas — deverão ser implementados nos prazos previstos nos itens 1 a 3 do art. 13 do Corpo da Convenção: 36 meses do início da vigência para o Brasil, em relação a normas e a práticas recomendadas, e 60 meses no que se refere a normas transitórias.

Como o início da vigência para o Brasil, regido pelo item 2 do art. 18 Corpo da CQR/OMA, deu-se em 5/12/2019, as normas deverão ser aplicadas a partir de 5/12/2022. Eis a primeira previsão: o Brasil estará pronto para cumprir a CQR/OMA até o final de 2022.

Mas não podemos descartar a possibilidade de o Brasil solicitar uma prorrogação de tal prazo ao Comitê de Gestão da CQR/OMA, invocando o item 4 do art. 13 da Convenção, caso não se concretize nossa previsão, o que poderia retardar em até um ano a aplicação integral do Anexo Geral pelo país.

Também prevemos que se aprofunde o alinhamento com as medidas previstas no Acordo sobre a Facilitação do Comércio, da Organização Mundial do Comércio (AFC/OMC), principalmente no que se refere a temas que independem de destinação de recursos financeiros públicos, tendo em vista o corte orçamentário indicado para o Ministério da Economia, em 2022. Reconhecemos que, nesse aspecto, a Taxa de Utilização do SISCOMEX poderia cumprir um papel importante na conclusão do processo de implementação da Declaração Única de Importação (DUIMP) e do próprio Portal Único de Comércio Exterior, respeitando tanto sua lei criadora (Lei 9.716/1998, art. 3º), que trata de “variação dos custos de operação e dos investimentos no SISCOMEX”, quanto a CQR/OMA e o AFC/OMC, que limitam as taxas ao custo do serviço prestado.3

Outra previsão decorrente de medidas previamente adotadas se refere ao aumento do valor que pode ser livremente portado por viajantes que ingressam no Brasil ou dele saem. A majoração era demanda de longa data, pois o valor fixado no art. 65 da Lei 9.069/1995 (R$ 10.000,00, ou seu equivalente em moeda estrangeira) foi paulatinamente corroído pelo tempo. Na data de publicação da lei, a situação era de quase paridade entre dólar e real, enquanto que hoje a relação é de quase 6 para 1. E, embora o art. 65 previsse que o Banco Central poderia dispor sobre o limite, essa providência não foi adotada.

Mas a Lei 14.286, publicada no Diário Oficial de 29/12/2021, além de revogar o art. 65 da Lei 9.069/1995, basicamente reproduzindo seu conteúdo no novo art. 14, aumentou o limite de porte de valor por viajante que ingressa no país ou dele sai para US$ 10.000,00, estabelecendo, no art. 29, que a medida entra em vigor após decorrido um ano da publicação. Temos, assim, outra “previsão aduaneira” para o final de 2022, que facilitará a vida dos viajantes internacionais que não se curvaram (ao menos totalmente) aos cartões de crédito.

A virada de ano trouxe ainda reajustes efetivos de limites de isenção que já estavam fixados em dólares, para bagagem de viajantes nas vias aérea e marítima (de US$ 500,00 para US$ 1.000,00) e para compras em lojas francas de fronteira (de US$ 300,00 para US$ 500,00), conforme Portaria ME 15.224, de 31/12/2021. Mas isso já não é previsão, por estar vigente desde 1/1/2022, assim como a VII Emenda do Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias, veiculada na IN RFB 2.054, de 6/12/2021.

E os presentes natalinos não acabaram por aí. Houve ainda prorrogações de “Ex-Tarifários” de bens de capital e bens de informática e telecomunicações (até 30/4/2022 — pela Resolução GECEX 291/2021, que abriu as portas para eventual prorrogação adicional, a pedido, até 31/12/2025). A Resolução GECEX 272/2021 manteve ainda diversas alíquotas excepcionais de imposto de importação, a exemplo das reduções promovidas unilateralmente pelo Brasil até 31/12/2022, invocando o art. 50, “d” do Tratado de Montevidéu.

No âmbito do Mercosul, as Decisões do Conselho do Mercado Comum (CMC) aprovadas ao final de 2021 sinalizam para prorrogações generosas de excepcionalidades: alíquotas distintas para bens de informática e telecomunicações até 2028 para Argentina e Brasil, 2029/2030 para Uruguai e 2030 para Paraguai (Decisão CMC 08/2021); regimes especiais de importação até 2030 (Decisão CMC 10/2021); e listas nacionais de exceção à Tarifa Externa Comum, de 2028 a 2030, conforme o país (Decisão CMC 11/2021).4 Ou seja, a “previsão aduaneira” para 2022 é, basicamente, de que tudo continue como está.

No cenário internacional, a Organização Mundial do Comércio, sob a nova direção da nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, tem o grande desafio de desatar o nó relativo ao processo de solução de controvérsias. E é preciso ser muito otimista para acreditar que o problema do contencioso comercial internacional seja resolvido ainda em 2022.

Por outro lado, um dos grandes problemas do contencioso aduaneiro brasileiro (ao menos daquele disciplinado pelo Decreto 70.235/1972) deve ser resolvido em 2022: o da insegurança jurídica causada pelo art. 28 da Lei 13.988/2020,5 que inseriu um art. 19-E na Lei 10.522/2002 estabelecendo que em “…caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte”.

A partir da edição de tal norma, várias perguntas surgiram. Poderia o legislador inserir na lei de conversão (Lei 13.988/2020) matérias novas, não constantes na Medida Provisória 899/2019, que tratava exclusivamente de “transação” (a comparação entre as ementas da MP e da Lei é suficiente para verificar a ampliação de escopo)? O novo critério de desempate (sempre em favor do “contribuinte”, ao contrário do anterior, que podia ser em favor de qualquer das partes) se aplica, v.g., a temas aduaneiros desvinculados do recolhimento de tributos? O novo critério de desempate permite à Fazenda Nacional recorrer da decisão ao Poder Judiciário? As respostas a essas perguntas, entre outras, não se encontram neste artigo, nem na quiromancia, na litomancia ou na cartomancia. Mas as ações a respeito da matéria estão pautadas para 2022, no Supremo Tribunal Federal.

As três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 6.415, 6.399 e 6.403) que questionam o art. 28 da Lei 13.988/2020 estão pautadas para o dia 23/03/2022. Já votou o Ministro Marco Aurélio, que entendeu pela inconstitucionalidade formal do artigo. Em voto-vista, o Ministro Roberto Barroso entendeu pela constitucionalidade do artigo, mas permitindo à Fazenda Nacional, nesses casos, “ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário”. Nos votos restantes está o futuro do contencioso administrativo tributário e aduaneiro (nos processos regidos pelo Decreto 70.235/1972). Nossa bola de cristal está nublada neste item, e conseguimos ver apenas que as ações sejam efetivamente julgadas em 2022, e que o resultado do julgamento, embora venha a ocasionar retrabalho a curto prazo, servirá para o aprimoramento do contencioso administrativo tributário e aduaneiro.

Ao longo do ano conversaremos sobre várias dessas “previsões”, verificando os desfechos do mundo real para os temas que foram aleatoriamente apresentados pela nossa esotérica coluna.

Seja no Direito Aduaneiro, ou na vida, o importante é que muitas das “previsões” precisam, às vezes, de um “empurrãozinho” nosso para se concretizarem. Por isso, não podemos ficar simplesmente sentados esperando que tudo aconteça.

Encerro convidando os leitores a colocarem tijolos na construção de um Direito Aduaneiro moderno em 2022, alinhado às melhores práticas internacionais, desejando a todos um excelente ano, repleto de boas notícias aduaneiras.

Ah! E que a Copa do Mundo seja nossa!

i Sobre as medidas aduaneiras em tempos de COVID-19, ao som de “Índios”, da Legião Urbana: TREVISAN, Rosaldo. Tributação sobre o comércio exterior e medidas aduaneiras em tempos de COVID-19. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito et al (orgs.). A pandemia da COVID-19 no Brasil em sua dimensão financeira e tributária. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, p. 625-636.

ii Capítulo 1 do Anexo Específico “A” (“Formalidades Aduaneiras anteriores à entrega da Declaração de Mercadorias”); Capítulo 1 do Anexo Específico “B” (Importação Definitiva); Capítulo 1 do Anexo Específico “C” (Exportação Definitiva); Capítulo 1 do Anexo Específico “D” (“Depósitos Aduaneiros”; e Capítulo 1 do Anexo Específico “J” (“Viajantes”).

iii Em que pese esse reconhecimento, o Supremo Tribunal Federal consolidou, recentemente, no Recurso Extraordinário 1.258.934/SC, o entendimento de que é “…inconstitucional a majoração excessiva de taxa fixada em ato infralegal a partir de delegação legislativa defeituosa”, permitindo apenas a atualização dos valores fixados em lei de acordo com percentual não superior aos índices oficiais de correção monetária. Em outras palavras, foram limitados os custos de operação e de investimentos no SISCOMEX (ao menos os patrocinados pela taxa) aos patamares fixados em 1997, reajustados por índices oficiais, o que se deu pela Portaria ME 4.131/2021 e pela IN RFB 2.024/2021.

iv A Argentina e o Brasil podem excepcionar até 100 códigos NCM com data-limite de 31/12/2028; o Uruguai, até 225 códigos, com limite em 31/12/2029; e o Paraguai, até 649 códigos, com limite em 31/12/2028. Esclareça-se, por fim, que as listas nacionais de exceções (no caso do Brasil, a LETEC) não são a única forma de adotar alíquotas distintas das estabelecidas na Tarifa Externa Comum. Quem desejar ver todas as exceções – e familiarizar-se com outras listas, como a de autopeças, a de Ex-Tarifários, a de desabastecimento, a de informática e telecomunicações (LEBIT) e a referente a COVID-19, pode acessar https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/assuntos/camex/estrategia-comercial/listas-vigentes.

v A insegurança jurídica se refere, v.g., ao desfecho incerto dos crescentes casos de julgamentos administrativos utilizando o novo critério de desempate. Segundo os dados abertos do CARF de outubro de 2021 (disponíveis em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/2021/dados-abertos-out2021.pdf/view), a utilização do novo critério de desempate quadruplicou, em termos percentuais, de 2020 para 2021 (até agosto), de 0,4% dos processos para 1,6%.

Publicação Original Conjur

Rosaldo Trevisan

Doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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